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Descrédito geral

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 15 de outubro de 2015

          

Uma pesquisa da CNT, Confederação Nacional dos Transportes, traz alguns dados fundamentais para a compreensão do estado de coisas no Brasil de hoje.
O relatório completo está aqui, mas a tabela que reproduzo neste artigo (página 45 do relatório) fala por si.
A pesquisa buscou averiguar, com uma amostragem significativa colhida em várias regiões do país, quais as instituições em que o povo brasileiro mais e menos confia: igrejas, partidos políticos, governo, mídia etc. É uma pergunta temível, que anuncia choro e ranger de dentes.
Entre mortos e feridos, a principal vítima foram as Forças Armadas. Semanas atrás, afirmei que, tendo sido por décadas a instituição exibida em todas as pesquisas como a mais confiável do país, elas logo perderiam esse estatuto e rastejariam na lama do descrédito junto com a mídia e os políticos.O motivo que me levou a esse prognóstico sombrio foi a longa série de hesitações, embromações e desconversas pomposas com que os militares responderam ao clamor de seus admiradores devotos por uma “intervenção militar” supostamente salvadora. A sucessão de vexames entremeados de ostentações de patriotismo histriônico, que teve um ponto alto no ridículo desfile de Sete de
Setembro em recinto fechado, chegou ao auge no show de puxassaquismo e concordância ideológica oferecido pelos comandantes das três armas ao representante do Foro de São Paulo, Aldo Rebelo.
Pois bem, a  previsão já estava se cumprindo quando foi anunciada. A pesquisa, de julho, mas só publicada agora, revela que o nível de confiança popular nas Forças Armadas baixou dos antigos 50 e tantos por cento para 15,5 por cento. Merecidamente.
Para meditação dos oficiais militares que ainda prezam um pouco a reputação das suas corporações, relembro aqui o clássico haikai de Antonio Machado:
Cuan dificil es
Cuando todo baja
No bajar también.
Com toda a certeza, os oficiais empenhados em alinhar as suas instituições com a política do Foro de São Paulo acreditaram que podiam continuar fazendo isso sem despertar suspeitas, protegidos sob a redoma da tradicional confiabilidade militar, consolidada ao longo de décadas de pesquisas.
Mas nenhum capital acumulado resiste por muito tempo a um empenho sério e obstinado de cultivar o prejuízo.
Se os bravos guerreiros não acordarem, daqui a pouco teremos Pixulekos fardados flutuando nas praças, e os oficiais vistos de uniforme nas ruas ou nos restaurantes receberão o mesmo tratamento dado ao sr. Adams e similares.
Com exceção das igrejas em geral, que 53,5% dos entrevistados consideraram maximamente confiáveis, praticamente todas as demais instituições nacionais tiveram desempenhos tão baixos que não há exagero nenhum em dizer que perderam por completo a confiança do povo: Justiça, 10,1%; polícia, 5%; imprensa, 4,8%; governo, 1,1%; Congresso Nacional, 0,8%; partidos políticos, 0,1%.
Se um governo que permanece no poder desfrutando da confiança de apenas 1,1% já é a prova contundente de que não existe mais nenhuma “democracia” a ser preservada, mais patético ainda é que o Congresso, da qual tantos comentaristas de mídia esperam a cura miraculosa do descalabro nacional, esteja abaixo dele na escala, com seus 0,8% de confiabilidade. Não é isso que as pessoas chamam de pedir socorro para o bandido?
Como entender esse quadro, exceto como o retrato de uma quebra total da confiança, de uma ruptura insanável entre o povo e a elite governante, de uma falência total do sistema, de um estado de coisas, em suma, revolucionário?
Não é de estranhar que a minoria dominante se esforce acima de tudo para simular normalidade, louvando como valores sacrossantos as “nossas instituições”, fazendo apelos ao fetiche da “estabilidade”, repetindo infindavelmente o mantra de que o leão é manso e de que, se ele não for, não se preocupem, porque “estamos preparados”.
Nem é de espantar que o partido menos confiável de todos, objeto do ódio ostensivo de mais de 90% da população, entre em delírio paranóico e, invertendo radicalmente o senso das proporções, atribua tudo a uma “conspiração golpista das elites”, como se não fosse ele próprio a elite mais golpista que já existiu neste país.
Já os 4,8% de confiabilidade atribuídos à mídia mostram que o povo está consciente de viver num cenário fictício criado por aqueles cuja obrigação seria informá-lo da realidade.
Desde a longa e ominosa ocultação da existência do Foro de São Paulo até o atual empenho de camuflar a tomada do poder continental por organizações comunistas (que poderia ter sido evitada sem o manto de invisibilidade protetora lançado sobre o Foro de São Paulo), é evidente que a classe jornalística no Brasil se tornou uma seita empenhada em defender os seus queridos mitos de juventude – e os grupos que os personificam – contra toda interferência dos malditos fatos.
Nossos grandes jornais e canais de TV, com efeito, não medem esforços na sua missão anestésica, modificando até o vocabulário da língua portuguesa para que nunca, em hipótese alguma, as coisas pareçam o que são.
Vou citar só um caso entre milhares.
Uma recente pesquisa do Datafolha, confirmando brutalmente a da CNT, evidenciou a diferença radical de opiniões entre os membros do Congresso e a população brasileira. Por exemplo, “55% dos brasileiros disseram ser de direita, enquanto apenas 17% dos parlamentares concordaram que seguem a mesma linha… Dos deputados e senadores ouvidos, 53% disseram que a lei deveria reconhecer uma família com pessoas do mesmo sexo… Já para a população brasileira, 60% afirmam que, por lei, uma família deve ser formada apenas entre homem e mulher”.
Os políticos, evidentemente, querem o contrário do que o eleitorado quer. Não o representam em nenhum sentido substancial do termo.
Mas como foi que a Folha e a revista Época noticiaram esse resultado? Vejam o título: “Políticos brasileiros são mais liberais do que o eleitorado, diz pesquisa”.
Liberais? Liberal, no vocabulário político brasileiro, quer dizer anti-socialista e partidário da economia de mercado – alguém da direita, em suma. Como chamar de liberal um grupo em que 83% dos membros dizem que não são de direita de maneira alguma? O certo, obviamente, seria dizer que os políticos são mais esquerdistas – não mais liberais – do que os seus eleitores.
Mas isso seria confessar que um povo acentuadamente conservador vive, contra a sua vontade expressa, sob a hegemonia ditatorial de um grupo minoritário esquerdista, exatamente como planejado pela estratégia de Antonio Gramsci adotada pelos partidos de esquerda desde há mais de trinta anos.
E isso a Folha não poderia confessar de maneira alguma, tendo sido ela própria um dos instrumentos principais para a implantação dessa hegemonia.
Qual o remédio encontrado? Apelar à língua inglesa falada nos EUA, onde a palavra “liberal”, sem que em geral o povo brasileiro tenha disso a menor idéia, significa precisamente “esquerdista” em oposição a “conservative”. Eis como a Folha, transmitindo a informação, anestesia o leitor para que não a compreenda.
Usar as palavras corretas, descrevendo adequadamente a situação que a pesquisa evidencia, seria reconhecer que há muito tempo o sistema representativo, a mais beatificada das nossas “instituições”, já se tornou uma fraude completa, um jogo de cartas marcadas criado para dar representatividade legal a um grupo manipulador desprovido de qualquer representatividade substantiva.
É evidente que, sem essa máquina de ludibriar o povo, fenômenos como o Mensalão, o Petrolão, ou qualquer dos outros inumeráveis crimes cometidos pelo governo com a cumplicidade da classe política praticamente inteira, jamais teriam sido possíveis.
Mas reconhecer isso seria admitir a unidade solidária do esquema gramsciano com o roubo organizado – e isto daria por terra com a gentil operação de gerenciamento de danos, com a qual, não podendo negar totalmente os fatos delituosos, a mídia se esforça para apresentá-los como meros delitos comuns, sem qualquer conexão com a estratégia comunista de dominação total.
Se isso não é cumplicidade com o crime, as palavras “crime” e “cumplicidade” também devem ter mudado de significado.

Revolução gaúcha

Olavo de Carvalho


 O Globo , 16 de fevereiro de 2002

A imaginação popular concebe as revoluções somente pelo lado espetaculoso, pela explosão insurrecional. Mas revolução é qualquer reviravolta profunda da estrutura de poder, seja operada por meio violento e ostensivo, seja introduzida aos poucos, de maneira quase imperceptível e aparentemente dentro da lei, sem que a população possa compreender ou controlar o curso dos acontecimentos. Duas das principais revoluções do século XX foram exatamente assim: a revolução alemã de Adolf Hitler e a tomada do poder pelos comunistas na Tchecoslováquia. Em ambos os casos, a violência só veio depois, quando era tarde para tentar detê-la. Mesmo nas revoluções cruentas, a brutalidade em toda a sua plenitude só se desencadeia após a tomada do poder. O que nunca houve nem haverá no mundo será uma revolução sem violência — nem insurrecional, no começo, nem repressiva, depois. Revolução “pacífica” quer dizer apenas uma revolução que só se torna violenta depois de vitoriosa.

No começo das revoluções “pacíficas”, o apego às crenças rotineiras, a falta de informação correta e o simples medo de ter medo impedem o povo de perceber o avanço rumo ao desenlace irreversível. Ao observador de fora, porém, que note a escalada das mudanças sem um olhar amortecido pela acomodação progressiva, não escapará o sentido trágico de acontecimentos que, no seu lento gradualismo, terão parecido à população local apenas irritações epidérmicas e passageiras.

É isso, precisamente, o que vejo a cada nova visita que faço a Porto Alegre. O Rio Grande está em revolução. Dentro de muito pouco tempo, estará consolidada no poder uma nova classe dominante, emergida da militância revolucionária; uma classe de arrivistas ambiciosos, ferozes e imbuídos da crença cega na sua própria impecância essencial, que os autorizará a todas as crueldades sob o adorno de belas palavras. Aos derrotados, desprovidos de suas propriedades e de seus meios de defesa, não restará outro caminho senão o exílio, a prisão ou a existência apagada e humilhante de ressentidos impotentes.

Mas faz parte da natureza mesma das revoluções “pacíficas” manter a população amortecida e sonsa mediante a alternância dos choques com a distribuição periódica de tranqüilizantes e soporíferos. A cada nova penetração da lâmina revolucionária no corpo da sociedade, segue-se uma injeção de entorpecente que transmuta a percepção em dúvida, a dúvida em subterfúgio, o subterfúgio em esquecimento e o esquecimento em tranqüilidade. Quando todo mundo está calmo, a faca entra mais um pouco.

No presente estado de coisas, as mudanças já me parecem praticamente irreversíveis, mesmo no caso de uma derrota do PT nas próximas eleições estaduais. Não há ingenuidade maior do que confundir o processo revolucionário com uma simples disputa eleitoral. A oposição gaúcha, valorosa e esforçada, está profundamente afetada dessa ingenuidade, apegando-se à esperança desesperada de que reste, nos governantes revolucionários, um fundo de lealdade democrática. Esse fundo não existe. O que existe é apenas a velha articulação leninista de meios legais e ilegais, pacíficos e violentos, calculada para desnortear o adversário e envolvê-lo em ilusões suicidas. Daí os resultados já alcançados.

Em primeiro lugar, a mudança psicológica. A educação, o imaginário, os valores e a linguagem diária da sociedade gaúcha já estão totalmente impregnados da nova mentalidade: quem quer que não creia possuir uma solução alternativa mágica e instantânea para os males que legitimam a revolução se sente inibido de opor-se frontalmente à onda revolucionária; e aqueles que crêem ter uma alternativa ficam cada vez mais afoitos de expressá-la na linguagem dos revolucionários, pondo lenha na fogueira. Os clichês esquerdistas — “exclusão”, “desigualdade”, “discriminação” — já se tornaram de uso geral e obrigatório. Quando um liberal ou conservador os emprega, julgando-se muito esperto por apropriar-se da retórica do adversário, não tem a mínima consciência de quanto essa assimilação vocabular denota sua fraqueza, seu esvaziamento ideológico e sua morte próxima.

Em segundo lugar, a inversão das legitimidades. À medida que a invasão de propriedades é consagrada como um direito, a propriedade é que se torna um ilícito. Desde que o STJ deu posse ao invasor, alegando que o proprietário anterior não dera provas cabais da produtividade da terra e omitindo-se de exigir prova idêntica aos novos ocupantes, torna-se claro que só a propriedade adquirida legalmente é contestável: a legitimidade da posse por invasão é automática e a priori. É claro que, logo após uma mutação tão drástica, seus promotores deixarão passar um tempo, para fins de anestesia, antes de generalizar sua aplicação a toda e qualquer propriedade. Mesmo então, continuarão procedendo de maneira lenta e gradativa, para evitar choques de percurso. Mas só um povo muito entorpecido ou muito ignorante da dinâmica das revoluções pode alimentar a ilusão de que alguém comece uma reviravolta tão profunda sem o intuito e os meios de universalizá-la. Uma revolução pode parar para descansar, mas nunca voltar atrás —- e, a cada nova retomada do movimento, há uma subida de patamar.

Em terceiro lugar, a mutação no controle dos meios de violência física. Um elemento essencial do Estado, ensinava Max Weber, é o monopólio do uso legítimo e, portanto, da distribuição desses meios. Deixá-los como estão ou redistribuí-los é o que distingue uma simples mudança de governo e uma revolução. Um governante constitucional mexe no orçamento, nos planos administrativos, nos projetos de obras públicas etc., mas não toca na distribuição dos meios de violência legítima. Exército, polícias, guardas particulares e simples cidadãos armados conservam seus direitos, seus deveres, seus papéis e suas armas. Já um governante revolucionário tem como objetivo prioritário justamente a mudança radical desse quadro: quando novos grupos passam a dispor dos instrumentos de violência legítima, enquanto seus antigos detentores são desarmados ou paralisados, está consumada a revolução. O desmantelamento consciente da brigada militar e sua substituição por milícias ideologicamente doutrinadas — processos delicados e complexos demais para ser descritos aqui em detalhes — já estão em fase avançada de execução no Rio Grande. Desde que existe o movimento comunista, há um século e meio, a função do revolucionário que os acasos da política coloquem em funções de governo num Estado não comunista é invariavelmente a mesma: desmantelar, debilitar ou neutralizar as seções do poder estatal que não estejam sob o comando direto da sua facção, enquanto seus colaboradores de fora do governo vão ao mesmo tempo formando os quadros de um “Estado virtual” aptos a substituir, gradativamente ou de súbito, as funções desativadas. O que o governo do Rio Grande está fazendo é isso, e nada mais que isso.

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