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O bem como instrumento do mal

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 1 de abril de 2010

Que, num mundo degradado pela arrogância da modernidade, os Legionários de Cristo sejam uma organização nominalmente destinada a reviver a experiência do catolicismo tradicional, eis algo que só torna ainda mais graves os crimes praticados tanto pelo seu fundador quanto pelos seus demais líderes.

Entre o tradicionalismo aparente dos Legionários e as deformações modernistas do catolicismo, a relação é exatamente a mesma que Sto. Agostinho enxergava entre o orgulho e os demais pecados capitais: todos os vícios, dizia ele, se apegam ao mal, para realizá-lo; só o orgulho se apega ao bem, para extingui-lo.

Modernistas e esquerdistas em geral pregam o erro e a mentira, deformam a doutrina e a liturgia, fazem tudo às avessas do que a Igreja fez por dois milênios. Marcial Maciel e seus asseclas apregoam a doutrina autêntica, seguem os ritos fielmente e, vistos de fora, se parecem muito com os bons católicos de antigamente — só que reduzem tudo isso a uma casca, a uma camuflagem a serviço do crime e da maldade. Aqueles atacam a Igreja desde fora, despindo-a ostensivamente de tudo quanto a orna e protege ante os olhos do mundo; estes preservam-lhe a vestimenta e a fisionomia, enquanto a ferem diretamente no coração.

O dano que Maciel e sua quadrilha fizeram ao catolicismo chega até a superar, sob certos aspectos, o efeito global de tantos golpes acumulados ao longo de mais de cem anos. Sob o ataque dos inimigos externos ou dos heréticos e agentes infiltrados, a Igreja não só preservava sua dignidade mas resplandecia ainda mais pela glória do martírio. Agora ela é forçada a humilhar-se ante o mundo, pedindo desculpas pelo mal que inimigos bem camuflados não lhe fizeram desde fora, mas desde o seu círculo mais íntimo, sob a proteção imbecil de um Papa, João Paulo II, que não quis enxergar a verdade em tempo e acabou protegendo os criminosos em vez de socorrer as vítimas.

Se fazer a Igreja pagar pelos crimes de seus traidores já é uma injustiça monstruosa, ainda mais intoleráveis são as tentativas de atenuar o escândalo, reduzindo tudo aos pecados pessoais de um sacerdote e salvando as aparências da organização que ele criou.

O pedido de desculpas distribuído pelo atual superior da ordem, Álvaro Corcuera, é um primor de cinismo e desconversa. De um lado, reduz tudo a delitos sexuais já velhos de quatro décadas, nada dizendo da perseguição judicial movida mais recentemente, sob a liderança do próprio Corcuera, para intimidar e calar as vítimas e resguardar a sacrossanta imagem pública do criminoso. De outro, lança todas as culpas sobre um indivíduo isolado, como se o vasto concurso de crimes que ele praticou tivesse sido possível sem a cumplicidade de seus assessores mais próximos e, mais ainda, sem a peculiar estrutura de que ele dotou a organização, fazendo dela uma perfeita máquina de dominação e acobertamento.

Com toda a evidência, o que diferencia os Legionários de todas as demais ordens religiosas não é apenas a conduta pessoal do seu fundador: é a concepção organizacional inteira da entidade, planejada para servir a objetivos que nada têm a ver com os seus fins nominais, servindo a estes só na medida em que eram úteis àqueles.

Para quê uma disciplina religiosa precisaria acrescentar, aos votos tradicionais de pobreza, obediência e castidade, um herético e extravagante “voto de segredo”, se não fosse para esconder, desde o início, algo que se tencionava fazer escondido?

Para quê uma ordem religiosa católica teria de adotar para seus noviços e fiéis leigos, além dos métodos pedagógicos e disciplinares antigos e consagrados, certas técnicas de controle comportamental originadas no movimento anticristão da “Nova Era” e em laboratórios de engenharia social empenhados em construir a civilização mundial do Anticristo?

Para quê uma ordem religiosa precisaria instituir, além das normas usuais de respeito e obediência, o culto idolátrico de seus líderes, proclamados levianamente “santos” à primeira vista, sem o menor exame crítico, em efusões de emocionalismo histérico coletivo que blasfemam a noção mesma da santidade?

Para quê uma ordem religiosa precisaria praticar em grande escala a imposição de vocações forçadas, supostamente reveladas pelo Espírito Santo aos líderes da organização e em seguida impingidas a jovens atônitos como um mandato dos céus ao qual eles jamais ousariam dizer “não”?

Por que uma ordem religiosa precisaria devotar tanto esforço ao aliciamento de leigos ricos e à constituição velocíssima de um patrimônio bilionário?

Por que uma ordem religiosa teria de se infiltrar em paróquias para dominá-las, desrespeitando as jurisdições dos vigários e constituindo-se ilegitimamente em autoridade superior à das próprias arquidioceses, ao ponto de que algumas destas, nos EUA, se vissem obrigadas a proibir todo contato entre suas paróquias e a organização invasora? Que raio de catolicismo existe numa gramsciana “ocupação de espaços” praticada contra católicos por uma militância soi disant católica?

Não, os Legionários – que mais própriamente se chamariam os Milionários — não são uma ordem religiosa normal, manchada apenas por um indivíduo maligno que por casualidade, por mera coincidência, aconteceu de ser o seu fundador.

Os Legionários são a própria mentalidade perversa desse fundador, transfigurada em máquina mundial de aliciamento, dominação psíquica, manipulação da conduta e acobertamento de crimes.

A Igreja não tem por que pedir perdão pelo mal que lhe foi infligido desde dentro por um grupo de psicopatas sequiosos de poder e riqueza, mas também não tem por que tentar salvar as aparências de uma organização que fez do bem o instrumento do mal. Esse mal deve ser exposto em toda a sua grandeza sinistra, deixando claro que não foi praticado “pela” Igreja, mas contra ela. Simplesmente não é possível preservar, ao mesmo tempo, a dignidade da Igreja e a reputação dos Legionários. Não creio que seja isso o que Bento XVI quer, mas é claro que tanto entre os inimigos da fé quanto na alta hierarquia da própria Igreja há muita gente interessada em dar a impressão de que ele quer precisamente isso.

***

N. B. — Para informações mais precisas e até mais contundentes do que as publicadas na grande mídia, leiam Jason Berry e Gerald Renner, Vows of Silence. The Abuse of Power in the Papacy of John Paul II (New York, Free Press, 2004) e J. Paul Lennon, Our Father, who Are in Bed. A Naïve and Sentimental Dubliner in the Legion of Christ (edição do autor, 2008; procurem em www.bookfinder.com), e examinem o material dos sites http://www.vowsofsilencefilm.com/ e http://regainnetwork.org/.

O deus dos palpiteiros

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de março de 2009

Se há um Deus onipotente, onisciente e onipresente, é óbvio que não podemos conhecê-Lo como objeto, ou mesmo como sujeito externo, mas apenas como fundamento ativo da nossa própria autoconsciência, maximamente presente como tal no instante mesmo em que esta, tomando posse de si, se pergunta por Ele. Tal é o método de quem entende do assunto, como Platão, Aristóteles, Sto. Agostinho, S. Francisco de Sales, os místicos da Filocalia, Frei Lourenço da Encarnação ou Louis Lavelle.

Quando um Richard Dawkins ou um Daniel Dennett examinam a questão de um “Ser Supremo” que teria “criado o mundo” e chegam naturalmente à conclusão de que esse Ser não existe, eles raciocinam como se estivessem presentes à criação enquanto observadores externos e, pior ainda, observadores externos de cuja constituição íntima o Deus onipresente tivesse tido a amabilidade de ausentar-se por instantes para que pudessem observá-Lo de fora e testemunhar Sua existência ou inexistência. Esse Deus objetivado não existe nem pode existir, pois é logicamente autocontraditório. Dawkins, Dennett e tutti quanti têm toda a razão em declará-lo inexistente, pois foram eles próprios que o inventaram. E ainda, por uma espécie de astúcia inconsciente, tiveram o cuidado de concebê-lo de tal modo que as provas empíricas da sua inexistência são, a rigor, infinitas, podendo encontrar-se não somente neste universo mas em todos os universos possíveis, de vez que a impossibilidade do autocontraditório é universal em medida máxima e em sentido eminente, não dependendo da constituição física deste ou de qualquer outro universo.

Se você não “acredita” no Deus da Bíblia, isso não faz a mínima diferença lógica ou metodológica na sua tentativa de investigar a existência ou inexistência d’Ele, quando essa tentativa é honesta. Qualquer que seja o caso, você só pode discutir a existência de um objeto previamente definido se o discute conforme a definição dada de início e não mudando a definição no decorrer da conversa, o que equivale a trocar de objeto e discutir outra coisa. Se Deus é definido como onipotente, onisciente e onipresente, é desse Deus que você tem de demonstrar a inexistência, e não de um outro deus qualquer que você mesmo inventou conforme as conveniências do que pretende provar.

O método dos Dawkins e Dennetts baseia-se num erro lógico tão primário, tão grotesco, que basta não só para desqualificá-los intelectualmente nesse domínio em particular, mas para lançar uma sombra de suspeita sobre o conjunto do que escreveram sobre outros assuntos quaisquer, embora seja possível que pessoas incompetentes numa questão que julgam fundamental para toda a humanidade revelem alguma capacidade no trato de problemas secundários, onde sua sobrecarga emocional é menor.

Longe de poder ser investigado como objeto do mundo exterior, Deus também é definido na Bíblia como uma pessoa, e como uma pessoa sui generis que mantém um diálogo íntimo e secreto com cada ser humano e lhe indica um caminho interior para conhecê-La. Só se você procurar indícios dessa pessoa no íntimo da sua alma e não os encontrar de maneira alguma, mesmo seguindo precisamente as indicações dadas na definição, será lícito você declarar que Deus não existe. Caso contrário você estará proclamando a inexistência de um outro deus, no que a Bíblia concordará com você integralmente, com a única diferença de que você imagina, ou finge imaginar, que esse deus é o da Bíblia.

Quando o inimigo da fé faz um esforço para ater-se à definição bíblica, ele o faz sempre de maneira parcial e caricata, com resultados ainda piores do que no argumento da “criação”. Dawkins argumenta contra a onisciência, perguntando como Deus poderia estar consciente de todos os pensamentos de todos os seres humanos o tempo todo. A pergunta é aí formulada de maneira absurda, tomando as autoconsciências como objetos que existissem de per si e questionando a possibilidade de conhecer todos ao mesmo tempo ex post facto. Mas a autoconsciência não é um objeto. É um poder vacilante, que se constitui e se conquista a si mesmo na medida em que se pergunta pelo seu próprio fundamento e, não o encontrando dentro de seus próprios limites, é levado a abrir-se para mais e mais consciência, até desembocar numa fonte que transcende o universo da sua experiência e notar que dessa fonte, inatingível em si mesma, provém, de maneira repetidamente comprovável, a sua força de intensificar-se a si próprio. Dez linhas de Louis Lavelle sobre este assunto, ou o parágrafo em que Aristóteles define Deus como noesis noeseos, a autoconsciência da autoconsciência, valem mais do que todas as obras que Dawkins e Dennett poderiam escrever ao longo de infinitas existências terrestres. Um Deus que desde fora “observasse” todas as consciências é um personagem de história da carochinha, especialmente inventado para provar sua própria inexistência. Em vez de perguntar como esse deus seria possível, sabendo de antemão que é impossível, o filósofo habilitado parte da pergunta contrária: como é possível a autoconsciência? Deus não conhece a autoconsciência como observador externo, mas como fundamento transcendente da sua possibilidade de existência. Mas você só percebe isso se, em vez de brincar de lógica com conceitos inventados, investiga a coisa seriamente desde a sua própria experiência interior, com a maturidade de um filósofo bem formado e um extenso conhecimento do status quaestionis.

O que mata a filosofia no mundo de hoje é o amadorismo, a intromissão de palpiteiros que, ignorando a formulação mesma das questões que discutem, se deleitam num achismo inconseqüente e pueril, ainda mais ridículo quando se adorna de um verniz de “ciência”.

Consciências deformadas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de dezembro de 2005

Semanas atrás, escrevi aqui que as denúncias contra Tom De Lay não passariam na Justiça; que eram apenas um truque sujo concebido para afastar de seu cargo na Câmara o líder republicano que constituía um pesadelo para os democratas. Dito e feito: as acusações principais já caíram. De Lay agora prepara o contragolpe judicial contra o promotor Ronnie Earle e provavelmente vai acabar com a carreira do distinto. Mas nem por isso conseguirá voltar à liderança em tempo de reconquistar seu prestígio antes das eleições parlamentares de 2006. O golpe baixo acertou em cheio. Uma coisa é estar limpo perante os tribunais; outra é lavar uma imagem coberta de infâmia pela vasta e persistente campanha de mídia que secundou (até no Brasil, para vocês verem como essas coisas vão longe) a investida de Ronnie Earle, tarimbado difamador judicial de inimigos políticos. Não que a palavra dos jornalistas pese alguma coisa nas eleições: uma recente pesquisa da Gallup mostra que apenas 24 por cento dos americanos acreditam um pouco neles ( http://www.mediainfo.com/eandp /news/article_display.jsp?vnu _content_id=1001614003 ). Mas pesa no ambiente social em torno, que pode oprimir com todo o peso do inferno. A prova de inocência não remove esse peso um só milímetro. De Lay continuará com a fama de escroque, e a esquerda ainda ganhará mais um mártir: Ronnie Earle.

Ninguém, como o pessoal da mídia e da intelligentzia esquerdista, tem a capacidade de continuar fingindo crença numa mentira longo tempo depois de desmascarada. Vejam, por exemplo, o último filme de George Clooney, Good Night, and Good Luck , que glorifica um jornalista medíocre, Edward R. Murrow (personificado por David Strathairn), por haver combatido o senador Joe McCarthy. A velha choradeira antimacartista ainda funciona, mais de uma década depois de provado que nenhum dos investigados do famoso Comitê McCarthy era vítima inocente, que todos eram mesmo devotados colaboradores secretos de uma ditadura genocida, usando dos direitos democráticos para destruir a democracia. Depois da abertura dos arquivos de Moscou e da publicação dos comunicados entre a embaixada soviética e o Kremlin no período da Guerra Fria, pode-se acusar McCarthy de tudo, inclusive de melar a campanha anticomunista por inabilidade afoita, mas não de ter errado os alvos. Se têm dúvidas, leiam Joseph McCarthy, de Arthur Herman (Free Press, 1999), e Venona: Decoding Soviet Espionage in America , de John Earl Haynes e Harvey Klehr (Yale Univ. Press, 2000). O filme é tão besta que, falando o tempo todo de inocentes acusados, não é capaz de mostrar um só deles. Mas a República Popular de Hollywood é capaz de ver nisso mesmo a prova de que eles existiam aos milhares. Um só chavão vale mais do que mil imagens que o desmintam.

O hábito da mentira e do auto-engano está de tal modo arraigado na elite esquerdista que se tornou como que sua segunda natureza. A amplitude do fenômeno está tão bem documentada hoje em dia que ninguém pode se considerar bem informado se ainda se surpreende com ele. Para quem está habituado ao assunto, é até redundante, por exemplo, a proposta do livro, no mais interessantíssimo, Do As Say, Not As I Do (“Faça o que eu digo, não o que eu faço”, New York, Doubleday, 2005), em que o jornalista Peter Schweitzer, autor de uma maravilhosa biografia de Ronald Reagan, compara os discursos do beautiful people esquerdista aos seus feitos na vida real. A maldade que Paul Johnson fez com os gurus clássicos do pensamento esquerdista em Intellectuals , Schweitzer faz com seus seguidores na política, na academia e no show business . O resultado, como não poderia deixar de ser, é arrasador. O enfatuado Michael Moore, fiscal número um da moralidade alheia, demoniza a Hallyburton, acusando a empresa de petróleo de lucrar com a guerra. Quando se vai ver, o próprio Moore é acionista da Hallyburton – e, tal como os demais acionistas, não ganhou coisa nenhuma com a guerra. Aliás ele vivia declarando que não tinha ações da bolsa: Scweitzer publica a lista de todas elas, extraída da sua declaração de rendimentos, com a assinatura do declarante. Al Franken, assanhado comentarista da estação clintoniana Radio America e pretendente a adversário do conservador Rush Limbaugh, chama a América inteira de racista e posa de entusiasta da lei de quotas — mas, entre seus empregados, a quota de negros é de menos de um por cento. Nancy Pelosi, enfezadíssima líder democrata na Câmara, é tão famosa como defensora dos direitos sindicais que suas campanhas eleitorais se tornaram recordistas de contribuições dos sindicatos – mas suas empresas vinícolas, hoje entre as mais prósperas dos EUA, não aceitam empregados sindicalizados. Noam Chomsky, acusador emérito do Pentágono, vive de um discreto contrato milionário com… o Pentágono. Já nem falo nada de Ted Kennedy, dos Clintons e de George Soros. Não vou tirar de vocês o prazer de ler o livro – em inglês, é claro, pois obras dessa natureza não furam o cinto de castidade que protege a virgindade intelectual brasileira.

Se depois de saber dessas coisas vocês ainda tiverem estômago para agüentar lixo esquerdista de maior tonelagem, sugiro a leitura de Stalin: The Court of The Red Tsar , de Simon Sebag Montefiore (Vintage Books, 2003), de Mao: The Unknown Story , de Jung Chang e Jon Halliday (Knopf, 2005) e de Fidel: Hollywood’s Favorite Tyrant , de Humberto E. Fontova, já citado aqui (Regnery, 2005). Estão, na opinião geral, entre os melhores estudos biográficos dos três líderes esquerdistas mais conhecidos do mundo. E o traço mais saliente das vidas dos três é a sua total inescrupulosidade, sadismo, crueldade, com doses de malícia e covardia quase inimagináveis para o cidadão comum. Tudo isso aliado, é claro, à pretensão de personificar a autoridade da presciência histórica, habilitada a julgar os vivos e os mortos desde as alturas de uma virtude quase angélica. Sem dúvida, o movimento esquerdista mundial criou um tipo humano característico, marcado pela presunção de impecabilidade, pela licença ilimitada para praticar o mal com consciência tranqüila e sobretudo pela compulsão autovitimizante que leva cada um desses indivíduos, no alto do poder despótico, a sentir-se um pobre menino incompreendido pelo coração duro dos pérfidos conservadores.

Junte todo esse material na sua cabeça e depois medite o seguinte ponto: quem conhecesse essas coisas em 2002 teria caído no engodo da “ética” petista, mesmo não possuindo nenhum indício concreto de corrupção no partido? A resposta é um decidido “Não”.

Mas, saltando por cima da atualidade, os dados também sugerem a pergunta sobre as origens: como foi possível, historicamente, o surgimento e a ascensão de tipos humanos tão formidavelmente ruins, perto dos quais qualquer tirano da antigüidade, qualquer inquisidor da Idade Média, qualquer corrupto do Renascimento ou, mais ainda, qualquer líder conservador como Disraeli, Churchill ou a sra. Thatcher, por mais estragado que seja, fica parecendo São Francisco de Assis?

A resposta tomaria vários volumes, mas um fator incontornável é a mudança do eixo da auto-imagem moral íntima dos indivíduos humanos, inaugurada pelo movimento revolucionário entre os século XVIII e XX. Os documentos mais vivos dessa mudança são, evidentemente, as narrativas autobiográficas, que se tornam abundantes nessa época e, a partir das Confissões e Devaneios de Jean-Jacques Rousseau, contrastam agudamente com suas precursoras antigas e medievais, cujo modelo são as Confissões de Sto. Agostinho. Todo discurso, ensina a arte retórica, tem um destinatário ideal. Sto. Agostinho faz por escrito o traslado ampliado do que seria uma confissão sacramental. Seu ouvinte, por definição, não pode ser enganado, porque é onissapiente. A consciência da sua presença permanente defende Agostinho contra a tentação da mentira interior, mas defende-o também do desespero, da autocondenação radical, da dramatização excessiva dos próprios males, porque aquela presença é também a do perdão universal.

Jean-Jacques, por seu lado, fala para a “opinião pública”, cujos favores solicita. Não é de espantar que procure enganá-la por todos os meios, enganando-se a si próprio por tabela. Quando fala de seus pecados, ele ou os esconde por completo ou, ao contrário, os exagera histrionicamente, deleitando-se nas suas próprias misérias, quase ao mesmo tempo que admite, com modéstia exemplar, ser portador de qualidades morais jamais superadas e, pensando bem, a alma mais linda e pura da Europa. Substituída a onissapiência amorosa do ouvinte pela extensão quantitativa de um “público” que o autor ao mesmo tempo corteja e despreza, a imagem da alma refletida também se modifica proporcionalmente, deformando-se à medida da ilusão coletiva, móvel e incerta, na qual o autor busca um espelho onde enxergar-se objetivamente, sem lembrar-se que é ele mesmo que a está criando pela influência que exerce sobre o público.

Nenhum homem alcança a onissapiência, mas saber que ela existe o ajuda a não se enganar, quando ele, ao ingressar na aventura do autoconhecimento, se sente observado por olhos eternos que “sondam os rins e os corações”. Durante séculos a disciplina do exame de consciência, à luz dos Dez Mandamentos, deu a cada homem o máximo de objetividade possível no julgamento de si. Já os olhos da platéia se movem conforme os gestos do ator, que a manipula ao mesmo tempo que se submete às suas preferências do momento.

A modernidade começa com essa mutação fraudulenta da consciência de si. Que ainda levasse dois ou três séculos para que monstros de falsa consciência como Stalin, Mao e Fidel fossem considerados modelos de virtude, é algo que se deve, é claro, à subsistência discreta do antigo critério de julgamento no seio mesmo da cultura que o nega e que desejaria extingui-lo para sempre.

Se ainda há um pouco de moral e dignidade no mundo, é porque algo da consciência de ser visto por um observador onissapiente, imune às flutuações da alma individual e da platéia coletiva, subsiste no coração humano. Em plena apoteose do laicismo moderno, ainda há muitos seres humanos que caminham diante dos olhos do Senhor. Eles são a única régua e medida para o julgamento dos demais. Por isso o Evangelho diz que vão julgar o mundo. O que os outros pensem ou deixem de pensar não pesa nisso no mais mínimo que seja.

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