Posts Tagged Zero Hora

Papel higiênico

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 9 de julho de 2006

Quer provenham do próprio PT, das dissidências esquerdistas enragées, do social-democratismo tucano, das hostes liberais ou do punhado de remanescentes do regime militar que o consenso dos anteriores classifica de “extrema direita”, os críticos de Lula só condenam nele uma coisa: seu “oportunismo fisiológico”, seu “egoísmo burguês”, seu “abandono dos ideais socialistas”, sua “traição à causa do proletariado”. As fórmulas verbais são muitas, o esquema de pensamento é constante e uniforme.

O ex-ministro Jarbas Passarinho, que só tem de esquerdista o que tem de extraterrestre, chega a jogar na cara do presidente ladrão o parágrafo célebre em que  Bakunin acusa os proletários de deixarem de ser proletários tão logo chegam ao poder — como se o assalto revolucionário à máquina do Estado não fosse ele próprio um roubo, como se o ladrão que rouba ladrão fosse mais condenável do que aquele que rouba homens honestos.

E não é preciso lembrar a figura patética do governador paulista, acossado pelas hostes do PCC e pelo governo federal, tentando fazer-se de bom menino por meio de um discurso contra a “elite branca egoísta”.

Do conjunto das críticas, a impressão que sobra na mente do público é que o critério supremo da honestidade é a ideologia esquerdista, a virtude máxima residindo na obediência fiel à moral do partido. Um dia, Lula passará, mas os efeitos dessa propaganda obsessivamente repetida permanecerão. Longo tempo depois de desaparecidas da memória popular as imagens do mensalão, do dinheiro na cueca, das testemunhas assassinadas no caso Celso Daniel, do pseudo-padre Medina gabando-se de trazer dinheiro das Farc para o PT, os valores em nome dos quais esses episódios foram condenados ainda estarão vivos na alma de todos. Quando ninguém mais se lembrar de Lula, todos ainda se lembrarão de que é feio não ser socialista.

Entre os que mais terão contribuído para esse resultado, contam-se os liberais, os conservadores e até os “extremistas de direita” que não ousaram falar em nome de seus próprios valores, preferindo fingir-se de esquerdistas na esperança louca de “dividir o adversário” – como se historicamente já não estivesse provado, há décadas, que a esquerda não precisa de unidade, que ela cresce e prospera por divisão e cissiparidade, como as amebas.

O mais irônico, em tudo isso, é que enquanto a direita condena o presidente por infidelidade ao esquerdismo, os líderes maiores da esquerda continental, os comandantes do processo revolucionário, Castro, Chávez, Kirchner, Morales e os chefes das Farc, sem contar a mídia esquerdista chique do mundo inteiro, continuam a tratá-lo como amigo e homem de confiança, e nenhuma denúncia contra ele se ouve nas reuniões do Foro de São Paulo. Enquanto seus adversários, achando-se muito espertos, se embriagam na ilusão de jogar a esquerda contra ele, o sujeito continua a funcionar como uma peça saudável e preciosa da máquina esquerdista. É o caso de perguntar a todos esses críticos: Vocês não percebem que estão sendo usados para limpar a sujeira petista, não percebem que a esquerda está rindo de vocês? Não sabem que depois de cumprida sua função na estratégia esquerdista vocês serão jogados na privada como um farrapo de papel higiênico? Mas, depois de tantas concessões e acovardamentos, talvez seja realmente esse o único papel que a direita ainda sonhe em desempenhar na história do Brasil.

Guerra e dietas

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 25 de junho de 2006

O senador republicano Rick Santorum, usando dos privilégios do Freedom of Information Act (“Lei da Liberdade de Informação”), conseguiu obter do serviço secreto militar a relação completa das armas químicas de destruição em massa encontradas até agora no Iraque. São mais de quinhentas – o suficiente para matar por intoxicação os habitantes de umas vinte cidades americanas. O jornalista Richard Miniter já havia revelado a existência dessas armas, no seu livro Disinformation: 22 Media Myths that Undermine the War on Terror (Regnery, 2005). Mas agora a coisa é oficial: não há mais como negar honestamente que o governo de Saddam Hussein ludibriou os inspetores da ONU, exatamente como o governo americano proclamou ao declarar guerra ao Iraque. A informação, é claro, não vai tapar a boca de Ted Kennedy, Nancy Pelosi, John Kerry e John Murtha: mas continuar de boca aberta é uma coisa, falar de boca cheia é outra. Quando Murtha, na mesma semana, saiu apontando supostos defeitos de tática na operação que matou o terrorista Al-Zarqawi, mesmo os democratas mais enragés se esquivaram de ajudá-lo a pagar o mico.  Ser crítico do sucesso é posar de advogado do fracasso.

Desde o início da campanha anti-guerra, era evidente que o slogan “Bush lied, children died” era mais postiço que bunda de silicone. Nenhum presidente americano seria sonso o bastante para arriscar o país e seu próprio pescoço numa aventura militar baseada em informações totalmente furadas.

O estranho no episódio é que o senador Santorum tenha tido de arrancar à força uma informação que o governo Bush, pela lógica, deveria estar alardeando desde cima de todos os telhados. Não sei se Bush é masoquista, se está guardando cartas na manga para um momento eleitoralmente mais propício ou se, através do CFR (Council on Foreign Relations), tem algum acordo secreto com os democratas. Sei é que ele parece estar fazendo o que pode para agradar seus adversários e irritar seus eleitores. Por enquanto é tudo mistério. Bush é o presidente mais retraído e enigmático que os EUA já tiveram.

***

Quem não quer levar uma vida como a do ator cômico George Burns – ser forte como dois pôneis, ter multidões de fãs, divertir-se a valer, acordar cheio de gratidão a Deus todos os dias, comer, beber e fumar à vontade, e depois morrer mansamente com um último charuto nos lábios, aos 101 anos, muito depois do seu médico?

Burns, que teve mesmo a satisfação de fazer o papel de Deus numa comédia maluca, vem-se tornando um emblema das polêmicas anti-politicamente corretas contra os rigorismos dietéticos que os americanos, é verdade, mais alardeiam do que praticam.

Mark Twain deplorava o ascetismo sombrio com que tantas pessoas se privam de experiências deliciosas na vã esperança de esticar sua vida por uns miseráveis minutinhos. Uma pesquisa recente mostrou que, das oitenta pessoas mais velhas do mundo, setenta e oito eram fumantes. Algumas haviam até deixado de fumar depois dos cem anos, por achar que estava lhes fazendo mal. Dados oficiais do governo americano provam que morrem uns quatrocentos mil fumantes por ano nos EUA – mas morrem com uma média de idade que é até um pouco mais avançada que a dos não-fumantes falecidos. E uma outra pesquisa, mais recente, mostrou que algumas das populações mais longevas do planeta não têm o hábito de comer vegetais e vivem quase que exclusivamente de carne vermelha – uma dieta que, segundo a Organização Mundial da Saúde, deveria ter dado cabo das infelizes muito antes de encerrada a pesquisa. A OMS, por sua vez, segundo informa um estudo do filósofo inglês Roger Scruton, é uma entidade benemérita que gasta oitenta por cento do seu orçamento com o pagamento de seus funcionários, mais uns doze por cento com despesas administrativas e o restante à preservação da saúde da espécie humana.

Definitivamente, há algo de errado com a “cultura da saúde”.

Quem foi que inventou o Brasil?

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 11 de junho de 2006

Se todos os meios de produção são estatizados, não há mercado. Sem mercado, os produtos não têm preços. Sem preços, não se pode fazer cálculo de preços. Sem cálculo de preços, não há planejamento econômico. Sem planejamento, não há economia estatizada. “Comunismo” é apenas uma construção hipotética destituída de materialidade, um nome sem coisa nenhuma dentro, um formalismo universal abstrato que não escapa ileso à navalha de Occam. Não existiu nem existirá jamais uma economia comunista, apenas uma economia capitalista camuflada ou pervertida, boa somente para sustentar uma gangue de sanguessugas politicamente lindinhos.

Desde que Ludwig von Mises explicou essas obviedades em 1922, muitas conseqüências se seguiram.

Os líderes comunistas, por mais burros que fossem, entenderam imediatamente que o sábio austríaco tinha razão, mas não podiam, em público, dar o braço a torcer. Tolerando doses cada vez maiores de capitalismo legal ou clandestino nos territórios que dominavam, continuaram teimando em buscar algum arranjo que maquiasse o inevitável. Eduard Kardelij, ministro da Economia da Iugoslávia, chegou mesmo a imaginar que seria possível uma comissão de planejadores iluminados determinar um a um, por decreto, os preços de milhões de artigos, desde aviões supersônicos até agulhas de costura. A idéia jamais foi levada à prática, porque se assemelhava demasiado ao método português de matar baratas jogando uma bolinha de naftalina em cada uma. Os soviéticos permitiram que o capitalismo oficialmente banido continuasse prosperando na sombra e respondesse por quase cinqüenta por cento da economia da URSS. Daí o enxame de milionários que emergiram da toca, da noite para o dia, quando da queda do Estado soviético: eles jamais teriam podido existir num regime de proibição efetiva da propriedade privada.

Alguns grandes capitalistas ocidentais tiraram da demonstração de von Mises algumas conclusões mais agradáveis (para eles próprios). Se a economia comunista era impossível, todos os esforços destinados nominalmente a criá-la acabariam gerando alguma outra coisa. Essa outra coisa só poderia ser um capitalismo oculto, como na URSS, ou um socialismo meia-bomba, uma simbiose entre o poder do Estado e os grupos econômicos mais poderosos, um oligopólio, em suma. As duas hipóteses prometiam lucros formidáveis, aquela pela absoluta ausência de impostos, esta pela garantia estatal oferecida aos amigos do governo contra os concorrentes menos dotados. Se a primeira ainda comportava alguns riscos menores (extorsão, vinganças pessoais de funcionários públicos mal subornados), a segunda era absolutamente segura. Foi então que um grupo de bilionários criou o plano estratégico mais maquiavélico da história econômica mundial — inventaram a fórmula assim resumida ironicamente pela colunista Edith Kermit Roosevelt (neta de Theodore Roosevelt): “A melhor maneira de combater o comunismo seria uma Nova Ordem socialista governada por ‘especialistas’ como eles próprios.” Essa idéia espalhou-se como fogo entre os membros do CFR, Council on Foreign Relations, o poderoso think tank novaiorquino. A política adotada desde então por todos os governos americanos (exceto Reagan) para com o Terceiro Mundo, na base de combater a “extrema esquerda” mediante o apoio dado à “esquerda moderada”, foi criada diretamente pelo CFR. O esquema era infalível: se os “moderados” vencessem a parada, estaria instaurado o monopolismo; se os comunistas subissem ao poder, entraria automaticamente em ação o Plano B, o capitalismo clandestino. A “extrema esquerda”, apresentada como “o” inimigo, não era na verdade o alvo visado, era apenas a mão esquerda do plano. O verdadeiro alvo era o livre mercado, que deveria perecer sob o duplo ataque de seus inimigos e de seus “defensores” os quais, usando o espantalho da revolução comunista, o induziam a fazer concessões cada vez maiores ao socialismo alegadamente profilático da esquerda “boazinha”.

Reduzir o leque das opções políticas a uma disputa entre comunistas e socialdemocratas tem sido há meio século o objetivo constante dos bilionários inventores da Nova Ordem global. O Brasil de hoje é o laboratório dos seus sonhos.

Veja todos os arquivos por ano