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A mãe dos trambiqueiros

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 1o de setembro de 2005

Dias atrás, alguém disse que o presidente da CPI do Mensalão, Dulcídio Amaral, era homem de moral ilibada, visto que sua educação juvenil decorrera sob os cuidados da Teologia da Libertação. Esqueceu-se de mencionar que idêntica influência havia formado a alma do principal suspeito, o sr. Luiz Inácio da Silva, e as de praticamente todos os demais envolvidos nos crimes investigados por aquela comissão.

A Teologia da Libertação gerou o próprio Partido dos Trabalhadores, atual Partido dos Trambiqueiros, provando mais uma vez o ensinamento bíblico de que as árvores se conhecem pelos frutos. Ela foi o entorpecente pedagógico que preparou duas gerações de jovens para prostituir sua consciência religiosa no leito da estratégia comunista, vivendo de assaltos a bancos, da indústria dos seqüestros, do trabalho escravo reintroduzido no mundo pelos regimes comunistas, e intoxicando-se mentalmente ao ponto de imaginar que com isso se igualavam aos santos e mártires da Igreja. Individuos que alardeando lutar pelos direitos humanos consentiram em servir à polícia secreta de Fidel Castro, a mais assassina e torturadora da América Latina, tinham atingido realmente aquele ponto de dessensibilização moral sem retorno, após o qual a distinção entre o certo e o errado se torna uma abstração inalcançável e está pronta para ser suprimida por mera negação verbal. Se mais tarde alguns se especializaram na trambicagem ativa enquanto outros se empenhavam em teorizar seu próprio embotamento moral sob os nomes elegantes de relativismo, desconstrucionismo etc., a diferença é irrisória: na política, na vida acadêmica ou na religião, a vigarice embelezada pelo auto-engano é a fonte de inspiração de todos eles. Não espanta que, tão logo tiveram nas mãos o painel de comando do Estado, o usassem para toda sorte de patifarias e ainda julgassem isso o suprassumo da ética. Quem faz o mais faz o menos.

Nem poderia ser de outro modo. Quando o padre peruano Gutierrez lançou em 1971 a doutrina que tanto sucesso alcançaria no Brasil, fazia apenas doze anos que João XXIII havia decretado a excomunhão automática de todo católico que, por atos ou palavras, colaborasse com o movimento comunista. Para essa decisão o Papa baseou-se na autoridade de três antecessores: Pio XII, que em 1949 promulgara a primeira versão do decreto; Pio XI, que em 1937 condenara o comunismo como doutrina satânica, e Leão XIII, que em 1878 qualificara o comunismo de “praga fatal que se insinua no cerne da sociedade humana para levá-la à ruína”. Fundados nessas referências, pensadores católicos produziram uma vasta literatura dedicada a examinar – e condenar — as doutrinas comunistas à luz do Evangelho. De repente um obscuro monsenhor assombrava a platéia pela naturalidade cínica com que invertia a fórmula, propondo como modelo de caridade cristã a luta em favor daquilo que quatro papas haviam condenado da maneira mais enfática. Não sendo verossímil que esses pontífices desconhecessem a doutrina da sua Igreja ao ponto de interpretá-la às avessas, é mais razoável admitir que quem inverteu tudo foi, isto sim, o Pe. Gutierrez. Mas também não é concebível que o erudito sacerdote que acabava de voltar de estudos em Roma ignorasse estar pregando em nome da Igreja o contrário do que ela ensinava. A única conclusão viável é, pois, que o Pe. Gutierrez e seus discípulos operaram a inversão conscientemente, fingindo trabalhar pela fé cristã enquanto cumpriam a instrução de Antonio Gramsci de não combater a Igreja abertamente mas em vez disso corroê-la desde dentro, esvaziando-a de todo conteúdo espiritual para usar sua casca como veículo para a transmissão da mensagem comunista. Nem é possível que homens capazes de viver sob camuflagem por tanto tempo, trocando de pele como o sr. José Dirceu trocava de narizes, tivessem aptidão para formar as almas exceto nas artes da macaqueação satânica, perto das quais as trapaças do Mensalão são divertimentos de crianças.

Guiando as almas

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 19 de dezembro de 2002

Acreditei ter compreendido algo da alma do sr. Frei Betto no dia em que, reclamando contra uma homenagem com que ele e alguns outros elevavam as grosseiras imposturas científicas de Fritjof Capra às alturas de grandes contribuições ao pensamento contemporâneo, recebi dele a resposta de que o evento, malgrado minhas objeções, “fora bom para quem lá estivera”. Diante dessas palavras, notei que em pura perda eu lhe enviara o exemplar de um livro meu que demonstrava ser a sabedoria do sr. Capra pura lana caprina. Que diálogo sério se podia esperar de um homem que tão flagrantemente sobrepunha o bem-estar subjetivo de um grupo às exigências da dignidade intelectual?

Na época, eu pouco sabia dele. Hoje, seria injusto dizer que nada mais vejo na sua figura além daquele comodismo leviano. Há nela toda a profundidade de um mistério sombrio que mal me aventuro a sondar.

Michael Horowitz, o historiador judeu que se tornou o maior conhecedor das perseguições aos cristãos no mundo de hoje, afirma que 150 mil deles são assassinados anualmente pelos regimes ditatoriais comunistas e muçulmanos. O sr. Frei Betto, que se rotula “cristão e conhecedor da história da humanidade”, nunca disse uma palavra em defesa desses seus irmãos, mas já disse várias em louvor de Che Guevara, que executou pessoalmente alguns deles a tiros, bem como de Fidel Castro, que executou muitos outros a golpes de caneta.

Mas isso não é tão incongruente assim, pois um decreto papal de 1949, revalidado em 1959 por João XXIII, condena à excomunhão automática todo católico que preste apoio consciente a partidos ou governos comunistas. O sr. Betto foi muito além da simples “colaboração”, pois, segundo admitiu em entrevista à Veja de 18 de dezembro, teve influência direta na redação da Constituição do Estado ditatorial cubano e dos Estatutos do Partido Comunista de Cuba. Ele é, decididamente, um membro de destaque do establishment comunista internacional. A seleção de prioridades na distribuição de seu amor cristão é uma simples questão de coerência.

Pode-se alegar, é claro, que aquela sua intervenção legislativa foi bem intencionada, pois permitiu que os cristãos cubanos adquirissem o direito de filiar-se ao Partido Comunista. A carteirinha do Partido tem, em Cuba, a importância de uma vacina contra doenças fatais. Sem ela, o sujeito não pode arranjar emprego. O desempregado não pode entregar-se à mendicância sem ir para a cadeia, nem tentar fugir do país sem ser baleado pela polícia. A situação é descrita em Mea Cuba, de Cabrera Infante, e o sr. Betto certamente não a desconhece. Pode-se portanto concluir que, ao oferecer-lhes o acesso ao precioso documento, ele salvou a vida de muitos cristãos. Ele apenas se omitiu de lhes advertir que deveriam desfrutar desse benefício com total hipocrisia, pois, a partir do momento em que aceitassem entrar no Partido de coração estariam tão excomungados da Santa Madre Igreja quanto ele próprio. Será exagero vislumbrar algo de malícia satânica no coração do religioso que, a pretexto de ajudar seus irmãos oprimidos pelo regime que ele próprio adora, lhes oferece o caminho da excomunhão? Por que, em vez disso, ele não defendeu simplesmente o direito deles ao trabalho e à liberdade fora do Partido, contra o Partido? Por que não defendeu, ao menos, seu direito de sair de Cuba? Claro, isso não seria nada salutar para a imagem do regime ali vigente, e que valem umas quantas almas de cristãos em comparação com esse supremo bem?

Imbuído dessa hierarquia de valores, o sr. Betto não se contenta em guiar nas veredas da salvação a alma do presidente eleito Luís Inácio da Silva. Ele também se preocupa com a nossa. Para preservá-la do pecado, ele sugere que cada programa de TV “deveria passar por uma consulta a um grupo representativo da sociedade, que diria se aquilo fere ou não os princípios de uma sociedade que nós queremos construir”. “Nós”, aí, é evidentemente ele mesmo. Ele já disse mil vezes qual a sociedade que quer construir. É uma sociedade na qual todo cristão tenha, como em Cuba, o direito a uma carteirinha do Partido. Ele denominou essa sociedade — literalmente — “o céu na Terra”. É o céu que resta aos excomungados. É para lá que esse bom pastor promete nos levar, para ali passarmos a eternidade junto com Lula, Fidel e, decerto, ele próprio. Estar no inferno, dizia Simone Weil, é acreditar, por engano, que se está no céu.

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