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Uma causa nobre

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 16 de janeiro de 2003

A mais alta expressão cultural que se admite no Brasil de hoje é aquilo que antigamente se chamava “literatura digestiva”. O que quer que ultrapasse a crônica leve, engraçadinha, é considerado um ato de prepotência intelectual premeditado para humilhar as pessoas, um atentado contra a democracia e os direitos humanos.

Decerto essa censura não se aplica aos teóricos da esquerda militante, principalmente quando têm a prudência de despejar seu discurso erudito em publicações universitárias e suplementos culturais que só os devotos lêem.

Culpado de arrogância e elitismo é aquele que, sem ter sequer a identidade ideológica requerida para desfrutar da indulgência dos leitores, ouse falar ao público geral numa linguagem que esteja um pouco acima da de João do Rio, Humberto de Campos ou seus equivalentes contemporâneos. Nada ofende mais a dignidade dos brasileiros do que alguém confiar na sua inteligência, escrevendo para eles como se fossem pessoas capazes de um esforço de compreensão. Afinal, o que entendem por sua “dignidade” consiste justamente em ser respeitados no seu direito à burrice vaidosa, à incultura auto-satisfeita. Tratá-los como seres inteligentes é portanto aviltá-los, sugerindo que há na inteligência alguma virtude que a ignorância não tem.

Não há maior homenagem que se possa prestar a um brasileiro do que sugerir que ele merece ter um cargo mais alto, uma remuneração mais polpuda, sem nenhuma obrigação de melhorar por dentro.

O culto das exterioridades, a firme decisão de avaliar um homem não pelo que é, mas pela posição que ocupa, chega aí às últimas conseqüências. Já não se contenta em sobrepor os direitos da futilidade às exigências do homem essencial, mas pretende que estas sejam apenas um pedantismo de intelectuais, um adorno inútil que não confere a seu portador um décimo da dignidade de um bom terno Armani.

José Ortega y Gasset definia o “homem-massa” como aquele que não apenas é espiritualmente inferior e se contenta em sê-lo, mas quer ser reconhecido como superior em razão dessa inferioridade mesma. Ocupa os lugares mais altos da sociedade com plena consciência – e íntima satisfação – de não ter preocupações mais excelsas que as de um torcedor no campo. Até recentemente, esse personagem me parecia apenas um “tipo ideal” weberiano, um retrato imaginário de tendências gerais latentes, que não chegavam a se encarnar em nenhum indivíduo real. Todos nós, acreditava eu, somos um pouco homem-massa, mas ninguém o é por completo. Talvez fosse assim, mas as coisas mudaram. No Brasil de hoje, cada político, cada jornalista, cada empresário ou banqueiro e – para cúmulo de desgraça – muito militar de alta patente com que tenho conversado é ou pelo menos deseja ser uma encarnação perfeita e assumida do homem-massa orteguiano, afastando com horror a tentação de ser coisa melhor.

Em muitos casos, essa recusa da inteligência e do conhecimento se envaidece, ao menos em segredo, de ser uma virtude religiosa, um tipo de humildade evangélica, condenando os desprovidos dela às penalidades infernais que a Bíblia impõe ao nefando pecado do orgulho.

Não é preciso dizer o quanto essa mentalidade ajudou a eleger presidente o sr. Luiz Inácio da Silva. Ele não é o homem pobre que, por esforço próprio, superando a resistência do ambiente, adquiriu alta cultura e, em competição desigual, venceu os filhinhos de papai diplomados por universidades estrangeiras. Não, esse não é o sr. Luiz Inácio. Esse é Machado de Assis, é Lima Barreto, é Capistrano de Abreu. Por isso mesmo não são considerados exemplares dignos das belas qualidades do povo brasileiro. Exemplar delas é o homem pobre que, levado nos braços de filhinhos de papai, subiu ao mais alto posto da República permanecendo tão ignorante e vazio quanto era no começo, exceto pela absorção passiva dos chavões partidários requeridos para o seu novo papel. “Medalhão” significa exatamente o sujeito que é rodeado de aplauso e respeito sem ter mérito pessoal que o justifique. O Brasil sempre esteve repleto de medalhões, a ponto de que Machado de Assis chegasse a criar toda uma teoria a respeito. Mas um medalhão operário, ah! Isto sim era coisa inédita. Podia-se aplaudi-lo, ademais, com o sentimento de estar servindo a altos propósitos morais. Haverá causa mais nobre do que estender aos desfavorecidos os benefícios da aurea mediocritas, as honras supremas do medalhonato nacional?

Guiando as almas

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 19 de dezembro de 2002

Acreditei ter compreendido algo da alma do sr. Frei Betto no dia em que, reclamando contra uma homenagem com que ele e alguns outros elevavam as grosseiras imposturas científicas de Fritjof Capra às alturas de grandes contribuições ao pensamento contemporâneo, recebi dele a resposta de que o evento, malgrado minhas objeções, “fora bom para quem lá estivera”. Diante dessas palavras, notei que em pura perda eu lhe enviara o exemplar de um livro meu que demonstrava ser a sabedoria do sr. Capra pura lana caprina. Que diálogo sério se podia esperar de um homem que tão flagrantemente sobrepunha o bem-estar subjetivo de um grupo às exigências da dignidade intelectual?

Na época, eu pouco sabia dele. Hoje, seria injusto dizer que nada mais vejo na sua figura além daquele comodismo leviano. Há nela toda a profundidade de um mistério sombrio que mal me aventuro a sondar.

Michael Horowitz, o historiador judeu que se tornou o maior conhecedor das perseguições aos cristãos no mundo de hoje, afirma que 150 mil deles são assassinados anualmente pelos regimes ditatoriais comunistas e muçulmanos. O sr. Frei Betto, que se rotula “cristão e conhecedor da história da humanidade”, nunca disse uma palavra em defesa desses seus irmãos, mas já disse várias em louvor de Che Guevara, que executou pessoalmente alguns deles a tiros, bem como de Fidel Castro, que executou muitos outros a golpes de caneta.

Mas isso não é tão incongruente assim, pois um decreto papal de 1949, revalidado em 1959 por João XXIII, condena à excomunhão automática todo católico que preste apoio consciente a partidos ou governos comunistas. O sr. Betto foi muito além da simples “colaboração”, pois, segundo admitiu em entrevista à Veja de 18 de dezembro, teve influência direta na redação da Constituição do Estado ditatorial cubano e dos Estatutos do Partido Comunista de Cuba. Ele é, decididamente, um membro de destaque do establishment comunista internacional. A seleção de prioridades na distribuição de seu amor cristão é uma simples questão de coerência.

Pode-se alegar, é claro, que aquela sua intervenção legislativa foi bem intencionada, pois permitiu que os cristãos cubanos adquirissem o direito de filiar-se ao Partido Comunista. A carteirinha do Partido tem, em Cuba, a importância de uma vacina contra doenças fatais. Sem ela, o sujeito não pode arranjar emprego. O desempregado não pode entregar-se à mendicância sem ir para a cadeia, nem tentar fugir do país sem ser baleado pela polícia. A situação é descrita em Mea Cuba, de Cabrera Infante, e o sr. Betto certamente não a desconhece. Pode-se portanto concluir que, ao oferecer-lhes o acesso ao precioso documento, ele salvou a vida de muitos cristãos. Ele apenas se omitiu de lhes advertir que deveriam desfrutar desse benefício com total hipocrisia, pois, a partir do momento em que aceitassem entrar no Partido de coração estariam tão excomungados da Santa Madre Igreja quanto ele próprio. Será exagero vislumbrar algo de malícia satânica no coração do religioso que, a pretexto de ajudar seus irmãos oprimidos pelo regime que ele próprio adora, lhes oferece o caminho da excomunhão? Por que, em vez disso, ele não defendeu simplesmente o direito deles ao trabalho e à liberdade fora do Partido, contra o Partido? Por que não defendeu, ao menos, seu direito de sair de Cuba? Claro, isso não seria nada salutar para a imagem do regime ali vigente, e que valem umas quantas almas de cristãos em comparação com esse supremo bem?

Imbuído dessa hierarquia de valores, o sr. Betto não se contenta em guiar nas veredas da salvação a alma do presidente eleito Luís Inácio da Silva. Ele também se preocupa com a nossa. Para preservá-la do pecado, ele sugere que cada programa de TV “deveria passar por uma consulta a um grupo representativo da sociedade, que diria se aquilo fere ou não os princípios de uma sociedade que nós queremos construir”. “Nós”, aí, é evidentemente ele mesmo. Ele já disse mil vezes qual a sociedade que quer construir. É uma sociedade na qual todo cristão tenha, como em Cuba, o direito a uma carteirinha do Partido. Ele denominou essa sociedade — literalmente — “o céu na Terra”. É o céu que resta aos excomungados. É para lá que esse bom pastor promete nos levar, para ali passarmos a eternidade junto com Lula, Fidel e, decerto, ele próprio. Estar no inferno, dizia Simone Weil, é acreditar, por engano, que se está no céu.

Ainda o fanatismo

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 05 de dezembro de 2002

O segundo traço da personalidade fanática, assinalado por Victor Frankl, é o desprezo pela individualidade alheia.

A estrutura da individualidade manifesta-se antes de tudo como hierarquia de metas vitais, diversa em cada ser humano. O que é essencial para um é secundário para outro. Mas todas as metas refletem, de algum modo, algum valor universal, que pode ser reconhecido e apreciado por quem não as compartilhe. Não quero necessariamente para mim o que você quer para você, mas reconheço que querê-lo é bom para você. O homem que deseja a riqueza aprecia o que busca o conhecimento, este respeita o que busca a perfeição artística, a felicidade no casamento, o sucesso político, etc. Um mesmo homem pode, de modo simultâneo ou sucessivo, perseguir objetivos diversos, cada um deles traduzindo, na situação do momento, os mesmos valores de base. Para o fanático, só há um objetivo autêntico: as metas do seu partido ou seita. As outras nada valem em si mesmas, tornando-se boas ou más conforme se ajustem ou se afastem daquelas. Digamos, por exemplo, a caridade. Para quem a cultue, ela é, por si, a meta, o valor e o critério supremo das ações. Para o esquerdista fanático, ela é um símbolo inócuo, que adquire valor positivo ou negativo conforme seu uso político. Num momento pode ser condenada como ilusão individualista burguesa, noutro enaltecida como virtude máxima do cidadão, conforme apareça como alternativa autônoma ou como prática social integrada na estratégia de esquerda, como aconteceu com a “campanha do Betinho”.

Se, no entanto, você insiste em reafirmar seus próprios critérios, independentemente do serviço ou desserviço que prestem às metas políticas que ele tem em vista, o fanático tem de ignorar você como irrelavante ou enquadrá-lo como inimigo. Reconhecer seus objetivos vitais como independentes, ah!, isto não. Nunca. Esse reconhecimento equivaleria a fazer do sacrossanto ideal político que ele cultua um simples valor vital entre outros, e isto é precisamente o que ele não pode admitir de jeito nenhum. Daí que ele seja incapaz de compreender os outros nos próprios termos deles. Ele tem de traduzi-los na linguagem do seu próprio ideal, isto é, reduzi-los a amigos ou inimigos do partido, e julgá-los em função disso, por menos que caibam nesse molde pré-fabricado.

Eric Voegelin, quando jovem, não era a favor nem contra o racismo. Era a favor da ciência histórica. Estudou a história da ideologia racista e, tendo concluído que ela não tinha nada a ver com a realidade biológica das raças, publicou essa conclusão num livro. Mas, para os nazistas, a ciência histórica não era um critério autônomo admissível. A história tinha de ser a favor do partido ou contra ele. No dia seguinte, a Gestapo estava no encalço de Eric Voegelin.

Boris Pasternak não era a favor nem contra o socialismo. Era a favor da boa poesia lírica, da expressão genuína dos sentimentos humanos. Mas, para o fanático socialista, isso não vale como critério autônomo. A poesia lírica, se não serve ao socialismo, serve aos inimigos do socialismo. Pasternak foi condenado à prisão como inimigo do Estado soviético.

O que o fanático nega aos demais seres humanos é o direito de definir-se nos seus próprios termos, de explicar-se segundo suas próprias categorias. Só valem os termos dele, as categorias do pensamento partidário. Para ele, em suma, você não existe como indivíduo real e independente. Só existe como tipo: “amigo” ou “inimigo”. Uma vez definido como “inimigo”, você se torna, para todos os fins, idêntico e indiscernível de todos os demais “inimigos”, por mais estranhos e repelentes que você próprio os julgue. Eu, por exemplo, já fui catalogado pelos esquerdistas como parceiro ideológico do sr. Lyndon LaRouche, que por sua vez me considera um porta-voz de tudo o que ele abomina. Haverá como explicar a ele ou a eles que não tenho nada a ver com isso?

As intenções pessoais da vítima, aí, desaparecem por completo. Se, por exemplo, você é contra o socialismo por motivos morais e filosóficos que nada têm a ver com o interesse das “classes dominantes” que o socialista diz combater, pouco importa: para ele, você é um ideólogo das classes dominantes. E, se você responde que o que está em jogo para você é algo de completamente diverso, ele nem lhe dá ouvidos: você já está catalogado, e catalogá-lo é o máximo de gentileza que ele pode conceder a alguém que, aos olhos dele, só serve precisamente para isso.

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