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Estupidez endêmica

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 5 de novembro de 2015

Algumas ideias espalham-se com grande sucesso não apesar de serem estúpidas, mas precisamente porque o são. A estupidez maciça exerce um poder anestésico e paralisante sobre a inteligência humana, detendo o seu movimento natural e fazendo-a girar em falso em torno de alguma crença idiota por anos, décadas ou séculos, incapaz de livrar-se do seu magnetismo perverso ou de pensar o que quer que seja fora do círculo de ferro da idiotice consagrada.

O exemplo mais assombroso é este:
É impossível descobrir ou traçar qualquer conexão lógica entre as liberdades civis e a estatização dos meios de produção. São esquemas não somente heterogêneos, mas antagônicos. Antagônicos lógica e materialmente.
Qualquer garoto de ginásio pode compreender isso tão logo lhe expliquem o sentido dos dois conceitos. A candura com que tantos homens adultos falam em “socialismo com liberdade” – isto quando não chegam a acreditar que essas duas coisas são a mesma, ou que uma decorre da outra com a naturalidade com que as bananas nascem das bananeiras – é a prova inequívoca de uma deficiência intelectual alarmante, que desde há um século e meio se espalha sem cessar pelas classes cultas, semicultas e incultas com a força avassaladora de uma contaminação viral, sem dar sinais de arrefecer mesmo depois que a experiência histórica comprovou, de maneira universal e repetida, aquilo que poderia ser percebido antecipadamente por mera análise lógica e sem experiência histórica alguma.
A pergunta é simples e brutal: como é possível que a centralização do poder econômico, expandindo-o automaticamente sobre toda a sociedade e investindo-o da força suplementar do aparelho repressivo do Estado, venha a torná-lo menos opressivo e tirânico do que milhares de poderes econômicos parciais e limitados, espalhados como farelo, desprovidos do poder de polícia e em perpétua concorrência uns com os outros?
Ninguém deveria precisar de mais de alguns segundos para atinar com a resposta óbvia: Não, não pode. Nem se pode negar que os próprios clássicos do “socialismo científico” tenham ajudado a tornar essa resposta ainda mais patente, quando declararam alto e bom som que o que se seguiria ao capitalismo não seria uma democracia, de qualquer tipo que fosse, e sim a ditadura do proletariado.
O que eles não explicaram jamais, nem nenhum de seus seguidores pediu jamais que o fizessem, foi como essa ditadura, uma vez vitoriosa e consolidada, poderia transmutar-se numa democracia exceto pelo método de liquidar-se a si mesma, dissolvendo o monopólio estatal e distribuindo o poder econômico entre os particulares – outra impossibilidade lógica ilustrada por uma longa e sangrenta experiência histórica que um pouco de inteligência tornaria perfeitamente dispensável.
Em suma, a fé nas virtudes libertárias do socialismo, mesmo quando tênue e matizada, é sinal de uma deficiência cognitiva grave, que se espalha como praga e se arraiga no fundo dos cérebros por virtude da própria estupidez originária que a produz e determina.
Mas, como uma vez aprisionado na idiotice o cérebro humano nada consegue conceber fora dela ou sem referência a ela, o sucesso propagandístico da ideia socialista trouxe consigo uma multidão de cretinices derivadas e secundárias, cujo poder de persuasão não se rende nem mesmo ante a evidência dos fatos mais constantes e repetidos.
Uma delas é a crença, hoje um dogma de evangelho, de que a educação universal obrigatória tem o poder de aplanar as diferenças socioeconômicas. Pois deveria ser lógico e intuitivo que, se a exigência de credenciais escolares se impõe até nas profissões mais simples e modestas, credenciais mais altas e difíceis de obter se espalharão de maneira concomitante e automática entre as profissões mais prestigiosas e rentáveis, deslocando para cima, sem alterá-lo, o quadro inteiro da estratificação social.
O sociólogo Randall Collins, no clássico estudo The Credential Society. An Historical Sociology of Education and Stratification (New York, Academic Press, 1979), demonstrou que, exceto por um curto período durante o New Deal, foi exatamente isso o que se passou nos EUA: o reino das credenciais escolares não democratizou nada, apenas instituiu, nos andares mais altos da sociedade, a república das sinecuras milionárias, corrompendo de quebra o zé-povinho ao inocular na sua mente a ambição inalcançável da ociosidade bem remunerada.
Mas, assim como toda ideia estúpida tem o condão de paralisar a intuição lógica, mais ainda ela debilita e por fim suprime a capacidade de aprender com a experiência histórica, que não é senão a longa e dolorosa demonstração indutiva daquilo que, para uma inteligência normal, já estava demonstrado antes por mera análise dos conceitos envolvidos.
Pouco importando o seu nível formal de instrução, pessoas contaminadas por essa paralisia endêmica das inteligências naufragam num oceano tão escuro e denso de erros de percepção e raciocínio que terminam incapazes de conhecer a sua própria posição na sociedade e os efeitos mais óbvios das suas próprias ações, mesmo e sobretudo quando receberam treinamento universitário em ciências sociais.
O exemplo mais óbvio é o dos sociólogos, economistas, juristas e cientistas políticos de esquerda, quando alardeiam que as universidades são o “aparato ideológico da burguesia”, construído para perpetuar a hegemonia cultural do capitalismo. Pois proclamam isso nas mesmas universidades estatais que eles próprios dominam sem a menor interferência da burguesia e nas quais toda objeção capitalista ao império do marxismo é punida com boicotes, chacotas e notas baixas, se não com o fim abrupto de uma carreira universitária.
É óbvio que essas pessoas, literalmente, não sabem onde estão nem percebem o que fazem. Estão perdidas no espaço e no tempo — o que não impede que o restante da população continue confiando nelas para que lhe expliquem como a sociedade funciona.

A técnica da opressão sedutora

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de dezembro de 2011

Hoje em dia, nos EUA, um pai de família pode ser expulso de casa, proibido de ver os filhos e obrigado a pagar quase todo o seu salário em pensão de alimentos, sem que haja uma só prova de que ele fez ou pensou em fazer qualquer coisa de errado. Basta que sua mulher diga à polícia – sem uma testemunha sequer – que ele ameaçou surrá-la ou abusar das crianças. Quando o infeliz é avisado de que tem vinte e quatro horas para sair do pedaço e ver sua vida desfazer-se no ar como fumaça, ele vai ao delegado e reclama que não é justo ser condenado sem o mínimo direito de defesa. E a autoridade, com o ar mais tranqüilizante do universo, responde: “Meu amigo, não há necessidade de defesa, pois o senhor não está sendo acusado de nada. É apenas uma medida cautelar — que pode, é verdade, ser renovada indefinidamente e durar pelo resto da sua porca vida. O senhor só será preso se violar a ordem, tentando encontrar-se com seus filhos fora dos horários prescritos (se algum há), passando perto da sua antiga casa num raio de, digamos, dois quilômetros, ou se metendo a besta caso a sua digníssima, liberta da sua opressiva presença, vá para a cama com um, dois ou quinze homens. Passe bem.”

Cinqüenta por cento das crianças americanas vivem sem um dos pais – quase sempre o pai. Uma das conseqüências diretas é o aumento exponencial dos casos de pedofilia doméstica, onde as estatísticas mostram que o culpado é quase que invariavelmente o namorado da mãe. Nas universidades, os discípulos de Georg Lukács e Theodor Adorno esfregam as mãos, excitadíssimos, vendo cumprir-se sem maiores dificuldades, e com o comovido apoio do bom-mocismo protestante e católico, o projeto marxista de destruição da família, que seus mestres viam como condição indispensável ao triunfo do socialismo.

Tudo isso começou com os ares mais inofensivos que se pode imaginar, como campanha de proteção à mulher contra a “opressão machista”. Quem, em sã consciência, seria contra uma coisa dessas? Pouco a pouco, à medida que adquire força de lei, a providência humanitária vai ampliando seu raio de alcance até transformar-se num pesadelo, num instrumento de opressão mil vezes pior do que os males que lhe serviram de pretexto, porque agora é oficial e se sustenta no poder da polícia, dos tribunais, do sistema educacional e da propaganda maciça que demoniza os acusados ao ponto de ninguém ter mais a coragem de dizer uma palavra em favor deles. E os resultados sociais catastróficos? São explicados como efeitos de outras causas, que por sua vez dão motivo a novas medidas humanitárias, entregando cada vez mais a grupos ativistas cínicos o monopólio da autoridade moral e estendendo ilimitadamente o poder de intenvenção da burocracia estatal na vida privada. O problema é, por exemplo, a pedofilia? Acusa-se a educação católica (embora o número de pedófilos entre os padres seja menor do que em qualquer outro grupo de educadores) e, com um pouco de jeito, persuade-se até o Papa a se prosternar ante a mídia vociferante. Os meninos criados sem um pai são inseguros, tímidos, fracos? Ótimo. Com alguma lábia, são levados a crer que são transexuais latentes, inadaptados, coitadinhos, no meio social machista. São turbulentos, anti-sociais? Melhor ainda. Eis a prova de que a sociedade capitalista é intrinsecamente violenta, geradora de brutalidades. E assim por diante. Cada novo efeito maléfico da guerra cultural já traz preparada, de antemão, uma teoria engenhosa que lança as culpas sobre a família, a religião, a cultura, o capitalismo – sobre tudo e sobre todos, exceto os autores do efeito, os ativistas pagos com dinheiro dos contribuintes para planejar, nas universidades, a destruição meticulosa e sistemática da sociedade.

A técnica é sempre a mesma. Primeiro, descobre-se um grupo social descontente e designam-se os culpados, produzindo-se contra eles uma tempestade de livros, filmes, teses universitárias, programas de TV, artigos de jornal, conferências, debates, o diabo. Apontados em público, olhados com suspeita pela vizinhança, os membros do grupo acusado começam a achar prudente marcar distância dele, mudando de vocabulário, de atitudes, e por fim juntando sua voz ao coro dos acusadores, para maior verossimilhança da conversão. Ato contínuo, concebem-se leis e medidas administrativas para amarrar as mãos dos malvados e, depois, puni-los. Vitoriosa a batalha legislativa, começa a etapa decisiva: “ampliar a democracia”, estender a área de aplicação dos “direitos” conquistados até que, dialeticamente, se convertam em meios de opressão estatal contra os quais já nada se poderá dizer sem incorrer, ipso facto, em suspeita de reacionarismo nostálgico dos velhos males, já superados, “incompatíveis com o alto estágio de civilização em que nos encontramos”.

O circuito é tão repetitivo que suas vítimas só não o percebem com clareza porque, no decorrer do processo, foram consentindo em cortar suas próprias línguas e só falar na linguagem de seus acusadores, tornando-se, automaticamente, incapazes de se proteger. No Brasil, a CNBB, enfatizando seu horror a “toda discriminação” no instante mesmo em que move débil oposição à PL-122, é o exemplo mais claro no momento.

Pensem nisso quando se sentirem tentados a crer que as leis “anti-homofóbicas” têm algo a ver com os direitos humanos dos homossexuais ou de quem quer que seja. Têm a ver, isto sim, com a supressão da liberdade de consciência, inclusive a dos próprios homossexuais que desejarem permanecer cristãos e, amanhã ou depois, defender seu simples direito de pensar – como o pensaram Oscar Wilde, Julien Green, Octávio de Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Penna e tantos outros homossexuais ilustres — que aquilo que fazem na cama, embora lhes pareça irresistível e sumamente delicioso, é um pecado.

Uma lição tardia – IV: O reino do ódio

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de novembro de 2011

No artigo anterior falei do zelo devoto com que a matilha do “Roda Viva” defende a honra e o prestígio do movimento comunista, atacando seus inimigos a dentadas e habituando o público a dar por pressuposto, sem a mais mínima discussão, que ninguém pode ser anticomunista por motivo moralmente respeitável ou intelectualmente relevante. Nenhuma apologia do comunismo é mais eficaz e penetrante do que essa. Discursar em favor da estatização da economia, argumentar pela teoria da luta de classes, enaltecer o futuro brilhante da humanidade no jardim das delícias do socialismo – nada disso tem a força persuasiva da prática reiterada, tanto mais sedutora quanto mais implícita, de atribuir aos comunistas e seus parceiros o monopólio do bem e da virtude, reduzindo seus adversários e criticos à condição de delinqüentes pérfidos movidos por interesses egoístas. A propaganda comunista ostensiva colocaria o seu praticante na difícil contingência de ter de defender o indefensável: o genocídio, a tirania, o trabalho escravo, a miséria. Muito mais prático é contornar o assunto, evitar até mesmo a palavra “comunismo”, omitir cuidadosamente as comparações e em vez disso concentrar as baterias no “trabalho do negativo”: a demonização constante e sistemática dos inimigos, donde resulta, por irrefreável automatismo mental, a canonização dos amigos, reforçada aqui e ali por alguma louvação discreta e comedida o bastante para não dar impressão de sectarismo. Toda argumentação explícita em favor de alguma idéia ou partido desperta irresistivelmente o impulso da contestação. A devoção tácita e indireta, consagrada em hábito inconsciente, inibe e paralisa a discussão, dando ao objeto de culto aquele poder mágico cuja conquista Antonio Gramsci considerava o objetivo supremo da propaganda comunista: “a autoridade onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.

Tal tem sido o objetivo estratégico e a única razão de ser da TV Cultura desde há muitos anos, e especialmente o de um programa cujo nome já é, por si, um dos emblemas consagrados da autobeatificação mitológica da esquerda como vitima santa e inocente da maldade direitista.

Chamarei a essa devoção “fanática”? O termo é inexato. O fanatismo supõe uma crença formal, positiva, declarada. Os homens do “Roda Viva”, como em geral os esquerdistas brasileiros, não necessitam de nada disso. O esquerdismo que os unifica, que lhes garante o esprit de corps, não consiste em nenhuma fé, em nenhuma doutrina, em nenhum projeto de sociedade explícito o bastante para poder ser discutido e, eventualmente, impugnado. Consiste unicamente no ódio ao inimigo, um inimigo que ao mesmo tempo não querem conhecer nem compreender, do qual só querem saber, com seletividade obstinada e fiel, o que podem dizer contra ele. No Brasil, a deformidade congênita da “imaginação esquerdista” descrita por Lionel Trilling tornou-se obrigação legal, critério de veracidade na mídia, mandamento número um da moral e princípio fundador da educação.

No fundo, todo esquerdismo, hoje em dia, é isso e nada mais que isso. Há muito tempo os comandantes do processo já desistiram de impor ao movimento revolucionário a unidade da vulgata marxista-leninista que dava aos militantes de outrora uns ares de “intelectuais populares” não desprovidos de certa nobreza. Hoje preferem dirigir as massas na base de slogans e palavras-de-ordem puramente emocionais, sem um arremedo sequer de conteúdo sociológico ou filosófico. Um marxista às antigas chamaria a isso “irracionalismo”, mas racionalismo e irracionalismo só existem no plano da discussão teórica. Esta foi substituída pelo engenharia comportamental, e, nessa clave, nada pode ser mais racional que a manipulação científica da irracionalidade alheia. Os arruaceiros de Nova York acreditam combater a alta finança internacional, mas seguem ordens de George Soros, que é a própria alta finança encarnada, apóiam o governo Obama, que é um pseudópodo de Wall Street, clamam por uma moeda mundial, que é a menina-dos-olhos da elite bancária globalista, e bradam de ódio a Rupert Murdoch, um homem de indústria totalmente alheio a especulações financeiras. Se não têm a menor idéia de contra quê estão lutando, tanto melhor: sua fúria pode ser canalizada contra qualquer alvo que o comando revolucionário escolha no momento.

A unidade da esquerda militante hoje em dia é simplesmente a do ódio – um ódio que se torna tanto mais radical e intolerante quanto mais vagos e indefinidos os objetos contra os quais se volta e as metas que nominalmente o inspiram. Como explicar, fora dessa perspectiva, o fato de que a esquerda internacional lute, ao mesmo tempo, pelo império do gayzismo e pelo triunfo do mais estrito moralismo islâmico, sem que surja, no seu seio, a mais mínima discussão a respeito, o mais leve sentimento de desconforto ante uma contradição intolerável?

É aí que se deve buscar também a raiz da facilidade com que uma militância inflada de retórica autobeatificante se acomoda, sem o mais mínimo escrúpulo de consciência, aos interesses do narcotráfico e do banditismo organizado em geral. Quando os sentimentos morais prescindem de qualquer deferência para com os dados da realidade e se condensam no puro ódio a um objeto indefinido, é inevitável que já não haja mais distância entre a presunção de santidade e o mergulho na treva mais funda do crime e da maldade.

Isso é a esquerda, hoje em dia: a síntese militante das ambições mais altas com os sentimentos mais baixos. A tensão insolúvel entre os dois pólos traz como conseqüência incontornável a redução da vida psíquica aos seus mecanismos mais toscos e elementares, o enrijecimento numa atitude de permanente autodefesa paranóica, a produção obsessiva de novos pretextos de ódio e, portanto, a supressão de toda compreensão humana, trocada por uma autopiedade cada vez mais exigente e rancorosa.

Em muitos países esse fenômeno está limitado às massas militantes, mas, no Brasil, onde a hegemonia esquerdista reina sem contraste, ele se tornou o padrão e norma da cultura nacional.

Eis o motivo pelo qual a lição de Lionel Trilling já não pode ser aprendida nesta parte do mundo. Uma esquerda civilizada, capaz de apreender os sentimentos morais de seus adversários (condição sine qua non da alternância democrática no poder), não tem razão de existir, nem possibilidade de vir a existir, num ambiente onde esses adversários se tornaram tão pequenos e inofensivos que a esquerda não precisa mais compreendê-los: pode inventá-los como bem lhe interesse.

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