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Sujeitinho temível

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de fevereiro de 2013

É praticamente inevitável que, num meio social cada vez mais burro e tacanho, cada vez mais materialista, imediatista e dinheirista, um trabalho como aquele que desenvolvo nos meus cursos e conferências desperte todo um florescimento de suspeitas e fantasias paranóicas.

Se neste país nem mesmo as pessoas de classe média e alta têm alguma ideia do que seja um filósofo no sentido vulgar, profissional e burocrático do termo, como poderiam entender alguém que busca, na linha de um Louis Lavelle, de um Dietrich von Hildebrand ou de um Gabriel Marcel (autores dos quais nunca se ouve falar na úichpi ou na  púqui), restaurar a síntese clássica de cultura, pensamento e vida, a união indissolúvel do saber e do ser, a filosofia como uma disciplina não só da inteligência, mas da alma?

Incapazes de encontrar para essa atividade uma classificação tranquilizante na nomenclatura das profissões usuais, muitos são os que conjeturam, para explicá-la, toda sorte de hipóteses extravagantes. O temor caipira mescla-se aí ao fenômeno mais geral e disseminado da adolescência prolongada, gerando as reações mais incríveis e estratosféricas.

Sabendo que vez por outra vêm estudantes à minha casa, para aí impregnar-se um pouco de um estilo de vida que dê substância existencial ao que aprenderam nas minhas aulas, papais e mamães, preocupados com a segurança e bem-estar de seus bebês de vinte, trinta ou quarenta anos, perguntam angustiadamente se não se trata de uma seita, de um movimento subversivo ou mesmo de alguma rede internacional de tráfico de escravas brancas, e advertem as criancinhas para que se mantenham a uma prudente distância de coisas tão horríveis.

Aqueles que leram dois ou três livrinhos, o suficiente, no Brasil, para fazer de um retardado mental um jornalista, um professor, um “formador de opinião”‘, dão expressão pública a essas fantasias domésticas, fornecendo, para explicar as minhas atividades malignas, teorias que, decerto, dizem mais a respeito deles próprios que de qualquer coisa que tenha a ver com a minha pessoa de carne e osso.

Conforme o seu grupo de referência – pois no Brasil não há pensamento individual, só o bom e velho “imbecil coletivo” –, arrumam suas conjeturas e suspeitas numa linguagem que simula a racionalidade-padrão do seu meio social, às vezes chegando até a acreditar que com isso disseram algo de tremendamente científico.

A hipótese da “seita”, com direito a escravização mental e genuflexões ante o guru, foi posta em circulação pelo sr. Rodrigo Constantino, o qual não precisou, para isso, nem frequentar  minhas aulas, nem coletar depoimentos de vítimas traumatizadas, nem muito menos ler os meus livros de filosofia, que passam léguas acima da sua cabecinha, bastando-lhe tão-somente lamber por alto meia dúzia de meus artigos e, vendo aí algumas referências a Deus, concluir que se tratava de religiosidade fanática e doentia (adjetivos redundantes, já que para ele toda religiosidade é isso).

Sendo o sr. Constantino aceito em certos círculos como porta-voz do liberalismo econômico iluminista, disciplina em cujo domínio o ex-ministro Ciro Gomes demonstrou que ele tem a agilidade de uma tartaruga de pernas para o ar, é compreensível que ele pense que todo mundo que não é igual a ele nem comunista deva ser um esquisitão do tipo Rajneesh ou Reverendo Moon.

Já um tal sr. Bertone não sei das quantas, que se diz psicólogo – e talvez o seja mesmo, pois no Brasil tudo é possível – assegura que sou um representante vivo do “patriarcalismo burguês”, daqueles que em casa impõem o mais severo moralismo repressivo, mas, quando os filhos chegam aos quatorze ou quinze anos, os levam a um puteiro para que aprendam a ser machões exemplares. Na verdade, a instituição mais próxima de um puteiro à qual fui com meus filhos foi o jardim zoológico. Juro que jamais os levei ao Congresso Nacional.

Em contraste com o sr. Bertone, outros disseram que sou  homossexual ou transexual furioso, desses que não podem ver homem sem ter chilique, e que viajei para a Europa para trocar de sexo, só restando, na minha modesta opinião, esclarecer qual sexo eu tinha antes e qual tenho agora, excluída a hipótese de que eu haja me submetido àquela sangrenta operação duas vezes, de modo a que ninguém desse pela diferença.

Em certos meios militares, estimulados pelo conhecimento da minha amizade de juventude com os srs. José Dirceu e Rui Falcão, e atordoados ante o fato de que eu fizesse críticas à ditadura ao mesmo tempo que a defendia contra acusações demasiado inventivas, correu a história de que eu era um agente de desinformação, um comunista enrustido, íntimo de Nicolae Ceaucescu (o qual estava morto já fazia dez anos quando cheguei à Romênia pela primeira vez).

Não espanta, pois, que aqueles que receberam na universidade algumas noções de marxismo – ou do que se entende por isso nas regiões intelectualmente inóspitas do Terceiro Mundo –, não consigam resistir à tentação de me explicar,  segundo os cânones dessa doutrina, vendo em mim um agente pago do imperialismo internacional, o qual imperialismo, para todos os fins de fato e de direito, fica representado nessa história pelo Diário do Comércio.

O nosso já conhecido sr. Patschiki alerta a seus companheiros que, de parceria com essa organização fascista, planejo matá-los a todos. Ele acredita mesmo nisso, e não me parece que seja possível demovê-lo dessa convicção aterrorizante sem umas boas palmadas no traseiro, não muito eficientes, no entanto, porque ele as interpretará como tentativa de assassiná-lo pela parte mais elevada da sua inteligência.

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