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A ingenuidade da astúcia

Olavo de Carvalho

O Globo, 23 de setembro de 2000

O século XX julgou-se muito astuto porque descobriu, com Marx, Freud e Nietzsche, que as mais altas qualidades humanas podiam encobrir preconceitos de classe, desejos recalcados e a busca de compensações para o ressentimento.

À luz dessas revelações, a imagem dos grandes homens que os séculos anteriores haviam exaltado fragmentou-se numa poeira de pequenas misérias, a tal ponto que se tornou necessário explicar seus feitos e obras notáveis como projeções imaginárias do meio cultural.

Pelo fim do século, virou moda nos círculos universitários a produção de biografias pejorativas, empenhadas em ressaltar pecados, defeitos e pontos cegos nas almas dos indivíduos melhores, de modo a sugerir à multidão de leitores que nesses personagens nada havia de especial que não tivesse sido depositado lá pelos acasos da fama, por uma bem orquestrada campanha de publicidade ou por um concurso de arranjos convenientes aos interesses da classe dominante.

Tendo assim levado a conseqüências extremas a propensão moderna de deleitar-se na autocorrosão masoquista, o século XX parecia não ter maior motivo de orgulho do que a inflexível suspicácia que fizera dele, depois de tantos séculos de sonhos e desvarios, o primeiro a não se deixar enganar.

Essa estranha soberba de olhar frio, que se compraz na visão da própria miséria porque ela investe seu portador do poder soberano de desfazer com uma frase lacônica os mais altos valores e esperanças, é a perfeita inversão da humildade cristã, que só vasculha com idêntico rigor os próprios pecados para enaltecer através deles a glória da cura divina.

Enquanto o cristão se humilha para que Deus o exalte, o homem moderno se humilha para humilhar os outros. Deus nos amedronta porque conserva em Suas mãos, em vez das nossas, o segredo da salvação; o discurso da modernidade nos amedronta porque nos persuade de que possui o segredo último de que não há salvação.

O modelo supremo de sabedoria a que aspira a inteligência moderna é, indiscutivelmente, o demônio. Ele não pode nos salvar; mas pode justificar de maneira cada vez mais científica a nossa danação. Essa ascese demoníaca tornou-se tão disseminada e obrigatória nos meios acadêmicos, que praticamente chegou a se identificar com a imagem do saber científico em geral, ao ponto de, quando se fala em fé e caridade hoje em dia, ser quase sempre no tom de uma concessão paternal que o rigor intelectual faz às necessidades pueris de consolo e de ilusão, incontornáveis naquela parcela majoritária da espécie humana que ainda não alcançou os patamares mais altos de consciência reservados aos acadêmicos de olhar frio e sorriso desdenhoso.

Foi numa avançada etapa desse desenvolvimento que surgiu a idéia de esfarelar, depois das imagens divinas, as próprias qualidades humanas que as manifestavam. A atração que as biografias pejorativas e os diagnósticos insultuosos da psique dos grandes homens exercem sobre a massa dos leitores “médios” explica-se facilmente pelo mecanismo de sedução. “Sedução” vem de “sub ducere”, conduzir ou atrair por baixo: dominar a mente de um sujeito apelando às suas piores qualidades, às suas fraquezas, aos seus temores.

Sobretudo à sua inveja. Inveja é um sentimento de inferioridade que encontra alívio na contemplação das inferioridades reais ou imaginárias dos outros. Incapaz de superar suas fraquezas, o invejoso consola-se com o pensamento de que todos as têm em dose igual. É a democracia dos complexos.

Esse tipo de literatura acadêmica visa a despertar no leitor aquilo que John Le Carré chamou “a típica percepção corrosiva dos fracos”. Tê-la disseminado entre as classes letradas fez o século XX sentir-se especialmente astuto.

Mas o que parecerá supremamente ingênuo aos futuros historiadores é que tão vastas porções das classes letradas de uma época acreditassem na possibilidade de apreender a personalidade e o gênio de um Goethe, de um Shakespeare — isto para não mencionar os santos e os profetas –a partir do exame das deficiências e pecados que eles tinham em comum com o restante da humanidade, sem ter em conta o que tinham de diferente. Porque, justamente, se suas fraquezas são iguais às de todo mundo, resta explicar por que nem todo mundo consegue escrever o “Fausto” ou o “Hamlet” – e muito menos operar curas milagrosas ou fazer profecias confirmadas pelo tempo.

Para aliviar a incomodidade dessa questão, a engenharia acadêmica concebeu teorias como o desconstrucionismo e a estética da recepção, que, desviando a atenção dos leitores da unidade estrutural na qual se apreende o sentido superior das grandes obras, dispersam sua inteligência na contemplação da infinidade de elementos soltos que as compõem ou da variedade inesgotável de reações que os públicos de várias épocas e lugares tiveram ante essas obras.

Invariavelmente, da dispersão da inteligência segue-se o esfarelamento do seu objeto: no fim o que é negado é a própria integridade das obras, o que é o mesmo que dizer: sua existência.

Com isto fica definitivamente sanada a incomodidade acima referida, pois ninguém se sente inferiorizado diante do que não existe.

Que milhares de invejosos em todo o mundo cedessem tão facilmente à tentação desse alívio barato e chegassem a acreditar piamente nos truques intelectuais pueris concebidos para obtê-lo, eis o que fará do século XX, na visão dos tempos vindouros, o mais ingênuo século da História.

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