Posts Tagged Michelangelo

O Brasil falante

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de fevereiro de 2011

Quanto mais de longe se olha o Brasil, mais se vê que não é um país: é um hospício. Um hospício sem médicos, administrado pelos próprios loucos que se imaginam médicos.

Nada aí funciona segundo os preceitos normais do cérebro humano. É o perfeito “mundo às avessas” do Dr. Emir Sader – chefe do conselho médico desde que o Dr. Simão Bacamarte deixou este baixo mundo.

A loucura não vem de hoje. Certo dia, após uma das minhas aulas na PUC do Paraná, reuniu-se um grupo de alunos para ouvir e apoiar o protesto de um deles, que, entre lágrimas – sim, entre lágrimas –, clamava contra o que lhe parecia uma depreciação infamante da cultura nacional. “Onde já se viu – soluçava o rapaz – chamar de decadente e miserável um país que tem intelectuais da envergadura de Chico Buarque de Holanda?”

Eu soube do caso por terceiros, mas se ali estivesse teria gravado o episódio em vídeo, para ilustrar as aulas subseqüentes, quando voltasse ao tema da patologia mental brasileira. A destruição da cultura superior evidencia-se não somente na desaparição dos espíritos criadores, mas na inversão da escala de julgamentos: na ausência de qualquer grandeza à vista, a pequenez torna-se a medida da máxima grandeza concebível. Pois um professor gaúcho não chegou a proclamar o referido Chico um artista universal da envergadura de Michelangelo? Seria preciso anos de exercícios de percepção para fazer ver a essas criaturas que numa só pincelada de Michelangelo há mais riqueza de intenções, mais informação essencial, mais intensidade de consciência do que em tudo o que se publicou no Brasil sob o rótulo de “literatura” desde a década de 80, da autoria de não sei quantos Chicos. Mas a mera sugestão de que deveriam submeter-se a esse aprendizado lhes soaria brutalmente ofensiva – uma prova de autoritarismo fascista. A idéia mesma de que a literatura deva refletir uma intensidade de consciência, uma riqueza de experiência humana, acabou por se tornar incompreensível quando tudo o que se espera é, na mais ambiciosa das hipóteses, que o artista invente variações engraçadinhas para os slogans de praxe (isso é a definição de Chico Buarque de Holanda, com a diferença de que ele já não é mais tão engraçadinho).

Nos anos mais recentes, porém, a situação agravou-se para além da possibilidade de uma descrição de conjunto. O máximo que se pode fazer é chamar a atenção para detalhes significativos, na esperança de que o interlocutor vislumbre a gravidade da doença pelo sintoma isolado. Um desses sintomas é a decomposição do idioma. Dou graças aos céus por não ser escritor de ficção nos dias que correm, quando se tornou impossível conciliar linguagem coloquial e correção da gramática. Leiam Marques Rebelo ou Graciliano Ramos e entenderão o que estou dizendo. Os personagens deles falavam com extrema naturalidade sem incorrer em solecismos. Hoje em dia, tudo o que se pode fazer é escrever como gente nos trechos narrativos e descritivos, deixando que nos diálogos os personagens falem como macacos nerds. É a literatura exemplificando o abismo entre a linguagem culta e a fala cotidiana. Mas a existência desse abismo prova, ao mesmo tempo, a inutilidade social de uma literatura que já não poderia ser compreendida pelos seus próprios personagens.

Antigamente esse dualismo extremo de linguagem culta e vulgar só aparecia quando o autor queria documentar a fala das classes muito pobres, afastadas da civilização por circunstâncias econômicas ou geográficas insanáveis. Na era Lula tornou-se necessário usá-lo para reproduzir a fala de um presidente da República – e, depois, a de senadores, deputados, líderes empresariais e tutti quanti. Um jornalista decente já não pode escrever na linguagem de seus entrevistados. Não há mais medida comum entre a consciência e os dados que ela apreende. Isso é o mesmo que dizer que já não é mais possível elaborar intelectualmente a realidade, ao menos sem improvisar arranjos lingüísticos que estão acima do alcance da maioria.

Alguns ouvintes já entenderam que a linguagem paradoxal do meu programa True Outspeak – explicações eruditas entremeadas de palavrões grosseiros – é um esforço barroco, talvez falhado, de sintetizar o insintetizável, de resgatar para a esfera da alta cultura a fala disforme e quase animal do novo Brasil. Muitos nem percebem a diferença entre a linguagem tosca e sua imitação caricatural.

Bella roba, o retorno

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de novembro 2007

Ao comentar a resposta inócua dada pelo sr. Celso Lungaretti às minhas observações sobre o seu sucesso na carreira do arrependimento lucrativo, qualifiquei-a com a velha expressão Bella roba (bela coisa), de uso corrente no Cambuci da minha infância, para designar um nada que pretendesse ser alguma coisa.

Não tendo algo mais substantivo de que se queixar, Lungaretti optou por torcer o sentido das minhas palavras até o extremo limite da sua mania de perseguição, fingindo interpretá-las como alusão pejorativa às suas origens itálicas, como se fosse muito natural a um humilde portuga como eu olhar desde cima a nação de Dante, Leonardo, Michelangelo, Vico e Manzoni.

Dessa premissa manifestamente psicótica o referido foi tirando aquelas conclusões que os senhores podem imaginar, das quais emergi com as feições estereotipadas do quatrocentão racista – adequadíssimas a um neto de imigrantes e pai de filhos mulatos!! -, ampliadas por sua vez às dimensões de um virtual assassino em massa de seres inferiores, entre os quais, pobrezinho, o Lungaretti.

Depois de fazer da sua vida uma dupla palhaçada, o cidadão só pode mesmo encontrar refúgio na autovitimização teatral.

Mas desta vez, confesso, o sujeito foi tão longe no fingimento histriônico, que me tocou o coração. Senti-lhe o drama. O mal que ele faz a si mesmo é tão profundo, tão irreparável, que eu jamais lhe negaria o consolo derradeiro de lançar a culpa nos outros, mesmo que um deles seja eu.

Pode dizer de mim o que quiser, Lungaretti. Prometo não voltar a falar mal de você. Pode até dizer que fugi da raia. Não ligo não. Não faço questão de mostrar valentia onde ela é desnecessária e inconveniente.

Uma vez até saí correndo de um enfezado cãozinho Yorkshire para não carregar na consciência o pecado de dar um pontapé em criatura tão indefesa.

Veja todos os arquivos por ano