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Sociedade justa

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de março de 2011

Outro dia perguntaram qual o meu conceito de uma sociedade justa. A palavra “conceito” entrava aí com um sentido antes americano e pragmatista do que greco-latino. Em vez de designar apenas a fórmula verbal de uma essência ou ente, significava o esquema mental de um plano a ser realizado. Nesse sentido, evidentemente, eu não tinha conceito nenhum de sociedade justa, pois, persuadido de que não cabe a mim trazer ao mundo tão maravilhosa coisa, também não me parecia ocupação proveitosa ficar inventando planos que não tencionava realizar.

O que estava ao meu alcance, em vez disso, era apenas analisar a idéia mesma de “sociedade justa” – o seu conceito no sentido greco-latino do termo – para ver se fazia sentido e se tinha alguma serventia.

Desde logo, os atributos de justiça e injustiça só se aplicam aos entes reais capazes de agir. Um ser humano pode agir, uma empresa pode agir, um grupo político pode agir, mas “a sociedade”, como um todo, não pode. Toda ação subentende a unidade da intenção que a determina, e nenhuma sociedade chega a ter jamais uma unidade de intenções que justifique apontá-la como sujeito concreto de uma ação determinada. A sociedade, como tal, não é um agente: é o terreno, a moldura onde as ações de milhares de agentes, movidos por intenções diversas, produzem resultados que não correspondem integralmente nem mesmo às intenções deles, quanto mais às de um ente genérico chamado “a sociedade”!

“Sociedade justa” não é portanto um conceito descritivo. É uma figura de linguagem, uma metonímia. Por isso mesmo, tem necessariamente uma multiplicidade de sentidos que se superpõem e se mesclam numa confusão indeslindável, que basta para explicar por que os maiores crimes e injustiças do mundo foram praticados, precisamente, em nome da “sociedade justa”. Quando você adota como meta das suas ações uma figura de linguagem imaginando que é um conceito, isto é, quando você se propõe realizar uma coisa que não consegue nem mesmo definir, é fatal que acabe realizando algo de totalmente diverso do que imaginava. Quando isso acontece há choro e ranger de dentes, mas quase sempre o autor da encrenca se esquiva de arcar com suas culpas, apegando-se com tenacidade de caranguejo a uma alegação de boas intenções que, justamente por não corresponderem a nenhuma realidade identificável, são o melhor analgésico para as consciências pouco exigentes.

Se a sociedade, em si, não pode ser justa ou injusta, toda sociedade abrange uma variedade de agentes conscientes que, estes sim, podem praticar ações justas ou injustas. Se algum significado substantivo pode ter a expressão “sociedade justa”, é o de uma sociedade onde os diversos agentes têm meios e disposição para ajudar uns aos outros a evitar atos injustos ou a repará-los quando não puderam ser evitados. Sociedade justa, no fim das contas, significa apenas uma sociedade onde a luta pela justiça é possível. “Meios” quer dizer: poder. Poder legal, decerto, mas não só isso: se você não tem meios econômicos, políticos e culturais de fazer valer a justiça, pouco adianta a lei estar do seu lado. Para haver aquele mínimo de justiça sem o qual a expressão “sociedade justa” seria apenas um belo adorno de crimes nefandos, é preciso que haja uma certa variedade e abundância de meios de poder espalhados pela população em vez de concentrados nas mãos de uma elite iluminada ou sortuda. Porém, se a população mesma não é capaz de criar esses meios e, em vez disso, confia num grupo revolucionário que promete tomá-los de seus atuais detentores e distribuí-los democraticamente, aí é que o reino da injustiça se instala de uma vez por todas. Para distribuir poderes, é preciso primeiro possuí-los: o futuro distribuidor de poderes tem de tornar-se, antes, o detentor monopolístico de todo o poder. E mesmo que depois venha a tentar cumprir sua promessa, a mera condição de distribuidor de poderes continuará fazendo dele, cada vez mais, o senhor absoluto do poder supremo.

Poderes, meios de agir, não podem ser tomados, nem dados, nem emprestados: têm de ser criados. Caso contrário, não são poderes: são símbolos de poder, usados para mascarar a falta de poder efetivo. Quem não tem o poder de criar meios de poder será sempre, na melhor das hipóteses, o escravo do doador ou distribuidor.

Na medida em que a expressão “sociedade justa” pode se transmutar de figura de linguagem em conceito descritivo viável, torna-se claro que uma realidade correspondente a esse conceito só pode existir como obra de um povo dotado de iniciativa e criatividade – um povo cujos atos e empreendimentos sejam variados, inéditos e criativos o bastante para que não possam ser controlados por nenhuma elite, seja de oligarcas acomodados, seja de revolucionários ávidos de poder.

Aquele que deseja sinceramente libertar o seu povo do jugo de uma elite mandante não promete jamais tomar o poder dessa elite para distribuí-lo ao povo: trata, em vez disso, de liberar as forças criativas latentes no espírito do povo, para que este aprenda a gerar seus próprios meios de poder – muitos, variados e imprevisíveis –, minando e diluindo os planos da elite – de qualquer elite – antes que esta possa sequer compreender o que se passou.

Antes da tragédia

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 16 de novembro

Quem não lê as colunas de Ann Coulter e não ouve o programa de Rush Limbaugh no rádio não tem a menor idéia do que se passa na política americana. Se ambos são superlativamente odiados pela esquerda, não é tanto por suas opiniões, similares às de outros conservadores quaisquer, mas por um detalhe que os torna indigeríveis: eles têm as informações essenciais, e não hesitam em publicá-las quando a mídia em geral as ignora ou prefere sacrificar a verdade no altar das conveniências.

O que li no último artigo de Ann Coulter é indispensável para uma avaliação realista da vitória dos democratas: para todo presidente americano reeleito, perder a base parlamentar no meio do segundo mandato é regra, não exceção. Aconteceu a Roosevelt, Eisenhower, Kennedy-Johnson, Nixon-Ford, Reagan e Clinton. Por que não aconteceria a George W. Bush? Com uma diferença: Bush perdeu muito menos cadeiras no Senado e na Câmara do que seus antecessores em situação idêntica. O ganho total da oposição foi o menor que já houve num sexto ano de presidência.

Conclusão: não houve nenhuma “derrota arrasadora” dos republicanos, nenhum “tsunami eleitoral”, nenhuma “rejeição maciça” da guerra iraquiana. Quem diz que houve está tentando alterar criar um simulacro de realidade por meio de pura ênfase verbal. Isso não é jornalismo, é propaganda.

Quanto a Limbaugh, sem ele eu não teria jamais sabido que até poucos dias antes do 11 de setembro praticamente todos os altos postos de segurança no governo de Washington ainda estavam nas mãos dos clintonianos, cujos aliados parlamentares, de pura má-vontade, haviam adiado por meses confirmação dos substitutos nomeados pelo presidente. Se você não sabe disso, não percebe que a gritaria democrata contra a “imprevidência” dos serviços de segurança do governo Bush foi puro fingimento maquiavélico. Para mim, isso não é surpresa: há quarenta anos vejo que a esquerda só sai espumando de cólera justiceira quando tem algum crime a esconder, não raro o mesmo que ela denuncia, em geral algum muito pior. Mas o grosso da população brasileira ainda não notou essa constante.

Nos EUA, felizmente, Coulter está na lista de best sellers e o programa de Limbaugh tem 38 milhões de ouvintes (38 vezes a tiragem do New York Times).

O erro básico dos conservadores americanos é continuar acreditando que os esquerdistas são políticos normais, que podem ser combatidos por meio do voto. O instrumento principal de ação da esquerda é o crime, e oferecer a criminosos a chance da concorrência eleitoral é dignificá-los e fortalecê-los. A única arma que pode vencê-los é o ativismo judicial, do qual eles mesmos se servem com tanta desenvoltura hipócrita. É preciso colocá-los no banco dos réus antes que eles subam à tribuna da acusação, da tribuna saltem para os palanques, dos palanques para os postos de governo e daí para o poder absoluto. E é preciso agir rápido, porque, uma vez que eles cheguem à última etapa, a Justiça já nada poderá contra eles. Isso já está acontecendo no Brasil, mas, se acontecer nos EUA, será uma tragédia de alcance mundial.

Proposta indecente

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio (editorial), 27 de julho de 2006

Se há um assunto sobre o qual não faltam informações, é o MST. Há os livros e discursos do sr. João Pedro Stedile. Há uma infinidade de panfletos, sites da internet, notícias, artigos e entrevistas de jornal, bem como documentários da TV nacional e internacional. Há os relatórios da polícia e do Ministério da Reforma Agrária. Há, para quem deseje saber algo contra, os livros de Xico Graziano (O Carma da Terra no Brasil) e Nelson Ramos Barreto (Reforma Agrária — O Mito e a Realidade), sem contar os relatos de observação direta do advogado paulista Cândido Prunes.

  Mesmo supondo-se, para raciocinar por absurdo, que nenhum dos militares que freqüentam a Escola Superior de Guerra tivesse jamais acesso a dados colhidos pelos órgãos de inteligência, ainda assim o material existente sobre os sem-terra é abundante, e o tempo que todos os interessados tiveram para estudá-lo foi bem longo. O general Barros Moreira, comandante da ESG, está e sempre esteve ciente de que uma simples palestra, pronunciada por uma criatura que não prima pela erudição nem pela criatividade da inteligência, não poderia acrescentar algo de substancial e novo ao que ele próprio e os demais membros da Escola já sabiam de cor e salteado. Não poderia e não acrescentou: o sr. João Pedro Stedile nada disse ali que já não tivesse dito pelo menos uma dúzia de vezes. Em compensação, acrescentou um novo brilho ao seu próprio curriculum: de chefe de uma organização ilegal e criminosa, foi elevado à condição de porta-voz de uma corrente de opinião legítima, merecedora não só de discussão respeitosa nos altos círculos intelectuais da nação como também dos aplausos entusiásticos que a platéia esguiana não lhe regateou. O general sabe hoje, como sabia ao formular o convite, que esse seria o único efeito previsível da recepção dada ao chefe do MST numa instituição que, afinal, já foi bastante respeitável no passado.

Ao alegar que “a ESG tem de ouvir os dois lados” e que se Stedile é criminoso “isso é problema da Justiça e não da ESG”, o general só forneceu a prova cabal de que, na sua opinião, entre o lado da Justiça e lado do crime a instituição que ele preside deve ser imparcial e soberanamente indiferente. Ele apenas se esqueceu de esclarecer que esse nivelamento é a essência mesma do crime, o qual não seria crime se respeitasse o primado da lei em vez de ombrear-se com ela.

Apagar a diferença entre a legalidade e a ilegalidade é aliás a estratégia deliberada e constante do próprio MST, conforme expliquei em artigo recém-publicado (http://www.olavodecarvalho.org/semana/060720jb.html):

O MST poderia, sem dificuldade, ter-se registrado como ONG e solicitado legalmente a ajuda financeira do Estado. Se não o fez, não foi tanto para escapar à responsabilidade civil e penal, mas por um cálculo estratégico muito preciso: mais importante até do que instituir a violência e o terror como meios válidos de acesso à propriedade da terra era subjugar e usar o próprio Estado como instrumento legitimador do processo… Essa inversão radical do critério de legitimidade é muito mais decisiva do que a subseqüente tomada do poder, que não faz senão dar expressão visível ao fato consumado .”

Que um governo que coloca suas alianças revolucionárias acima das leis e da Constituição ajude o MST a implementar essa transição não é, em si, nada de estranho. A novidade é que um alto oficial das Forças Armadas, personificando uma instituição reconhecida como expressão do pensamento militar, se disponha tão bisonhamente a colaborar nessa empreitada sinistra, fundada num dos mais pérfidos cálculos estratégicos da elite gramsciana que conduz o processo da revolução continental.

Segundo o Art. 142 da Constituição, incumbe às Forças Armadas garantir os poderes constitucionais, e não ajudar a corroê-los por meio de ardis maliciosos como esse no qual o sr. Stedile se tornou o supremo expert.

Mas o general Barros Moreira não se limitou a passar por cima da Constituição. Tomando uma decisão que ele não podia deixar de saber que iria chocar a sensibilidade de quase todos os seus companheiros de farda, ele infringiu ostensiva e conscientemente o Regulamento Disciplinar do Exército, que, no seu Anexo 1, proíbe “concorrer para a discórdia ou a desarmonia ou cultivar inimizade entre militares”.

Se ele o fez com cara de inocência, das duas uma: ou foi por ser idiota o bastante para acreditar que não havia nisso nada de mais, ou foi por saber que a camuflagem anestésica é indispensável à transição indolor pretendida pelo MST. Nos dois casos a indignação que tantos oficiais militares vêm mostrando contra ele é mais do que justa: é moralmente obrigatória. O que esse homem lhes pediu foi que se curvassem alegremente à desonra consentida, depois de tantas humilhações já impostas às Forças Armadas. Foi a proposta mais indecente que um oficial brasileiro já fez à corporação militar.

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