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Em quem acreditar?

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de setembro de 2013

          

Quem lançou o ataque com gás sarin que matou umas mil e cem pessoas na Síria? Foi Bashar al-Assad, parceiro dos russos, ou os jihadistas da Irmandade Muçulmana que o governo Obama apoia? O secretário de Estado americano John Kerry diz ter provas de que foi o primeiro, mas não mostra nenhuma. Diz que não é preciso. Que a credibilidade dos Estados Unidos já deve bastar para que todo mundo acredite na acusação sob palavra.
Bem, pode ser que os Estados Unidos tenham alguma credibilidade, mas John Kerry não tem nenhuma. Ele estreou no palco do mundo mentindo contra seu próprio país para favorecer o inimigo.
Em 22 de abril de 1971, recém-chegado do Vietnã, ele testemunhou perante o Comitê de Relações Públicas do Senado que soldados americanos haviam “estuprado mulheres, cortado orelhas e cabeças, amarrado genitais humanos com fios elétricos e ligado a corrente, amputado braços e pernas, explodido corpos, atirado a esmo em civis e arrasado vilas de uma maneira que lembrava Gengis Khan”.
Essa performance garantiu-lhe a primeira página nos principais jornais e o horário nobre nos maiores canais de TV da América – nada mau como motor de arranque para uma carreira política que culminaria numa candidatura à presidência. Tal como agora não exibe as provas que diz possuir, na época ele não citou nenhuma fonte ou documento que desse respaldo às acusações. Talvez imaginasse que a credibilidade do movimento anti-guerra, então de grande sucesso nas universidades, na mídia e no show business, bastava como prova.
 Aconteceu que, poucos meses atrás, o mais alto oficial da inteligência soviética que já desertou para o Ocidente, o general romeno Ion Mihai Pacepa, publicou um livro (Disinformation) em que conta várias operações de desinformação anti-americana, montadas pela KGB, das quais havia sido participante ou testemunha direta.
Uma delas consistiu precisamente em espalhar em todos os meios esquerdistas da Europa e das Américas o rol de acusações, totalmente inventado, que o depoimento de Kerry repetiu no Senado “quase palavra por palavra” (sic).
Desinformação, stricto sensu, só existe quando a mentira comprometedora não é ouvida da boca do inimigo, mas de alguém de confiança da vítima. Estampadas no Pravda ou vociferadas pela Rádio Moscou, aquelas acusações seriam apenas notícias falsas vindas de uma potência hostil. Repetidas com ares de seriedade por um ex-tenente condecorado da Marinha americana e reproduzidas no New York Times, no Washington Post e por toda parte na mídia “respeitável”, tornavam-se desinformação de primeira ordem, uma contribuição essencial à transmutação da vitória militar americana no Vietnã em uma humilhante derrota política e diplomática.
Kerry nunca pagou por esse crime, mas também não se pode dizer que a reputação tão facilmente obtida tenha permanecido intacta. Em 2004, no papel de porta-voz do movimento contra a invasão do Iraque, a qual ele mesmo havia aprovado como senador, apresentou-se candidato à presidência dos EUA. E ele saiu por toda parte pavoneando-se das condecorações militares que havia recebido – afirmava – por operações de alto risco nas quais padecera – dizia – ferimentos horríveis no Vietnã.
Seus colegas de pelotão e dois dos seus ex-comandantes apareceram então dizendo que Kerry havia se machucado por acidente numa operação sem risco nenhum, e o médico que tratara dele num hospital militar informou que os ferimentos eram tão graves que ele os havia curado com um simples band-aid.
Kerry perdeu a eleição para o inexpressivo George W. Bush. Seu companheiro de chapa, John Edwards, mocinho bonito que a plateia feminina anunciava como a futura grande estrela do Partido Democrata, não teve sorte melhor: viria a ter a carreira política destruída em 2007, quando se revelou que tivera um filho ilegítimo com sua amante Rielle Hunter, acusação que primeiro negou indignado e em seguida admitiu com o rabo entre as pernas.
Edwards sobrevive no limbo, mas Kerry foi exumado por Barack Hussein Obama para ser seu secretário de Estado depois que Hillary Clinton se melou toda no episódio Benghazi.
Tal é o homem que se apresenta como a personificação viva da “credibilidade americana” e se apoia nela para mais uma operação que, coerente com o programa  Obama-Clinton, se destina a dar mais apoio militar aos jihadistas, como deu no Egito –  com os resultados que todo mundo conhece –, e a transformar definitivamente os Estados Unidos, como disse o ex-deputado democrata David Kucinich, em Força Aérea da Al-Qaeda.
Do outro lado, cada um sente vergonha de ter de concordar com Vladimir Putin e defender o governo Assad. Talvez por isso mesmo todos se veem obrigados a apresentar alguma prova. E as provas têm aparecido umas atrás das outras.
Primeiro veio a denúncia, na ONU, de que os rebeldes sírios usam o gás sarin (ver aqui). Depois veio a prova de que o irmão de Barack Obama é membro da Irmandade Muçulmana, para a qual recebeu do governo Obama uma ajudinha de 1,5 bilhão de dólares (ver aqui).
Depois, um vídeo em que os jihadistas apareciam panejando lançar foguetes carregados do gás fatídico (ver aqui). Por fim, os próprios rebeldes sírios acabaram se gabando de usar o tal gás (ver aqui).
O leitor está livre para escolher em quem deve acreditar.

 

O velho truque

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de novembro de 2012

Um dos mais velhos truques da propaganda comunista no Brasil é esconder-se por trás de algum comunista americano desconhecido nestas plagas e cantar vitória: “Está  vendo? Até os ianques dizem que…”
Partindo da premissa popular de que ser americano é um atestado de anticomunismo, até a voz da KGB em inglês soa como uma potente confirmação direitista de qualquer mentira pró-comunista que se pretenda impingir ao cândido leitor brasileiro.
Sempre foi assim. Quando eu era adolescente, esfregavam-me no nariz os artigos de Drew Pearson e me esmagavam com o argumento fulminante: “Está  vendo? Até os ianques dizem que…” Acabei, é lógico, acreditando, sem saber que as fontes de informações de Pearson eram dois agentes soviéticos – coisa que só chegou ao meu conhecimento quatro décadas depois, mas ainda é totalmente ignorada pelo público maior, o qual já nem lembra quem foi Pearson e que tremenda influência teve na política americana.
O engodo tornava-se ainda mais persuasivo quando reforçado por um constante bombardeio de artigos e estudos eruditíssimos que nos provavam por a + b que a mídia americana inteira era um instrumento de propaganda imperialista. Qualquer agente comunista minimamente treinado sabe que a maneira mais eficaz de persuadir a plateia não é usar de um argumento lógico continuado, mas jogar com a tensão entre dois argumentos aparentemente opostos (em geral um implícito, o outro explícito).
Quando até os imperialistas admitiam que Fidel Castro era um combatente pela democracia ou que os vietcongues eram patriotas sem um pingo de ideologia comunista nas veias, que brasileiro teria a ousadia de dizer o contrário?
Sempre foi assim. A diferença é que agora esse truque, antigamente usado apenas na imprensa comunista, se tornou norma de redação na grande mídia e multiplicou por mil o seu poder de confundir e ludibriar.
Façam uma revisão do que leram nos jornais brasileiros a respeito de Barack Hussein Obama ao longo das campanhas eleitorais de 2008 e 2012 e verão que, com exceções infinitesimais, as opiniões aí expressas foram de dois tipos e somente dois:
(a) Barack Obama é um progressista moderado, a voz da América esclarecida em luta contra o obscurantismo reacionário e racista.
(b) Barack Obama, sob a aparência de bom moço, é um imperialista ianque como qualquer outro, um “falcão” empenhado em esmagar o pobre mundo sob as patas do Império americano. A única diferença entre ele e John McCain, ou Mitt Romney, é que pelo menos ele não é um caipirão racista como eles.
Forçado a escolher entre o bem absoluto e o mal menor, nos dois casos o “idiota padrão”, que é como nas redações se denomina o leitor médio, acabava sempre ficando com Barack Obama. Se as eleições fossem no Brasil, o candidato democrata teria 99% dos votos sem precisar adulterar as maquininhas, como fez em Ohio e na Pensilvânia.
O benefício secundário dessa técnica é habituar o leitor a escolher entre duas opiniões esquerdistas e a acreditar que com isso está desfrutando de um dos prazeres maiores de viver numa democracia, que é o de poder tomar posição livremente nos debates públicos. Com isso, pouco a pouco a democracia vai se reduzindo ao “centralismo democrático” leninista – a livre discussão dentro do Partido –, sem que a multidão bocó perceba a diferença.
Por fim, a coisa mais maravilhosa: com o tempo, os jornalistas sem filiação ideológica explícita se adaptam ao modelo, por mera imitação dos colegas mais velhos, e acabam por se tornar os mais eficientes colaboradores da manobra  comunista, justamente porque não têm nenhuma consciência de estar a serviço dela e rejeitam, com esgares de indignação ou trejeitos de sarcasmo, a hipótese de que estão servindo de idiotas úteis. Aliás é precisamente por essa razão que são chamados de idiotas úteis.
“Hegemonia” é isso: o domínio invisível e insensível exercido sobre as consciências pela força da repetição e do hábito impregnado na linguagem, nas rotinas, no “senso comum” (no sentido gramsciano do termo). Construí-la é, por definição, obra de muitas décadas, apoiada na passagem das gerações e no esquecimento coletivo.
Só um conhecimento muito fino da história cultural e psicológica da sociedade em que vivemos, aliada a um rigoroso exame retrospectivo da nossa própria biografia interior e à firme disposição de encontrar a verdade para além de toda a pressão do nosso grupo de referência, pode nos libertar de uma influência grudenta e anestésica que se impregna em nossas almas como uma segunda natureza.
As pessoas habilitadas a fazer esse exame contam-se nos dedos das mãos, e são ainda mais raras na classe universitária, onde a adaptação ao vocabulário e aos cacoetes mentais do ambiente são condições necessárias da sobrevivência escolar e profissional. A construção da hegemonia aposta na estupidez, na preguiça, no espírito de imitação e na covardia intelectual, qualidades que raramente faltam aos jovens universitários ávidos de reconhecimento.
P. S.  Alguém me envia cópias de e-mails que circulam numa lista de discussões entre “professores de lógica” das universidades brasileiras. O objeto da discussão é a minha pessoa. Todos ali se consideram importantes demais para discutir comigo em público, mas têm tempo de sobra para fofocar a meu respeito pelas costas, a salvo da possibilidade de um revide. Um dia talvez eu comente aqui o conteúdo das fofocas, coisa de uma miséria intelectual (e moral) capaz de levar o leitor às lágrimas.

A ordem dos fatores

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 21 de maio de 2012

No estudo admirável que publicou em 1994 sob o título The Soviet Tragedy, Martin Malia pergunta por que os sovietólogos ocidentais, tão prestigiosos, tão bem pagos, tão dotados de amplos meios de investigação, não atinaram nem por um momento com a queda iminente da URSS, e ao contrário continuaram prevendo, até a véspera do desenlace, uma nova era de progresso espetacular para o gigante de pés de barro.

O caso mais patético foi o de Paul Kennedy, historiador da Yale University, cujo livro Ascensão e Queda das Grandes Potências, anunciando para breve a queda dos EUA e a ascensão da URSS como potência dominante, virou um best-seller mundial, foi traduzido em 23 idiomas e celebrado como o nec plus ultra em matéria de análise estratégica. Isso foi em 1987: três anos antes que o curso das coisas o desmentisse fragorosamente, provando, pela milésima vez, que o aplauso universal da mídia reflete apenas o entusiasmo da uma multidão de cegos tagarelas pelos cegos ainda mais tagarelas que os guiam.

Em contraste, assinala Malia, os dissidentes internos, Bukovski, Soljenítsin, Zinoviev e tantos outros, nunca cessaram de insistir que o comunismo era irreformável, que sua autodestruição era apenas questão de tempo, mas eram recebidos com ceticismo no ambiente acadêmico ocidental, que os via como sonhadores incapazes de atinar com o poder de auto-renovação do regime soviético.

Pior ainda, os desertores da KGB e do serviço militar soviético, que traziam inside information da melhor qualidade, anunciando que o sistema estava consciente de ter de desmantelar-se até mesmo para salvar o que restasse do movimento comunista mundial, foram desprezados como “teóricos da conspiração” pelos serviços de inteligência ocidentais, isto é, pelos mais autorizados sovietólogos do mundo, porque os diagnósticos que ofereciam vinham só dos altos círculos governantes, sem levar em conta – alegava-se – as realidades sociais e econômicas do regime. O mais brilhante desses desertores, Anatolyi Golytsin, cujas previsões acabariam depois se revelando acertadas em pelo menos 94 por cento, foi o mais criticado e ridicularizado pelos bem-pensantes.

Martin Malia pergunta-se como foi possível que erros tão colossais se tornassem verdades indiscutíveis para toda uma elite acadêmica espalhada pelas maiores universidades, institutos de pesquisa, think tanks e serviços da inteligência da Europa e dos EUA, praticamente sem uma única voz discordante.

Ele poderia ter respondido, genericamente, que a principal tarefa do consenso acadêmico há duzentos anos tem sido precisamente a de impor a autoridade do erro como padrão supremo de racionalidade em todos os campos do conhecimento humano, e acabar sendo sempre desmentido por um ou dois gênios isolados, teimosos e mal subsidiados.

Mas ele preferiu dar uma ilustração mais detalhada dessa resposta.

Os estudos sovietológicos no Ocidente, no seu empenho de tornar-se cientificamente respeitáveis, seguiram em linhas gerais as duas tradições mais badaladas no campo da sociologia histórica, o positivismo e o marxismo. Segundo essas duas escolas, o rumo das coisas na esfera político-ideológica é, ao menos a longo prazo, determinado por fatores mais básicos de ordem econômico-social.

Esse princípio servia portanto, uniformemente, para analisar tanto as sociedades ocidentais como a soviética. Dele os sovietólogos concluíam que o “potencial de crescimento” da sociedade soviética terminaria por prevalecer sobre a rigidez ideológica da elite governante, forçando-a modernizar o regime para liberar, como diria Marx, as “forças produtivas”.

Nesse diagnóstico, diz Malia, não contavam com dois fatores: a força avassaladora da elite revolucionária, que ao longo de seis décadas diluíra e remoldara a seu belprazer uma sociedade passiva e inerme, e a rigidez imutável das instituições de controle governamental criadas por essa mesma elite, capazes, no máximo, de variar a dose de violência repressiva que aplicavam a cada momento, porém jamais de reformar-se de alto a baixo. Na URSS, em suma, não vigorava a hierarquia marxista de uma “infra-estrutura” econômico-social a determinar os rumos da “superestrutura” ideológica e política. A superestrutura havia se fortalecido e enrijecido a tal ponto, que já não podia refletir as mudanças da infra-estrutura: o regime soviético só podia eternizar-se, estrangulando a sociedade, ou suicidar-se para deixar a sociedade viver. O plano reformista de Gorbachov fracassou e o governo soviético foi repentinamente suicidado por um bêbado corajoso. Quod erat demonstrandum.

Ao consentir em usar as categorias de infra-estrutura e superestrutura como instrumentos essenciais de análise do fenômeno soviético, os sovietólogos ocidentais mostraram ter-se deixado hipnotizar pelos esquemas mentais do inimigo, tentando apenas usá-los com signo político invertido. Isso nunca funciona.

Os dissidentes, ao contrário, jogaram o marxismo fora junto com a discurseira oficial do Kremlin, e buscaram categorias de pensamento radicalmente novas, inspiradas em parte na filosofia da religião, em parte na lógica matemática, em na própria tradição literária russa, chegando a desvendar os mais íntimos segredos do sistema soviético ao ponto de diagnosticar com clareza o seu estado terminal.

Nossos liberais e conservadores teriam algo a aprender com essa lição, mas quem pode com gente de casca grossa e miolo mole? Metade deles acredita que a economia move o mundo (como se hoje em dia não fosse ela o mais volátil dos fatores), a outra metade imagina que o melhor que tem a fazer é macaquear o programa cultural da esquerda.

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