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A apoteose da vigarice

Olavo de Carvalho


Editorial Diário do Comércio, 1o de dezembro

A gravidade dos fatos na atualidade brasileira contrasta de tal modo com o estilo eufemístico dos discursos, que se diria que o medo de ter medo paralisou todas as inteligências, trocando-as pela compulsão geral de exibir bom-mocismo e pensamento róseo. Ninguém quer dizer o que vê, apenas o que imagina que os outros querem ouvir.

Iludem-se tragicamente aqueles que pensam que o problema do Brasil é o predomínio de um partido, que basta tirá-lo do poder e tudo voltará à normalidade. O que se passa neste país é a total destruição do sentido de ordem, legalidade, honestidade e racionalidade, é a dissolução dos princípios básicos da vida civilizada, mesmo nas mentes daqueles que se opõem ao partido dominante e se acreditam melhores que ele.

Um breve exame do projeto da lei do aborto, que será votado hoje na Câmara Federal, basta para ilustrar o estado de barbárie, de selvageria, de estupidez a que foi reduzida a mentalidade nacional.

Não nos referimos, com isso, à liberalização do aborto em si, mas à estratégia torpe e criminosa que seus adeptos vêm usando para aprová-la mediante o ludíbrio geral da opinião pública.

Nos seus parágrafos primeiro e segundo, a lei estabelece que o aborto será liberado até a décima-segunda semana da gravidez, só podendo ser autorizado depois disso em casos de risco imediato para a mãe ou de temível má-formação fetal.

A lei foi redigida assim – e nesses termos é enaltecida pela propaganda oficial – com o objetivo de tornar mais palatável a idéia do aborto, rejeitada, segundo dados do Ibope, por 95 por cento da população brasileira. Sua aprovação, portanto, não parecerá nenhuma revolução dos costumes, nenhuma mudança social drástica, mas apenas um arranjo diplomático entre os que não conseguem erradicar o aborto e os que não conseguem liberá-lo por completo.

Acontece que, nos seus parágrafos finais, o projeto derroga todos os artigos do Código Penal que classificam o aborto como crime. Como no texto eles são citados apenas por número, sem menção ao seu conteúdo, o público não atina de imediato com a importância de sua revogação. E o fato é que, cancelada a vigência desses artigos, nenhum aborto será crime, mesmo praticado depois de doze semanas de gravidez, mesmo praticado cinco minutos antes do parto, mesmo praticado em bebês completamente formados e sãos.

A aparência de uma permissão limitada encobre, na verdade, a liberação total. Fica pois legalizado no país, sob pretexto de liberação parcial, o aborto à vontade, o aborto por encomenda, o aborto por motivo fútil.

A redação mesma da lei foi obviamente calculada para que o público e os próprios parlamentares, acreditando aprovar uma coisa, consentissem em outra completamente diversa. O engodo vem ainda reforçado pela propaganda, que alardeia a permissão limitada, bem como pela totalidade da mídia cúmplice que esconde da população o sentido real do projeto.

Quando a própria redação das leis se torna instrumento de fraude, sem que uma só voz se levante para denunciá-la, é que a desonestidade e o crime já se tornaram socialmente aceitos como procedimentos normais, aprovados oficialmente, protegidos pelo Estado.

Não se conhece exemplo de tamanha vigarice legislativa em toda a História do direito universal. Talvez ainda mais deplorável que o fenômeno em si é a placidez indiferente com que os “formadores de opinião” assistem a essa completa degradação do sentido mesmo da ordem jurídica. A perfídia de uns e a insensibilidade covarde de outros permitiram que o país descesse a esse ponto. Depois disso, quem terá autoridade para protestar contra qualquer delito que seja?

Mutação súbita

Olavo de Carvalho

Época, 25 de agosto de 2001

Da noite para o dia, o Brasil entra numa nova ordem legal

O MST confessa possuir espiões infiltrados nos altos escalões da administração federal, e ninguém vê nisso nada de mais. O governador do Rio Grande do Sul tem contatos secretos com os narcoguerrilheiros das Farc, e ninguém comete sequer a indelicadeza de lhe perguntar o que conversa com eles a portas fechadas.

A CUT admite ter em sua folha de pagamentos várias centenas de jornalistas, e ninguém vê nisso uma compra de consciências. A mesma organização infiltra agentes na Polícia Federal para transformá-la num núcleo de rebelião, e ninguém a acusa de fomentar a quebra da ordem jurídica.

Procuradores que se apossam de documentos sigilosos do Exército, num inquérito conduzido oficialmente “sob segredo de Justiça”, convidam jornalistas de esquerda a violar o segredo, e ninguém enxerga aí a mínima esquisitice.

O PT coloca em sua presidência um ex-agente secreto de Cuba, e ninguém sequer pergunta quantos minutos duraria o registro legal de um partido de direita que escolhesse para presidente um espião aposentado da CIA. Parlamentares petistas brilham nas CPIs exibindo informações que não poderiam ter sido obtidas por nenhum meio legal concebível, e ninguém se lembra de acusá-los de espionagem política.

Jornalistas de esquerda grampeiam telefones, vasculham contas bancárias, furam por todos os meios a privacidade daqueles a quem desejam destruir, e ninguém vê nisso nada de especialmente escandaloso.

ONGs e partidos facilitam o ingresso ilegal de representantes das Farc nas escolas para ensinarem uma ideologia genocida às crianças brasileiras, e ninguém se lembra de acusá-los nem mesmo de falta de polidez.

Toda a esquerda espiona, grampeia, usa informações sigilosas para arrasar as carreiras de seus adversários, e a ninguém ocorre acusá-la de usurpar as funções dos órgãos de segurança do Estado.

Mas que o Exército, no estrito cumprimento de seu dever constitucional, investigue alguma dessas atividades ilegais, e pronto! Escândalo! Horror! Denúncias patéticas espalham-se por toda a mídia. Na TV, os comentaristas profetizam o iminente “retorno aos Anos de Chumbo”. No Congresso, parlamentares indignados pressionam o comandante da força terrestre a pedir desculpas.

Que ninguém tenha dúvidas: o escândalo armado por procuradores do Pará e jornalistas de São Paulo em torno das investigações empreendidas pelo Exército em Marabá não é apenas mais um capítulo da longa campanha de difamação antimilitar com que os terroristas anistiados recusam a anistia àqueles que os anistiaram.

Ela é um esboço de golpe de Estado, destinado a oficializar no Brasil, da noite para o dia, uma nova ordem legal, na qual a propaganda e preparação de guerrilhas e a espionagem esquerdista serão atividades lícitas, colocadas sob a proteção estatal, e qualquer tentativa de se opor a elas será condenada como imoral e criminosa.

Ela é uma operação de guerra de informações, destinada a criminalizar e bloquear antecipadamente qualquer iniciativa das Forças Armadas contra os que ameacem transformar o Brasil numa Colômbia.

Excluído o Exército das investigações antiguerrilha, o acesso a informações sobre movimentos revolucionários será monopólio dos partidos e entidades de esquerda mais diretamente envolvidos com esses movimentos.

A raposa assumirá, além de suas atuais funções de guarda, o serviço secreto do galinheiro. Foi exatamente assim que Hitler, pondo as Forças Armadas de joelhos por meio do escândalo e da pressão midiática, transferiu para seu partido o controle dos serviços de inteligência.

Nunca, neste país, se deu um passo tão gigantesco no sentido de realizar a promessa de Fidel Castro, de “reconquistar na América Latina o que foi perdido no Leste Europeu”.

Os ricos no paraíso

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 21 de Junho de 2001

Uma classe empresarial que, incapaz de criar a militância de massas adequada à defesa de seus interesses e projetos, se alia no último momento a um partido revolucionário na esperança de que este a proteja é, evidentemente, uma classe possuída pelo desejo de morrer. As racionalizações que seus mentores possam conceber para legitimar essa aposta suicida só comprovam o estado de completa alienação a que chegaram. Dessas racionalizações, a mais deplorável é aquela que os leva a imaginar que, se agora o suspeitíssimo aliado necessita da sua ajuda financeira para conquistar o Estado, continuará a necessitar dela após tê-lo conquistado; a imaginar que, se hoje podem negociar com ele como detentores do poder econômico, poderão manipulá-lo amanhã mediante o uso do mesmo instrumento. Mostram, nisso, uma total incompreensão da natureza do próprio poder econômico. Sobretudo, uma fatal ignorância de suas fraquezas e limitações congênitas.

A forma mais elementar e mais essencial do poder é o poder da violência, o poder de agredir, de matar, de intimidar fisicamente. Só esta, uma vez possuída em plenitude, age autonomamente e se impõe por seus próprios meios, não apenas dispensando o concurso de quaisquer outros, mas forçando-os a servi-la se necessário. Todas as demais formas de poder, o econômico sobretudo, nada são e nada podem sem a mediação do poder armado que os garante.

Que é, afinal, “possuir” uma riqueza? Não é deter fisicamente e pessoalmente o domínio sobre objetos materiais. É exercer o domínio legal sobre o uso de determinados bens e valores. “Legal”, aí, quer dizer: reconhecido e protegido por um poder armado, capaz de remover os obstáculos ao exercício do direito de possuir. O poder econômico é, pois, um poder indireto e de segundo grau, um poder que jamais é “fundamentum sui”, um poder que visceralmente depende de outro para se exercer e subsistir. É, de certo modo, um poder simbólico e evanescente, que sem a proteção do poder armado se dissipa, de repente, como um sonho.

Um caso bem triste ilustrará o que digo. Um dos mais prósperos empresários rurais de Cuba, nos anos 50, era amigo de infância de Fidel Castro e inimigo figadal de Fulgêncio Batista – um ditador que, convém jamais esquecer, chegara ao poder com o apoio do Partido Comunista. Desde os primeiros momentos da revolução, esse homem estendeu seu generoso apoio aos barbudos de Sierra Maestra. Chegou a montar em sua fazenda um hospital clandestino para socorrer os combatentes fidelistas feridos em batalha. Vitoriosa a revolução, retirada a máscara democrática do novo regime e assumida em público a identidade comunista de Fidel Castro, ainda assim o rico cidadão continuou a apoiar o velho companheiro. Sua confiança nele só foi um pouco abalada quando o comitê revolucionário começou a fuzilar indiscriminadamente os oficiais das Forças Armadas, muitos deles limpos de qualquer compromisso com o governo caído. Um dia, quando chegaram à fazenda notícias do fuzilamento iminente de certos coronéis que eram amigos comuns de Fidel e do nosso personagem, a esposa do fazendeiro achou que podia interceder junto ao governante em favor dos condenados, em nome dos velhos tempos. A resposta de Fidel foi mais ou menos a seguinte:

– Em nome da gratidão e da amizade, concederemos a vocês o direito de sair para Miami amanhã, num avião militar. Cada um poderá levar US$ 20 e a roupa do corpo.

O homem terminou seus dias como garçom em Miami. Seu filho, que entrou para o Exército norte-americano e chegou a oficial, contou esta história ao advogado José Carlos Graça Wagner, que a contou a mim. Posso ter errado em detalhes, mas, em essência, a reprodução do relato é fiel.

O poder econômico, por nada ser sem a proteção do poder armado, necessita da ordem jurídica, da paz e da tranqüilidade como do ar que respira. No Estado de Direito, a força de agressão física, monopólio do Estado, não pode se exercer sem uma série de mediações jurídicas, políticas, morais e consuetudinárias que, atenuando sua crueza, a tornam permeável ao diálogo, às negociações, aos acordos e às transigências. É só então que o poder econômico avulta em importância e, mediante o uso inteligente de seus meios de barganha, pode chegar a influenciar e até a determinar o rumo das coisas na sociedade.

Abalada a ordem por uma precipitação revolucionária, o poder econômico reduz-se ao poder de o rico desarmado pedir misericórdia ao sargentão armado, ao comissário-do-povo armado, ao SS armado ou a qualquer das outras versões em que a brutalidade militante possa ter-se encarnado no cenário macabro da recorrente alucinação messiânica em que se transformou a história dos tempos modernos.

O poder econômico, portanto, só tem força de barganha com o revolucionário enquanto este não chega ao poder. Depois, bem, o depois já foi narrado milhares de vezes por uma multidão de exilados que um dia foram ricos em Havana antes da chegada de Fidel, em Berlim antes da chegada de Hitler, em Petrogrado antes da chegada de Lenin ou em Pequim antes da chegada de Mao.

É difícil os ricos entrarem no reino dos céus. Mas mais difícil ainda é saírem vivos do paraíso socialista.

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