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A força do segredo

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 31 de janeiro de 2008

Na mesma semana em que o Foro de São Paulo é objeto de uma reportagem em Veja , Fidel Castro revela que a idéia de criá-lo não foi nem dele: foi do próprio Lula. Sim, coube a este, não ao ditador cubano ou ao seu colega da Venezuela, a glória macabra de salvar da extinção o movimento comunista na América Latina. E esse fato vem à tona quase no mesmo dia em que um importante líder empresarial, o sr. Emílio Odebrecht, tenta impingir a si próprio a balela anestésica de que “Lula nunca foi de esquerda”. A alienação da burguesia brasileira em relação ao estado de coisas no país é uma das maravilhas do universo, mas ela não teria sido possível sem o longo e persistente silêncio da “grande mídia” nacional quanto ao Foro de São Paulo.

A gigantesca engenharia de ocultações que sonegou ao público o conhecimento dos lances essenciais da história política da última década e meia é, por si mesma, um acontecimento inédito nos anais do jornalismo mundial, um fenômeno tão espetacular e tão criminoso quanto as atividades do próprio Foro.

Um dia a ciência histórica terá de sondar os mais baixos estratos da sordidez humana para explicar como foi possível tanta vileza, tanta abjeção, da parte daqueles que recebiam os melhores salários do jornalismo para abster-se de praticá-lo.

As conseqüências da sua omissão foram portentosas.

Consolidando numa estratégia de dimensões continentais a clássica articulação comunista dos meios de luta lícitos e ilícitos, o Foro de São Paulo é a mais vasta, a mais íntima, duradoura e bem sucedida parceria que já se viu entre a política e o crime na América Latina. Se a força dessa parceria não tivesse crescido em segredo, não teria crescido de maneira alguma: nem o Parlamento, nem a opinião pública, nem a Justiça, nem o empresariado, nem as Forças Armadas teriam tolerado ver o presidente da República cochichando pelos cantos com os comandantes das Farc e do Mir chileno. Muito provavelmente Lula não teria chegado aonde chegou, mas, se chegasse, não escaparia do impeachment à primeira notícia da sua condição de aliado e protetor máximo de assassinos, narcotraficantes e seqüestradores.

Se o eleitorado não tivesse sido reduzido à menoridade mental pelos autoconstituídos censores a serviço da boa imagem esquerdista, o partido beato, desmascarado antes de consolidar-se no poder, não teria podido montar um espetáculo de corrupção ante o qual o próprio P. C. Farias, se pudesse vê-lo do além, cairia pasmo de incredulidade.

Se o Foro de São Paulo tivesse sido denunciado em tempo, os comandantes das Farc não teriam podido transitar livremente pelo Brasil e ser recebidos como hóspedes de honra enquanto seus subordinados, discretamente, treinavam o PCC e o Comando Vermelho para matar brasileiros.

Se os fatos mais decisivos não tivessem se tornado invisíveis, não teríamos chegado ao recorde hediondo de 50 mil homicídios por ano.

Agora, que a notícia da sua existência foi publicada com dezessete anos de atraso, o poder do Foro de São Paulo já se tornou tão gigantesco, tão onipresente, que ninguém, no Parlamento, na Justiça, nas Forças Armadas ou seja lá onde for, terá os meios nem a coragem de reagir à altura, de fazer o que é preciso fazer ante esse fabuloso concurso de crimes.

Se já houve neste país motivo para uma CPI, é o Foro de São Paulo, mas quem, nas duas casas do Congresso, terá a hombridade de solicitá-la? E, na remota hipótese de que alguém a solicite, quantos não votarão para bloqueá-la, com ou sem o incentivo de uma nova edição do Mensalão?

PT, o partido dos ricos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 21 de janeiro de 2008

O PT não é um partido ladrão porque abandonou seus altos ideais e se corrompeu ao contato com a maldita direita. Para que a direita o corrompesse seria preciso que ela fosse mais corrupta do que ele, e é só comparar a lista de escândalos dos governos respectivos para ver que o próprio P. C. Farias teria muito a aprender com os Dirceus e Berzoinis. O PT é um partido ladrão porque é um partido revolucionário, filiado a uma tradição de amoralismo maquiavélico que pelo menos desde a Revolução Francesa, com intensidade crescente desde a Primeira Internacional de 1864 e mais ainda desde a fundação do Partido Socialdemocrata de Lênin, sempre achou que era de seu direito, e até da sua obrigação, financiar a si próprio por meio de assaltos, de seqüestros, de extorsões, de desvio de dinheiro público, bem como de uma infinidade de negócios capitalistas legais e ilegais, cujo volume total faria inveja a seus mais reacionários inimigos burgueses.

Estudem a vida de Lênin e confirmarão o que estou dizendo. O volume do capital que o financiava, sem contar a ajuda de governos estrangeiros, era tal que, se aplicado em atividades produtivas, teria feito dele uma espécie de J. P. Morgan – com o detalhe significativo de que as contribuições de J. P. Morgan engrossavam aquele capital junto com o dinheiro dos assaltos comandados por Stálin. Revoluções custam caro. O revolucionário Parvus, que enriqueceu com mil e um negócios na Turquia, já ensinava em 1914: “A melhor maneira de derrubar o capitalismo é nós mesmos nos tornarmos capitalistas.” Não foi o Lulinha quem descobriu essa fórmula. Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht riram dela e acabaram derrotados. Lênin, o vitorioso, ouviu-a com reverência e gratidão da boca de seu gerente financeiro na Suíça, Jacob Hanecki, a quem depois da Revolução premiaria com o cargo de Comissário do Povo para as Finanças. Leiam Lenin in Zurich , de Alexander Solzhenitsyn (London, Farrar, Straus & Giroux, 1975). A revolução socialista consiste na simples transfiguração de uma elite ativista proprietária de boa parte do capital em senhora absoluta de todo o capital. Sempre foi assim, e com a esquerda nacional não é diferente. O mensalão não foi um pecado temporão cometido por almas santas no último minuto antes da ascensão aos céus. Foi a execução lenta e metódica de planos traçados desde o começo da década de 90 — contemporâneos à criação do Foro de São Paulo –, já denunciados então por César Benjamin, algo como uma versão “los macaquitos” de Karl Liebknecht, à qual, como a este último, a História e o distinto público deixaram falando sozinha.

Tomem, por exemplo, a forma mais simples e bruta do capital – a posse da terra – e façam a conta de tudo o que a militância organizada, com o auxílio deste governo e dos anteriores, vem amealhando  ao longo dos últimos anos. Somem a extensão das propriedades do MST com as reservas indígenas, com os quilombos (ou ditos tais) em vias de desapropriação, com os imóveis estatais e privados já transferidos a ONGs ativistas, com as áreas sob domínio das Farc diretamente ou através de seus prepostos  locais – e verão que nunca houve, neste país, um patrimônio imobiliário comparável. Nem incluo aí o patrimônio financeiro – as verbas estatais que jorram sobre as organizações esquerdistas, as participações acionárias em mil e uma empresas, as contribuições internacionais impossíveis de calcular e, last not least , os lucros do narcotráfico. Os ricos não serão destruídos pelos pobres. Serão destruídos pelos mais ricos.

       No fundo, o cinismo lulista é até mais respeitável do que o moralismo posado de seus críticos de esquerda, postiço até o desespero, macaqueação tardia do mesmo discurso enganoso que levou o PT às supremas glórias eleitorais. O que o antilulismo de esquerda nos promete, na hipótese viabilíssima de sua ascensão ao poder, são prodígios de ladroagem que farão Dirceu e Berzoini parecerem São Cosme e São Damião. No ato mesmo em que explicam a corrupção petista como traição aos ideais revolucionários, os santarrões do PSOL e do PSTU se desmascaram a si próprios com uma eloqüência quase sublime: Quem pode acreditar em patifes que prometem fazer a revolução marxista sem descumprir em nada os ditames da moral burguesa?

       Ademais, por que alardeiam suas denúncias na Rede Globo, na Folha , no Estadão – naquela mesma mídia a que chamam reacionária e imperialista – antes de haver sequer tentado discuti-las discretamente no Foro de São Paulo, a instância máxima do esquerdismo continental? Roupa suja se lava em casa, e quando alguém o faz em público antes de haver nem mesmo tocado no assunto em família, é porque está tramando alguma. Imaginem um soi disant dissidente soviético que, nos anos 60, saísse berrando contra o comunismo na Voz da América ou Rádio Europa Livre, ao mesmo tempo que conservasse seu cargo e suas boas relações no Politburo ou na KGB. É exatamente a mesma coisa. Se a esquerda está dividida entre os corruptos e os honestos, a divisão deveria aparecer primeiro nos seus debates internos – só depois ante os inimigos, se chegasse a tanto. O inverso é prova clara de que se trata de pura encenação, de que por trás a família continua unida e coesa, tramando para ludibriar uma vez mais a multidão dos trouxas. Não há cisão na esquerda: há apenas uma natural divisão de trabalho – uns amealham dinheiro e poder à custa de enfeiar a imagem do esquerdismo, outros embelezam a imagem consentindo devotadamente em adiar o recebimento da sua quota de dinheiro e poder. Sempre foi assim. O movimento revolucionário limpa-se na sua própria sujeira, engorda alimentando-se do seu próprio cocô.

       O hábito de salvar o prestígio do esquerdismo no ato mesmo de denunciar os seus crimes já está tão arraigado nas rotinas mentais da classe falante, que aparece até mesmo nos lugares que se julgariam, à primeira vista, os mais inusitados. Falando dos reféns em poder da narcoguerrilha colombiana, escreve a Veja desta semana – sim, Veja , nominalmente o spalla da orquestra antipetista:

       “A organização que mantém cerca de oitocentas pessoas em seu poder, conhecida pela sigla Farc, não é formada por guerrilheiros marxistas , como repete a denominação usual (grifo meu). Nem Marx endossaria as barbáries cometidas pelas Farc, que se originaram numa querra civil ocorrida na Colômbia e depois tiveram inspiração esquerdista, mas há muito tempo degeneraram em uma espécie de seita de fanáticos que vive à custa do tráfico de cocaína.”

       Desde logo, é falso que Marx não endossaria essas violências e outras piores, de vez que contemplava como exigência normal e desejável do processo revolucionário a extinção sumária de povos inteiros. Em segundo lugar, o narcotráfico das Farc é mixaria perto do que foi feito na China por Mao Dzedong, a quem ninguém jamais acusou de ser infiel às tradições marxistas. Em terceiro lugar, o comércio latino-americano de drogas foi na sua parte mais substantiva uma criação da KGB, que se empenhou nisso desde os anos 50 (v. o depoimento do general tcheco Jan Sejna – um participante direto da operação – em Christopher Story , Red Cocaine. The Drugging of America and the West , London, Edward Harle, 2nd. Ed., 1999). Devemos crer que o governo soviético, Mao Dzedong e o próprio Marx não representam o autêntico espírito do marxismo, cujo único porta-voz autorizado é o redator de Veja ? Este aliás se trai miseravelmente ao dizer que, de esquerdistas genuínos, os militantes das Farc se trasnformaram numa “seita de fanáticos”. Se dissesse que se transformaram em aproveitadores sem fé nenhuma, talvez enganasse melhor. Mas “fanáticos”? Fanáticos do quê? Do espiritismo? Do vegetarianismo? Da Seicho-No-Iê? Fanáticos jogadores de futebol-de-botão? Fanáticos admiradores da Ana Paula Arósio? Fanáticos, por definição, acreditam em alguma coisa, e em que acreditam os homens das Farc, senão no bom e velho marxismo de sempre? Fanáticos marxistas, sim, é o que são, ontem como hoje. Se não o fossem, não seriam aceitos e celebrados como representantes fidedignos do marxismo no templo mesmo da revolução comunista, o Foro de São Paulo. Ou será que Veja tem mais autoridade do que o Foro de São Paulo para julgar a ortodoxia comunista dos outros?

       Mais abusadamente ainda, Marcelo Otávio Dantas, no artigo “Messianismo e o credo petista” (Folha de S. Paulo), querendo contrastar o PT corrupto de hoje com o PT puríssimo de outrora, diz que a mentalidade do partido “converteu-se, assim, em um neosabbatianismo radical, alimentado por uma intelectualidade delirante, especializada em justificar o injustificável”. Como se os traços da heresia de Sabbatai Zevi já não estivessem no próprio sangue do movimento revolucionário desde sempre e como se a marca distintiva do PT não tivesse sido, desde a origem, o culto do pecado redentor assumido até mais explicitamente que o dos outros partidos de esquerda então existentes. Nascido de uma aliança entre os comunistas e a esquerda católica, o PT veio imbuído do projeto gramsciano de subverter a Igreja por dentro, esvaziando-a de seu conteúdo espiritual e fazendo dela o instrumento dócil do que pode haver de mais anticristão no mundo, a revolução comunista. Se isso não é uma forma extrema de heresia messiânica, não sei em que outra classificação possa caber. O discurso untuosamente moralista do PT nunca teve nada de sincero, foi sempre, entre os líderes, uma parasitagem maquiavélica do prestígio da Igreja para fins de propaganda e, na arraia miúda dos militantes, uma forma patológica de auto-engano lisonjeiro. Perto disso, o mensalão é apenas um pecadinho de fim de semana. A corrupção financeira do PT não é senão a exteriorização tardia – e mais vistosa, para a mentalidade dinheirista – da podridão interior sem fim que inspirou a criação do partido-seita.

Em nome do crime

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 19 de setembro de 2007

Em 31 de julho de 2000 escrevi na revista Época:

A Constituição da União Soviética punia o homicídio com dez anos de cadeia, e com pena de morte os crimes contra o patrimônio do Estado… Sob a inspiração de intelectuais alucinados, a escala de valores da Constituição soviética tornou-se o modelo da atitude brasileira perante a criminalidade: ódio e perseguição implacável aos que desviam dinheiro público, passividade atônita e paternal complacência ante os assassinos e quadrilheiros armados.”

Que é que mudou desde então?  Muita coisa. Na época, a elite política esquerdista era a personificação mais vistosa e barulhenta do moralismo acusatório. Era ela que ligava os megafones da mídia, era ela que manipulava os repórteres, transformando suspeitas em notícias e depois usando as notícias como pretextos para abrir CPIs. Era ela que trazia as massas para a rua, exigindo cabeças. Foi ela que criou a maior farsa cívica da história nacional, induzindo o eleitorado a expulsar da presidência, entre lágrimas de comoção patriótica e explosões de grandiloqüência parlamentar, um homem que depois, tarde demais, a Justiça provou ser totalmente inocente.

 Hoje em dia, é ela própria o alvo das denúncias – bem mais graves e incomparavelmente mais sólidas do que aquelas que ela inventou contra Collor de Melo.

 É uma mudança radical, um giro de cento e oitenta graus na rota da massa fecal voadora.

Mas, em primeiro lugar, é uma mudança tardia. No começo dos anos 90, quando o PT vociferava nas CPIs contra a sociedade imoral, ele já ia construindo, discretamente, sua própria máquina de corrupção, incomparavelmente maior do que aquelas que os Anões do Orçamento teriam podido sequer imaginar. Não faltou quem o denunciasse por isso, mas não obteve a audiência que merecia. A crença geral na santidade petista estava em plena ascensão, os fatos nada podiam contra ela. Não por coincidência, o personagem que então brilhava no papel de tribuno máximo da dignidade, e que o fazia com tanto mais eficiência por ser o coordenador da rede de espiões petistas infiltrados por toda parte, tornou-se depois ainda mais famoso como mentor e chefe do Mensalão. As duas operações foram obviamente simultâneas e interligadas: enaltecer a moralidade e destruí-la. Enaltecê-la para melhor destruí-la. Tudo isso podia ter sido evitado se a mídia e os políticos ditos “de direita” não tivessem feito ouvidos de mercador a Paulo de Tarso Venceslau e redobrado a aposta louca na idoneidade dos bem-falantes.

Em segundo lugar, a mudança é só na direção do ataque, não nos seus fundamentos. Os que denunciam o PT continuam a fazê-lo segundo o mesmo critério de falsa moralidade que aprenderam com ele: berram contra o desvio de dinheiro, calam-se ante os rios de sangue que a aliança macabra da esquerda com o banditismo continental faz rolar nas ruas de São Paulo e do Rio. Afetando rebeldia e inconformidade ante o partido governante, são ainda seus escravos ideológicos, incapazes de raciocinar fora do esquema mental soviético que, sem esse nome, se impregnou na cultura e se tornou senso comum. Ora, esse esquema é ainda mais criminoso do que todos os crimes, pois é ele que os gera e dissemina.

Toda a tagarelice antipetista do mundo nada poderá contra o PT enquanto não se libertar desse vício ideológico hediondo que, ao denunciar os criminosos, não sabe fazê-lo senão em nome do Império do Crime.

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