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Alguém e ninguém

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de julho de 2013

          

Tentando justificar a ausência de escritores liberais e conservadores na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) deste ano, assim se pronunciaram seus mais destacados representantes:
Miguel Conde, curador: “Não acho que escritores associados à direita sejam numerosos. Tenho até dificuldade em pensar em nomes.”
Sérgio Miceli, membro da principal mesa de debates: “Bons pensadores à direita são peça rara no País.”
Milton Hatoum, conferencista encarregado da palestra de abertura do evento: “De escritor importante no Brasil, não me lembro de nenhum de direita.”
Dada a relevância dos personagens, não creio exagerar ao supor que suas opiniões e seu nível de cultura exemplificam a média dos participantes, excetuada a hipótese, hedionda mas plausível, de que ela vá daí para baixo.
Nesse sentido, a FLIP é a mais espetacular amostra viva da completa destruição da alta cultura no País, substituída pela tagarelice autopromocional de usurpadores e carreiristas barbaramente incultos e infinitamente presunçosos, cuja sobrevivência no cenário intelectual  se deve tão e somente a três fatores: (1) proteção governamental, (2) interbadalação mafiosa, (3) sistemática e preventiva exclusão dos adversários reais e possíveis.
O fator 3 vem sendo aplicado com tal perseverança, que acabou por moldar a cabeça dos seus mesmos praticantes. Primeiro eles se recusam a falar de um autor, depois concluem, do seu próprio silêncio, que ele não existe. Sua regra áurea é o argumentum ad ignorantiam: “Tudo aquilo que  não sei ou  esqueci é inexistente, nulo ou irrelevante.”
Os três citados mostraram mais ignorância da cultura brasileira do que se poderia tolerar – mas não aprovar – em alunos de ginásio.
Não vou discutir com esses palhaços. Vou fornecer ao leitor um breve mostruário daquilo que eles, tomando a sua própria ignorância como medida da realidade, dizem ser inexistente ou quase.
Eis aqui, colhidos a esmo, uns poucos nomes de escritores e outros intelectuais brasileiros de ontem e de hoje, todos mais do que consagrados (muitos internacionalmente), tidos como “de direita”,  seja por eles próprios, seja por seus detratores esquerdistas: Afonso d’Escragnolle Taunay, Alberto Oliva; Ângelo Monteiro; Antônio Olinto; Antônio Paim; Arthur César Ferreira Reis; Augusto Frederico Schmidt; Bruno Garschagen; Bruno Tolentino; Carlos Lacerda; Cornélio Penna; Demétrio Magnoli; Denis Rosenfield; Diogo Mainardi; Dora Ferreira da Silva; Eduardo Gianetti da Fonseca; Eduardo Prado; Eugênio Gudin; Gerardo Mello Mourão; Gilberto de Mello Kujawski; Gilberto Freyre; Gustavo Corção; Heitor de Paola.; Heraldo Barbuy; Ignácio da Silva Telles; Irineu Strenger; Ives Gandra da Silva Martins; João Camilo de Oliveira Torres; João de Scantimburgo; Joaquim Nabuco; Jorge Caldeira; José Américo de Almeida; José Guilherme Merquior; José Osvaldo de Meira Penna; Josué Montello; Júlio de Mesquita Filho; Leonardo Prota; Leonel Franca (Pe.); Lúcio Cardoso; Luís Viana Filho; Luiz Felipe Pondé; Machado de Assis; Manuel Bandeira; Maria José de Queiroz; Mário Ferreira dos Santos; Mário Guerreiro; Mário Vieira de Mello; Maurílio Penido (Pe.); Miguel Reale; Milton Campos; Nelson Rodrigues; Nicolas Boer; Octavio de Faria; Oliveira Lima; Oliveira Vianna; Otto Maria Carpeaux (primeira fase); Paulo Francis (segunda fase); Paulo Mercadante; Paulo Ricardo de Azevedo (Pe.); Pedro Calmon; Percival Puggina; Plínio Barreto; Rachel de Queiroz; Reinaldo Azevedo; Renato Cirell Czerna; Ricardo Velez Rodriguez; Roberto Campos; Roberto Fendt Júnior; Rodrigo Gurgel; Romano Galeffi; Roque Spencer Maciel de Barros; Ruy Barbosa; Vicente Ferreira da Silva; Vilém Flusser e Wilson Martins.
Faço a lista no improviso e de memória, porque tenho alguma e porque estudei. Os anões da FLIP não sabem nada; não são intelectuais exceto no sentido muito elástico e gramsciano do termo, isto é, agentes de organizações de esquerda encarregados de “ocupar espaços” na mídia, nas universidades e no movimento editorial e ali abrir vagas para os seus parceiros de militância, vetando o acesso de candidatos politicamente indesejáveis.
O establishment esquerdista recompensa-os generosamente, ao ponto de induzir cada um deles à ilusão de que é mesmo – como diria Léon Bloy – “aquilo que se convencionou chamar de alguém” – e de que tudo o mais é apenas um vasto ninguém.
Mais que um simples escândalo literário e editorial, a FLIP deste ano é um delito de malversação de dinheiro público do governo do Rio de Janeiro, da Embratel, da Petrobras e da Eletrobras. Pessoas que desconhecem a cultura brasileira não têm nenhum direito de representá-la e de ser subsidiadas para isso pelos já tão espoliados e exaustos contribuintes. A FLIP não é um acontecimento da esfera intelectual, é só mais um episódio banal da corrupção avassaladora que tomou conta deste país.
***
Assinalo aqui, de passagem e com imensa tristeza, o recente falecimento de um queridíssimo amigo, o escritor e filósofo Paulo Mercadante, uma das inteligências mais lúcidas e produtivas que este Brasil já conheceu.
Comunista na juventude, Paulo rompeu com o Partido após a denúncia dos crimes de Stálin por Nikita Kruschev em 1956, e formou, com Antônio Paim e outros, o núcleo do que viria a ser a corrente liberal do pensamento brasileiro nas décadas seguintes.
Paulo Mercadante foi o homem mais gentil, bondoso e generoso que conheci, além de ser o autor de pelo menos um clássico indiscutível (A Consciência Conservadora no Brasil) e de notáveis ensaios filosóficos, os quais pairam muitas léguas acima das cabecinhas da FLIP.

Grandes brasileiros

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 14 de dezembro

Por estes dias, não sei bem a data, o embaixador José Osvaldo de Meira Penna completará noventa anos de idade. Noventa anos que valem por novecentos, tal a quantidade de experiência, conhecimento e sabedoria que esse homem extraordinário acumulou ao longo de uma vida repleta de estudos, viagens e encontros com personagens de primeira ordem. Já pedi e implorei que ele escrevesse suas memórias, mas não dá tempo: novas idéias e novos livros continuam brotando da cabeça dele num jato veloz e contínuo, sem lhe deixar uma brecha para registrar o passado. Num país onde as pessoas ficam gagás aos dezoito anos (não sem alguma ajuda universitária, é verdade), a pujança mental de um nonagenário, sua inteligência fulgurante e seu interesse apaixonado pela vida presente chegam a ter algo de obsceno. Já entrevejo o dia em que Meira Penna será proibido pela delegacia de costumes. Se isso ainda não aconteceu, pelo menos ele já sofreu toda sorte de boicotes, perfídias e difamações que a inépcia oficial reserva à genialidade despudorada. Há anos excluído da mídia chique – o que é antes um prejuízo para a população do que para uma alma alegre demais para ser vencida pelas frustrações –, ele só se comunica com os leitores através dos seus livros, do website www.meirapenna.org e de ocasionais aparições em congressos e conferências, onde ilumina os mais complicados problemas nacionais com uma lucidez de alguns milhões de watts e, com tiradas humorísticas surrealistas, faz a platéia passar mal de tanto rir. Felizmente seu humorismo não ficou só no improviso oral. Seus romances satíricos Urânia e Cândido Pafúncio estão entre as coisas mais engraçadas que já li nesta vida. É verdade que, diante de suas páginas, nem todos os leitores riem. Alguns choram – os personagens ridículos que ali se reconhecem.

Como adoramos conversar, eu e esse meu amigo queridíssimo vivemos inventando divergências só para no fim chegarmos à conclusão de que estamos de pleno acordo. Num único ponto somos inconciliáveis: ele é apaixonado por Brasília e eu estou seguro de que a única coisa bonita nessa cidade é o jardim da casa dele, um ambiente de sonho criado ao longo de trinta anos, com devoção e arte, por ele e por sua esposa, a adorável D. Dorothy, uma americana da North Carolina que mantém viva no coração do Brasil a tradição da hospitalidade sulista.

Qualquer que seja o caso, sou fã de carteirinha desse escritor originalíssimo e admirável, um dos melhores – e mais injustiçados – que já nasceram neste país onde se tolera tudo, exceto a inteligência, a verdade e a sinceridade. E só não vou elogiá-lo até à última linha deste artigo porque me ocorre que o próximo dia 3 de janeiro será o centenário de nascimento de um brasileiro ainda mais injustiçado: o filósofo Mário Ferreira dos Santos. Não houve na nossa terra e aliás também em muitas outras um pensador mais sério, mais profundo, mais consistente, mais grandioso nas suas realizações intelectuais e mais desprezado pela mediocridade em torno. Patrimônio da humanidade, sua obra atravessará os séculos. Quando o Brasil cessar de existir, será lembrado principalmente por este detalhe: aqui nasceu e viveu um dos mais autênticos gênios da filosofia universal.

Alain Peyrefitte e a sociedade de confiança

J. O. DE MEIRA PENNA

O Estado de S. Paulo, domingo, 19 de dezembro de 1999

A morte de amigos e pessoas ilustres é uma fatalidade com a qual jamais nos reconciliamos. Por mais que saibamos ser parte inevitável da condição humana, o sentimento de revolta que nos atinge é tanto mais pronunciado quanto mais a essa pessoa estamos presos por laços de afeto e admiração. Foi assim que reagi à notícia do falecimento de Alain Peyrefitte, com o qual havia marcado um encontro, no início do mês passado, para comunicar-lhe os esforços do Instituto Liberal do Rio de Janeiro no sentido de publicar um de seus livros. Homem extremamente discreto, até o último momento Peyreffite escondeu a moléstia que o consumia. Disseram-me que na antevéspera de seu falecimento, ainda foi entregar ao editor as provas finais de sua última obra, o terceiro volume de C’Était De Gaulle.

Escritor, político ativo e teórico, membro do Institut e da Academia Francesa, senador, oito vezes ministro, maire da cidade medieval de Provins, Peyrefitte era uma combinação excepcional daquele ideal platônico, tão freqüentemente frustrado, de filósofo e governante ao mesmo tempo. Julgo que, como amiúde ocorre, acabou preferindo as letras ao exercício do poder. Em sua enormemente prolífica atividade como escritor, dedicou-se a três temas favoritos, com um quarto ocasional.

Foi em primeiro lugar o cronista de De Gaulle e alguns de seus contemporâneos o compararam a outros, como Commines, Saint Simon e Las Cases, os de Luís XI, Luís XIV e Napoleão. No terceiro volume, por falar nisso, esperemos que faça referência à viagem do general à América do Sul em 1966 em que, presumivelmente, encontraremos observações sobre nosso país. Como historiador de um dos períodos mais importantes da história moderna da França (e da Europa), Peyrefitte tem seu nome já consagrado como intérprete do renascimento de sua pátria após o colapso que a afetou na primeira metade do século. Inicialmente diplomata, formado na famosa ENA, a escola superior que prepara a elite da administração francesa, e havendo alcançado o grau de ministro plenipotenciário, serviu em Bonn, na Cracóvia e na Conferência de Bruxelas após o que, em 1958, entrou para a política, sendo sucessivamente reeleito deputado até tornar-se senador em 1995.

Como um dos mais fiéis gaullistas, foi ministro da Informação e ministro da Ciência e Tecnologia Atômica (1966/67), em cuja capacidade contribuiu para a entrada da França no clube fechado das potências nucleares. Como ministro da Educação, colocou-se no centro do chienlit estudantil de maio de 1968, que conseguiu conter sem violência.

Foi como ministro da Justiça (Garde des Sceaux) que Peyrefitte visitou o Brasil, em outubro de 1978, com o presidente Giscard d’Estaing, quando tive a honra de conhecê-lo, interessado como estava em um de seus primeiros e mais importantes livros, Le Mal Français, publicado dois anos antes. Traduzido para o inglês, e para o espanhol e italiano com o título O Mal Latino, tenho tentado em vão interessar editoras brasileiras na soberba análise crítica empreendida por Peyrefitte, já agora como sociólogo, dos fundamentos religiosos, culturais e morais dos males que têm prejudicado o desenvolvimento e a modernização de toda a área latina.

Tocqueville e Weber – Revela-se aí fiel discípulo de Tocqueville e Weber. Responsabiliza inclusive a contra-reforma, como fazemos nós, liberais brasileiros, e a tradição do autoritarismo absolutista pelas mazelas que embaraçam, senão impedem, nossa emergência como democracias liberais, abertas ao mercado e sobrepujando o ranço patrimonialista de nossa estrutura social. Creio que em nenhuma outra obra de sociologia as origens de nossos vícios coletivos foram tão objetiva e sabiamente perscrutados em suas profundas raízes culturais ou psicossociais. Talvez seja o vezo weberiano da crítica ao romanismo centralizador e interventor de nossa estrutura sócio-política o motivo das suspeitas de que alimentasse convicções huguenotes.

Peyrefitte, infelizmente, não estendeu suas pesquisas sociológicas à América Latina e, particularmente ao Brasil como eu esperava, após a segunda visita que realizou a nosso país, em 1987, a convite do Estado e da Associação Comercial de S. Paulo. Nessa ocasião lhe servi de intérprete, em conferência pronunciada na Avenida Paulista, e de cicerone no Rio e Brasília. Estava, na ocasião, acompanhado do filho mais moço, Benoit. Ao invés, o ilustre acadêmico preferiu desviar sua atenção para um outro tema que desde então o fascinou.

Paixão de aprender – Sofrendo, como notou o jornalista e autor liberal Guy Sorman, da “paixão de aprender”, Peyrefitte publicou uma série de obras sobre a China, que visitou mais de uma dúzia de vezes. Talvez tenha almejado realizar para os chineses o mesmo que Tocqueville com sua De la Démocratie en Amérique. Em 1973, parafraseando uma frase célebre de Napoleão publicou Quand la Chine s_Éveillera… le Monde Tremblera. Esse livro foi seguido de Chine Immuable, L_Empire Immobile (1989), La Tragédie Chinoise (após o episódio do massacre de estudantes na Praça da Paz Celestial) e de um pequeno ensaio, com fotografias, terminando com La Chine s_Est Éveillée (1996), ocasião em que manteve uma longa entrevista com o atual presidente chinês Jian Zemin.

Em todos esses ensaios, julgo tenha o autor compensado seu deslumbramento com o Império do Meio (Djung Guó), graças a uma crítica objetiva da complexa problemática levantada pela necessidade da China se abrir ao mundo global, enquanto procura preservar sua identidade confuciana e a difícil unidade do povo de Han, de mais de 1 bilhão de pessoas.

Teimosia oriental – O Império Imóvel foi publicado em português em 1997 pela Casa Jorge Editorial do Rio. Acompanhado de mais três volumes complementares, relata a embaixada chefiada em 1792/94 por lorde Macartney, na primeira e frustrada tentativa dos ingleses de provocarem a abertura do imenso império, então governado por seu último grande imperador, Kien Long. A China obstinava-se na arrogância de ser a potência mundial hegemônica, postura estimulada pela desconfiança da classe dominante imperial mandchú. Os volumes anexos cobrem uma enorme documentação relativa às reações dos jesuítas de Pequim, dos ingleses e dos próprios chineses àquela missão diplomática sui-generis – que demorou dois anos e comportou o envio de uma esquadra e 2.000 homens de comitiva. Macartney não pôde contornar, contudo, a teimosa insistência dos mandarins no sentido de lhe exigir o humilhante kowtow, as nove prosternações diante do Filho do Céu, obrigatórias para os representantes dos vassalos.

Surpresa – Peyrefitte manifestou sua surpresa quando descobriu que eu conhecia a extrema pertinência desse episódio, no relacionamento entre o Ocidente e Ásia. Expliquei-lhe que minha carreira se iniciou na China (1940/42 e 1947/49) e que, durante anos, estudei sua história e cultura. O que destaca a tese central da obra é o contraste entre a inflexível imobilidade e introversão autárquica dos chins, postergando durante dois séculos a abertura do Império Central, até o esforço de modernização encetado por Deng Xiaoping – e a flexibilidade com que, em meados do século 19, os japoneses se adaptaram à inevitável globalização. Se o Japão é hoje a segunda potência econômica do mundo enquanto só agora “a China acorda para fazer tremer o mundo”, a origem do descompasso se coloca nas peripécias dessa missão diplomática.

Criminalidade – O quarto tema que interessou o eminente escritor francês foi o problema da Justiça e da criminalidade no mundo moderno, fruto de sua experiência como ministro da Justiça. Les Chevaux du Lac Ladoga – la Justice entre les Extrêmes apareceu em 1982 e lhe custou caro: quase foi morto por uma bomba terrorista que explodiu na frente de sua residência, em Provins, sacrificando seu motorista. Peyrefitte defende uma legislação mais rigorosa contra bandidos, assassinos e terroristas – antecipando a idéia central que estamos emergindo da Idade das Guerras para entrar na Idade do Crime.

Mas retornemos agora ao tema principal das preocupações de Peyrefitte, expresso em escritos que vão desde 1947, Le Sentiment de Confiance, ao Du Miracle en Économie e, finalmente, a La Société de Confiance, de 1995. Com tradução patrocinada pelo Instituto Liberal, essa obra será brevemente publicada pela Editora Topbooks, sob o comando esclarecido e corajoso de José Mário Pereira e com tradução primorosa de Cylene Bittencourt.

Comentemos a questão levantada por Peyrefitte. Num artigo de 2 de março de 1997, Roberto Campos se pergunta por que, apesar das cerebrizações de economistas e sociólogos, o desenvolvimento econômico continua a ser essencialmente um mistério. Campos oferece como exemplos de problemas não esclarecidos o despertar da China de um sono de 500 anos, o “milagre brasileiro” da década dos 70 que desembocou na “década perdida” dos 80, e os “dominós” asiáticos que se tornaram “dínamos”.

A pergunta levantada é daquelas a que inúmeros pesquisadores têm tentado responder desde que, em 1776, Adam Smith pesquisou As Causas da Riqueza das Nações, ora salientando o ambiente cultural; ora favorecendo o tipo de estrutura institucional no mercado aberto; ora apontando para a iniciativa de governantes excepcionais que, convencidos dos méritos superiores da receita do livre câmbio sobre o planejamento socialista centralizador e uma pertinaz tradição patrimonialista, tomaram a iniciativa de atos concretos de sábia política, graças aos quais um surto de desenvolvimento milagrosamente se registou. Estou, neste caso, pensando especialmente em Pinochet, no Chile, e em Deng Xiaoping, na China. As duas nações registram índices inéditos de desenvolvimento acelerado, que a “crise” atual não parece haver senão temporariamente interrompido.

Um caso particular que desperta nossa curiosidade é o da França. Trata-se, afinal de contas, da quarta economia mundial (depois dos EUA, Japão e Alemanha). É também uma nação que, por não se decidir francamente nem por um lado, nem pelo outro, continua dividida, angustiada e sofrendo de uma espécie de incurável moléstia social. A pátria de Alain Peyrefitte não parece haver superado a fatídica cisão esquerda X direita que a dialética do jacobinismo revolucionário em 1793 engendrou, com seu contraponto no bonapartismo ditatorial; nem tampouco o absolutismo (“O Estado sou Eu”) herdado do Rei Sol, Luís XIV.

Para a integração profícua na comunidade regional e num mundo globalizado, deve todo cidadão convencer-se que a liberdade de iniciativa, a confiança na honestidade dos outros, o espírito inventivo e o estado de direito, forte e limitado, são definidos como as causas da riqueza coletiva – não havendo outras.

Ora, foi justamente Peyrefitte quem melhor procurou analisar o que chama le mal français. Ao vislumbrar as condições da sociedade de confiança que favorece o progresso, o grande ensaísta enfrentou um de seus maiores desafios. No esforço hercúleo de penetrar no “mistério” ou “milagre” do desenvolvimento (uma de suas obras prévias chama-se, justamente, Du Miracle en Économie), nosso amigo é o maior participante francês num debate ardente que data da publicação, em 1835/40, da Démocratie en Amérique e, em 1905, de um das obras fundamentais da sociologia moderna, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

Falsidades perversas – A polêmica que esses livros provocaram muito longe ainda está de se esgotar – e confesso me haver dedicado, com furor, a promovê-la no Brasil. O propósito weberiano era escaparmos das perversas falsidades do determinismo materialista que fez a fortuna inidônea do marxismo. Peyrefitte elaborou extensamente o tema da preeminência dos fatores morais, desde a publicação daquele primeiro título há 20 anos, até seus mais recentes. E é esta obra fundamental precisamente, a Sociedade de Confiança, que foi precedida de um compte-rendu do colóquio internacional, realizado no Institut de France em setembro de 1995 – em que me surpreendendi com a identidade dos problemas levantados, na França e no Brasil, quanto às condições morais e culturais do desenvolvimento e às políticas adequadas a seu sucesso.

No livro, o pensador francês coroou seu trabalho monumental com um estudo histórico e sociológico exaustivo da ética de livre iniciativa e incentivos ao setor privado da economia, suscetíveis de assegurarem o progresso. Renovando com o inquérito que, pela primeira vez, Adam Smith empreendeu no sentido de descobrir, na liberdade e na simpatia, o segredo do progresso, ele acentua o paralelismo entre o que chama a “divergência” religiosa entre os latinos, autoritários, patrimonialistas e desconfiados – e os holandeses e anglo-saxões, mais liberais, mais tolerantes, mais racionais e livres, e nutrindo maior confiança nos méritos da troca e divisão do trabalho.

Questão de confiança – A divergência explicaria o ritmo diverso de crescimento e progresso das respectivas sociedades. Esse desenvolvimento tem sido sustentado, de um lado, pelos sentimentos de confiança dos cidadãos uns nos outros; e, do outro, pela capacidade do estado de direito de fazer cumprir o princípio pacta sunt servanda. Pois não devem os contratos e a propriedade ser respeitados, sendo a honestidade pressuposto de toda transação econômica?

O descompasso histórico no ritmo de desenvolvimento se foi acentuando. Peyrefitte compara, por exemplo, o take-off inglês a partir do século 18 com o declínio espanhol. Chegando a nossos dias, diagnostica a mentalidade desconfiada, com o pressuposto generalizado que, até prova em contrário, todo o mundo é desonesto e sem-vergonha, se não pertence a nosso círculo de amizades e família. Os governantes podem ser tacanhos, mas só a eles o povo acredita que cabe a tarefa altruísta de nos salvar do egoísmo entranhado de todo capitalista. E insiste no fato de que a resistência enfadonha a qualquer inovação e o conservadorismo inquisitorial da Igreja cooperam para erguer barreiras burocráticas e impasses legais a qualquer oportunidade de avanço nos países obedientes à ética tridentina sob a qual fomos educados e sofremos.

Introversão – Peyrefitte amplia e aprofunda estudos setoriais que, em The Moral Basis of a Backward Society, foram realizados pelo sociólogo americano Edward Banfield ao analisar o comportamento familista, desconfiado e introvertido numa aldeia do mezzogiorno italiano, dominada pela Máfia; e pelo nipo-americano Francis Fukuyama que, em seu livro Trust, tenta explicar o sucesso das sociedades da Ásia oriental por motivações oriundas da disciplina da moral confuciana.

Os dados elementares do desenvolvimento são a liberdade, a criatividade e a responsabilidade. Mas utilizar os recursos da liberdade com autonomia individual e explorar essas virtudes na fase educacional da vida fazem supor uma confiança muito forte no homem, trabalhando dentro das normas de uma sociedade livre. É esse o fator, por excelência, do desenvolvimento.

Querer o desenvolvimento, o progresso, o enriquecimento do país comporta, na conclusão do livro, a “confiança na confiança”. Peyrefitte é otimista. O tom hortativo do trabalho representa o esforço de um homem que, tendo ao morrer alcançado o topo da elite intelectual francesa, incentiva seus compatriotas à superação dos traços culturais viciosos que configuram o “mal francês”. Estamos em suma, em presença de um novo Tocqueville cujo valor e reputação tenderão, estou certo, a crescer e se estender fora do âmbito da língua e cultura francesas.

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