Posts Tagged jornalistas

Visão curta e visão mais curta

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de setembro de 2012

O livro dos Trinta e Seis Estratagemas chineses ensina: “Todo fenômeno é no começo um germe, depois termina por se tornar uma realidade que todo mundo pode constatar. O sábio pensa no longo prazo. Eis por que ele presta muita atenção aos germes. A maioria dos homens tem a visão curta. Espera que o problema se torne evidente, para só então atacá-lo.”

As duas perguntas que  o trecho sugere são:

1) Onde estão os germes?

2) Quando os problemas ficam evidentes, aparecem claros para todo mundo
ao mesmo tempo?

 A resposta à primeira pergunta nem é muito difícil. Todas as situações histórico-políticas nascem da ação humana, e a ação nasce da especulação de possibilidades. Quem especula possibilidades são os intelectuais, numa gama que vai desde os estudantes tagarelas, passando pelos ideólogos de partidos, até os assessores e conselheiros de potentados da políticae das finanças, culminando nos círculos discretos ou até semi-secretos de inteligências privilegiadas (como por exemplo a Fabian Society de 1883, o núcleo fundador da Escola de Frankfurt, o grupo de Stefan George ou a tariqah de Frithjof Schuon). Das idéias que aí circulam, algumas são esquecidas, algumas se modificam até tornar-se irreconhecíveis, outras acabam por se transmutar em forças políticas num prazo mínimo de trinta anos.

 Não há um só partido, campanha ou movimento que não tenha começado assim, bem “low profile”. O analista que quer saber para onde a política está indo, ou de onde ela veio, tem pois de se interessar por uma vasta rede de discussões que, para a mídia usual, é de todo invisível: só aparece em livros de poucos leitores, revistas acadêmicas, publicações nanicas, sites especializados, conversações pessoais, documentos reservados.

 Quando as opiniões dos intelectuais brilham nos jornais ou na TV, é porque já não são germes: são aspectos e sintomas do fato consumado, às  vezes empenhados, precisamente, em camuflar-lhe as origens.

É por isso que o comentário jornalístico usual, simples reciclagem estilística do noticiário da véspera, quase nunca acerta em prever mesmo os desenvolvimentos mais inevitáveis da situação.

A inda nos anos 50 o ressurgimento do Islã como força política decisiva, inevitável para meia dúzia de estudiosos, parecia hipótese mítica aos olhos dos luminares da mídia.

A queda da URSS pegou os jornalistas de calças na mão, assim como, dez anos depois, o renascimento mundial de uma esquerda que eles imaginavam defunta.

Até hoje há quem se recuse a perceber a mão da KGB na premeditação da perestroika, ou a fonte globalista de movimentos como o gayzismo e as cotas raciais. E não preciso lembrar aos leitores que o Foro de S. Paulo só apareceu no Globo e na Veja quando já dominava metade da América Latina, tendo portanto saltado repentinamente, miraculosamente, da inexistência para a glória, sem escalas intermediárias.

As ideias, é claro, não surgem como propostas políticas prontas, mas como interpretações da realidade, das quais pode-se deduzir  propostas políticas diversas, e às vezes nenhuma.

A transformação de uma coisa na outra é um processo lento, sutil e complicado. A própria disciplina chamada “história das ideias” está mal equipada para rastreá-lo.

Exemplos de estudos bem sucedidos na área são Fire in The Minds of Men, de James Billington, e Libido Dominandi, de E. Michael Jones, mas mesmo esses “morceaux de bravoure” não exorcisam do meu cérebro aquele sentimento de frustração que Ortega y Gasset assim resumia: “Nunca se escreveu um livro que explicasse satisfatoriamente por que alguém fez alguma coisa.”

 A análise política, mesmo praticada com os maiores escrúpulos de método, está longe de ser uma ciência: é no máximo um empirismo organizado.

Asegunda pergunta baseia-se na observação de que os fatos patentes não se tornam patentes para todo mundo ao mesmo tempo.  Governantes, comandantes militares, chefes de serviços secretos, “big shots” das finanças,  por mais lentos que sejam os seus cérebros, tomam conhecimento das coisas antes da população geral, porque têm assessores bem pagos incumbidos de informá-los. Têm o tempo e os meios, portanto, de desacelerar a divulgação dos fatos, ou de mandar remoldá-los para que pareçam outra coisa.

Quando, após anos, o escândalo explode aos olhos da  população, é  porque já é tarde demais para fazer o que quer que seja a respeito. E mesmo então as partes mais importantes da história permanecem ocultas, esquecidas ou incompreendidas.

Em 1993, quando por obrigações profissionais  eu estudava dia e noite a epidemia de CPIs, duas coisas já haviam se tornado claras para mim:

1) escorado num eficiente serviço particular de inteligência, o PT preparava a tomada do aparelho de Estado e 2) já se guarnecia antecipadamente contra investigações. Usava as leis como escada para elevar-se acima delas. O futuro Mensalão estava ali em germe. Não havia como negar. Mas a diferença entre o que eu lia nos documentos de fonte primária e o que saía na grande mídia era tal, que o partido do Zé Dirceu acabava parecendo mesmo o último bastião da moralidade no meio da roubalheira geral.

Quase duas décadas se passaram antes que a decepcionante realidade das coisas se tornasse patente aos olhos da multidão. A visão curta de que falam os estratagemas chineses torna-se mais curta à medida que se desce das altas esferas para o mundo ilusório do eleitor comum.

Colaboracionistas

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 13 de março de 2008

O colaboracionismo de importantes jornalistas brasileiros foi — e é — parte vital da estratégia que permitiu a uma articulação de comunistas e gansgsters dominar meio continente sem encontrar resistência, enquanto a “direita” se deixava entorpecer pelo slogan narcótico de que “o comunismo acabou”, ao ponto de hostilizar quem quer que tentasse alertá-la de que as coisas não eram bem assim.

O longo silêncio da mídia nacional em torno do Foro de São Paulo nada teve de involuntário ou inocente. Que uma confluência acidental de lapsos de atenção possa ter-se repetido em todas as redações de jornais, rádios e TVs do país, dia após dia, ao longo de dezesseis anos, é uma hipótese tão rebuscada, inverossímil e psicótica, que só serve para tornar ainda mais patente aquilo mesmo que deseja ocultar.

Mas a maior prova de que o bloqueio de notícias foi intencional é que ele persistiu até mesmo depois das duas confissões públicas do sr. Luís Inácio Lula da Silva quanto às suas atividades clantestinas no Foro, e só veio a ceder um pouquinho quando o próprio PT deu o sinal verde, com o vídeo do seu III Congresso, no momento em que o segredo já não lhe era mais necessário nem conveniente. Mesmo liberada, a notícia ainda permaneceu parcialmente retida até que uma crise diplomática, alardeada nos principais jornais do mundo e sublinhada por uma declaração explícita do sr. Hugo Chávez em pessoa sobre suas conversas com Lula e Raul Reyes no quadro do Foro (v. http://www.youtube.com/watch?v=DzxOK21kXms&feature=related ), tornou impossível continuar abafando um escândalo de dimensões continentais.

O fato de que agora, rompido o silêncio, aqueles mesmos sonegadores de notícias sejam ouvidos sobre o assunto como autoridades sérias e isentas, em vez de ser desmascarados e investigados como cúmplices do maior concurso de crimes já observado na América Latina, mostra que o regime de privação cognitiva que eles impuseram ao país alcançou o efeito desejado: tornou a vítima estúpída e crédula o bastante para submeter-se voluntariamente, de novo e de novo, ao mesmo tratamento que a incapacitou de início, como um drogado acaba por se tornar servo devoto e amoroso do traficante que o mata aos pouquinhos.

E eles, é claro, aproveitam-se disso para dar um upgrade à fraude consagrada, passando da omissão simples à mentira ativa. Forneço dois exemplos, escolhidos a esmo. A sra. Eliane Cantanhede, na ânsia de limpar retroativamente a reputação da liderança esquerdista comprometida pelas últimas notícias, assegura-nos que “Lula rompeu com o Foro de São Paulo seis anos atrás” – quando o próprio Lula já confessou ter continuado a participar do Foro muito tempo depois de eleito presidente da República, além de atuar nele ainda hoje através do sr. Marco Aurélio Garcia (v. Lula, réu confesso e Saindo do armário). O sr. Demétrio Magnoli, que até mesmo Veja respeita como um expert na matéria, proclama que as Farc se afastaram do caminho revolucionário para dedicar-se ao banditismo puro e simples – e tem a cara de pau de dizer isso no instante mesmo em que a esquerda latino-americana em peso se junta para proteger a narcoguerrilha e legitimá-la como movimento político, prova cabal de que não enxerga nela uma quadrilha de delinqüentes comuns.

Para os deformadores de opinião, impedir que a boa imagem do esquerdismo seja arranhada pela revelação de seus crimes é um dever que está infinitamente acima da honestidade, virtude simplória demais para o seu gosto requintado.

Quando estreei como foquinha, quarenta e tantos anos atrás, o cínico desencanto dos velhos profissionais que diziam “Nós, jornalistas, somos prostitutas” me soava insuportavelmente ofensivo. Hoje ainda me parece ofensivo. Ofensivo às prostitutas.

Gansos que falam

Olavo de Carvalho


O Globo, 24 de agosto de 2002

O trabalhador inculto é apegado demais a seus costumes para deixar-se influenciar por novidades. O homem de espírito superior tem aquela intelecção direta e pessoal que prescinde da aprovação grupal e até a despreza. Resta, no meio, a multidão dos escravos da moda: estudantes, jornalistas, pequenos literatos, fabricantes de discursos partidários – o “proletariado intelectual”, como o chamava Otto Maria Carpeaux. A maior loucura do mundo moderno foi ter feito dessa categoria de pessoas, sob o nome de intelligentzia, a guiadora e mestra de seu destino. Essa gente supremamente verbosa, oca e imbuída do mais elevado conceito de si mesma retribuiu a gentileza criando o fascismo, o nazismo e o socialismo e matando em um século mais gente do que a soma de todas as tiranias antigas, com terremotos e epidemias de acréscimo.

Todas as civilizações confiaram-se ao guiamento luminoso de uns poucos sábios e ao conservadorismo obstinado dos homens do povo. Só a nossa confiou-se a um exército de tagarelas imbuídos do dever sacrossanto de destruir o que não compreendem. E depois se queixa de que está sendo destruída.

S. Paulo Apóstolo disse que o demônio nos cercaria pela direita e pela esquerda, pela frente e por trás. Significativamente, não disse “por cima” nem “por baixo”. O que nos eleva até Deus ou firma nossos pés no solo está livre do influxo demoníaco. Restam, entre o céu e a terra, as quatro direções horizontais, o “mundo intermediário”, o mezzo del cammin onde os demônios arrastam no seu giro louco as ambições da inteligência vã que se imagina criadora.

A democratização do ensino, abolindo as barreiras econômicas, deveria ter instituído barreiras intelectuais em compensação, para impedir que a descida do padrão social trouxesse, de contrabando, uma queda do nível de consciência. A nova elite de pés-rapados talvez fosse menos numerosa, mas teria superado em mérito e qualidade suas antecessoras. Na verdade, o que se fez foi o contrário: já que o ensino é para todos, por que haveria de ser um ensino de elite? Para qualquer um, basta qualquer coisa. A massa dos neoletrados, lisonjeada até às nuvens, corre às escolas, às livrarias, à mídia, aos teatro e aos cinemas para receber sua ração diária de lixo, que ela imagina superior à educação de um nobre do Renascimento ou de um clérigo do século XIII. Qualquer garoto de escola, incapaz de soletrar, se crê um portador das luzes, por haver nascido depois de Platão. Qualquer cronista de província fala com desprezo das “trevas do passado”.

Entre o homem que sabe e o que não sabe, dizia Montaigne, há mais diferença do que entre um homem e um ganso. Quem quer que tenha algum conhecimento do que foi a educação nos séculos antigos não pode deixar de sentir-se deprimido até às lágrimas ao contemplar hoje a multidão dos gansos que falam. E como falam!

Pois o mais incrível é a facilidade, a desenvoltura com que qualquer um, consciente de não possuir em pessoa determinados conhecimentos, se atribui os méritos deles por algum tipo de participação mística no “espírito da época”, baseado na simples crença de que existem em algum lugar, em alguma biblioteca, em algum banco de dados. Sim, decerto existem, mas a informação de que existem deveria dar a cada cidadão a medida da sua ignorância. Em vez disso, infunde-lhe o sentimento insano da própria sabedoria.
Se não fosse essa falsa certeza, alicerçada no argumentum ad ignorantiam que proclama inexistente o que o ignorante desconheça, não existiria nenhum “direito alternativo”, nenhuma “teologia da libertação”, nenhum desses monumentos de arrogância imbecil voltados contra tesouros espirituais que, por estar acima da compreensão do intelectualzinho médio, podem ser facilmente negados, desprezados ou usados como bodes expiatórios dos crimes do próprio intelectualzinho médio.

Pois este, hoje, tornou-se inacessível e coriáceo. Cada aula que ele recebe, cada livro que lê, cada programa de televisão que o desgraçado assiste o reforça mais ainda na sua certeza louca, ao exaltar a superioridade do “nosso tempo” sem lembrar-lhe que essa superioridade é apenas de registros materiais acumulados, não transmissível por osmose a quem não os decifre pessoalmente. Claro: esse lembrete seria demasiado constrangedor. A consciência dos valores civilizacionais milenares tornou-se o mais inestimável dos bens. Inestimável e quase inacessível. Seu preço é alto demais: a humilhação do filho do século. Os ricos pagam fortunas para não passar por isso. Os pobres, para evitá-lo, derramam o próprio sangue em revoluções inúteis.

Não é a menor das ironias da situação o fato de que, sem deixar de percebê-la por completo, a intelligentzia, em vez de reconhecê-la como obra sua, culpe por ela algum fator econômico-social externo, prometendo coisa melhor para a próxima sociedade, a ser sacada da cartola de algum “direito alternativo” ou “teologia da libertação”. E assim o mal se perpetua, fortalecido pelas promessas de extingui-lo.

Contra essas promessas, resta a pergunta: quê sobrou de oitenta anos de produção escrita da intelligentzia soviética? Nunca houve tantos sábios como naquela república celeste onde os verdureiros tinham diplomas de Ph. D. e na qual, profetizava Trótski, cada mecânico de automóveis seria um novo Leonardo Da Vinci. Onde foram parar aquelas toneladas de tratados, de teses acadêmicas, de ensaios magistrais? Nada sobrou. Nem mesmo na China se lê mais essa formidável porcariada. Nem em Cuba. Mas isso não é problema: se a importação de tolices soviéticas acabou, a produção das universidades ocidentais tornou-se autônoma. Não haverá escassez de Negris e Chomskis no mercado.

Veja todos os arquivos por ano