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A raiz do mal

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 21 de agosto de 2005

As imagens mais célebres da carreira política de Fidel Castro são duas gravações, feitas com um intervalo de poucos anos, na primeira das quais ele declara, referindo-se a si próprio e a seus companheiros de Sierra Maestra: “Não somos nem nunca fomos comunistas”, e na segunda: “Sempre fomos e seremos sempre marxistas-leninistas.”

Não é preciso ter nenhuma opinião sobre o sujeito que disse essas coisas. Ele próprio se julgou a si mesmo e colou na própria testa o rótulo identificador: “Vigarista.”

Há no entanto quem o admire precisamente por isso. Na ética socialista, mentir e trapacear, assim como roubar e matar, não são atos uniformemente maus. Quando praticados em benefício do socialismo vindouro, tornam-se não apenas virtudes, mas atos sacrificiais que, segundo Antonio Gramci, ultrapassam em mérito os feitos dos mártires cristãos. A pequena diferença de que estes doavam a própria vida e os socialistas a vida alheia fala mesmo em favor destes últimos, na medida em que a sobrevivência é conditio sine qua non para o sujeito acumular ainda mais méritos na luta pelo socialismo.

A ética socialista, nesse sentido, vai muito além do maquiavelismo puro e simples. Este condicionava o direito de delinqüir à conquista de um ganho político imediato e visível. No socialismo, o bem supremo incumbido de justificar os males praticados a caminho perde-se nas promessas vagas de um futuro longínquo, incerto e imaginário, não sendo racionalmente possível apreender nenhum elo de causa e efeito entre os crimes do presente e benefícios hipotéticos, indeterminados, misteriosos, sem prazo nem local de entrega definidos. O sr. Luiz Inácio Lula da Silva que mente todos os dias para seus eleitores – desde o tempo em que entre amigos confessava inexistirem os 50 milhões de famintos que do palanque ele prometia alimentar – é o mesmo que, no Foro de São Paulo, confessava não ter a menor idéia de como viria a ser o socialismo brasileiro pelo qual lutava. Para sentir-se autorizado a trapacear e ludibriar sem problemas de consciência, ele não precisava nem mesmo de um pretexto moral claro. Bastava-lhe uma vaga imagem de sonho. E nisso ele não era nem um pouco original: era o militante socialista típico, exibindo com orgulho e até entre lágrimas de comoção vaidosa a incomparável baixeza dos seus sentimentos.

Essa mudança radical do eixo da consciência, que já não julga os atos pela sua consistência atual objetiva, mas pela sua contribuição hipotética a um futuro ainda mais hipotético, é sem dúvida a mais devastadora perversão moral já observada ao longo de toda a história humana. Se ela produziu historicamente crueldades e sofrimentos sem fim, não foi por mera coincidência ou pelo desvio tardio de intenções originariamente boas. Foi porque ela era má em si, na sua mais profunda raiz espiritual, e a raiz má não pode senão gerar frutos maus. Baixar o padrão de exigência, baratear o custo dos méritos ao ponto de conferi-los de graça a quem quer pratique o mal com a desculpa ideológica apropriada, eis a essência da moral socialista.

Um socialista bom, nesse sentido, é uma impossibilidade pura e simples. Na melhor das hipóteses, há o socialista estúpido demais para perceber o que faz, o socialista anestesiado e entorpecido que, no fim das contas, não tem a alegar como atenuante senão a sua própria insensibilidade moral. Que a adorne em seguida com os nomes de “idealismo”, de “inexperiência juvenil”, etc., tentando parecer vítima em vez de autor de seus próprios pecados, mostra apenas sua obstinação no erro, sua orgulhosa recusa de um arrependimento sincero, cuja primeira condição seria condenar, junto com o mal, os pretextos da falsa consciência que o produziu.

A pretexto de Puigs

Olavo de Carvalho


Zero Hora (Porto Alegre), 23 de setembro de 2000

Em carta publicada na ZH do dia 15, o leitor Hélios Puig Gonzales alerta ao distinto público que tenho uma formação educacional muito deficiente, motivo pelo qual falto à verdade histórica no que diz respeito a Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, acusados de homicídio e mortos na cadeira elétrica em 1927: “Carvalho não dá valor à Justiça ou ignora que, 50 anos depois, o governador de Massachusetts reconheceu a inocência de ambos.”

Bem, não ignoro esse fato, apenas julguei desnecessário mencioná-lo porque há duas décadas ele é alardeado pelos filmes de Hollywood onde os Puigs adquirem sua erudição histórica. Também não desprezo a Justiça, mas não a idolatro ao ponto de imaginar que uma sentença judicial de 1977 tivesse o poder miraculoso de impugnar, por antecipação, as descobertas históricas posteriores que vieram a revelar a culpa de Sacco, a cumplicidade de Vanzetti e a farsa publicitária comunista concebida para iludir milhões de Puigs. É verdade que, decretada “post mortem” a inocência dos réus, novas provas já não podem ser alegadas para pedir a reabertura do processo (mesmo porque processar os mortos é monstruosidade jurídica que só o regime socialista se permitiu). Mas com isso, justamente, a questão sai da esfera judicial e se torna matéria de pura investigação histórica, cujos resultados não podem, obviamente, ser determinados por uma sentença judicial anterior. Os critérios do historiador não são os do Código de Processo Penal. Na justiça há limite de prazo para a apresentação de provas. Na ciência histórica, as verdades tardias são às vezes as mais valiosas. Qualquer aluno de ginásio sabe disso, e é deplorável que o sr. Puig tenha de aprendê-lo logo de um sujeito mal formado como eu. É talvez por ter tido uma educação precária que, ao opinar sobre algum assunto, eu procure obter primeiro a informação científica mais atualizada. Se eu tivesse uma cabeça bem feita como a do sr. Puig poderia contentar-me em recordar banalidades vistas no cinema vinte anos atrás e exibi-las com o ar triunfante de quem dissesse a última palavra sobre o assunto.

Aos demais leitores, que tenham dúvidas em vez da certeza tola do sr. Puig, recomendo a leitura do meticuloso estudo de Francis Russell, “Sacco and Vanzetti: The Case Resolved” (New York, Harper and Row, 1986), bem como a consulta aos documentos soviéticos publicados pela universidade de Yale a partir de 1995. O governador de Massachusetts não podia conhecer esses documentos em 1977 porque estavam lacrados numa gaveta da KGB; o sr. Puig não pode conhecê-los hoje porque sua gaveta mental foi lacrada em 1977.

Mas não, não vou gastar um artigo inteiro com o sr. Puig. Se consenti em tocar no assunto foi porque a mencionada coleção de documentos revela também coisas diversas e de interesse muito mais amplo, especialmente o fato de que todos os movimentos de protesto promovidos pela esquerda norte-americana contra a guerra do Vietnã foram planejados e dirigidos em Moscou e Pequim: nenhum emergiu espontaneamente da sociedade norte-americana como pretendem nos fazer crer os filmes que embelezam essa época com uma aura de inocente romantismo juvenil. Como sempre acontece, a fachada de idealismo aí camufla manipulações discretas de uma maldade quase impensável. Uma delas foi a disseminação proposital das drogas através dos prisioneiros de guerra em Hanói, que eram viciados à força e depois enviados de volta aos EUA como agentes de contaminação, ao mesmo tempo que uma bem disciplinada tropa-de-choque intelectual buscava, nas cátedras e na imprensa, apresentar a fuga para os tóxicos como um nobre e legítimo protesto das almas sensíveis contra o hediondo “complexo industrial-militar”. A retórica pacifista dos anos 60 foi uma colaboração perversa com crimes de guerra cujos efeitos se propagam até hoje, devastando a humanidade.

Mas esses efeitos não se limitam à difusão das drogas. O Japão, vinte anos depois de subjugado pelos EUA, era uma potência econômica florescente. O Vietnã, abandonado aos comunistas por obra do “flower power”, é hoje um dos países mais miseráveis da Terra, um museu de horrores governado por uma ditadura de assassinos. E não há, entre os militantes esquerdistas da década de 60, um único que seja honesto o bastante para assumir a responsabilidade histórica por esse resultado, mais que previsível, da vitória das delicadas “pombas” sobre os malvados “falcões” do Pentágono. Para ocultar essa infâmia, o Vietnã simplesmente desapareceu do noticiário na mídia “esclarecida”. Se ele ainda fosse assunto, poderia dar ao público brasileiro, hoje, um ponto de comparação para avaliar as declarações do chefe da guerrilha colombiana que admite ter em suas mãos o controle da produção local de drogas e reconhece suas ligações com o principal traficante brasileiro, Fernandinho Beira-Mar. Comparações como essa põem a nu, instantanaeamente, a estratégia global dos genocidas aos quais este país, por cansaço e indolência, vai cada vez mais entregando as rédeas do seu destino.

Dinheiro e poder

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 16 de setembro de 1999

Sempre que ouço um político de esquerda verberar em tom profético a cobiça capitalista, pergunto-me se ele imagina mesmo que o anseio de poder é uma paixão moralmente superior ao desejo de dinheiro, ou se simplesmente finge acreditar nisso para se fazer de santinho. Evidentemente, não há terceira alternativa. Nenhum militante esquerdista quer fazer uma revolução só para depois ir para casa viver como obscuro cidadão comum da república socialista: cada um deles é, por definição, o virtual detentor de uma fatia de poder no Estado futuro. Essa é, entre os adeptos de um partido, a única diferença entre o militante e o simples eleitor. Ao assumir a luta revolucionária, o mínimo que um sujeito espera é um cargo de comissário do povo. Afinal, não teria sentido que, após ter arcado com a responsabilidade de líder ativo na destruição do capitalismo, ele desse menos de si à “construção do socialismo”. (O mesmo, é claro, aplica-se, mutatis mutandis , aos militantes do fascismo ou de qualquer outra proposta de mudança radical da sociedade. Enfatizo o socialismo pela simples razão de que no Brasil de hoje não há um movimento de massas de inspiração fascista.)

Toda militância revolucionária é, pois, inseparável da ânsia de poder, e é preciso um brutal descaramento ou uma inconsciência patológica para não perceber que essa paixão é infinitamente mais destrutiva que o desejo de riqueza. A riqueza, por mais que as abstrações dos financistas tentem relativizá-la, tem sempre um fundo de materialidade – casas, comida, roupas, utensílios – que faz dela uma coisa concreta, um bem visível que vale por si, independentemente da opulência ou miséria circundantes. Já o poder, como bem viu Nietzsche, não é nada se não é mais poder. Isto é a coisa mais óvia do mundo: por mais mediada que esteja pelas relações sociais, a riqueza é, em última instância, domínio sobre as coisas. O poder é domínio sobre os homens. Um rico não se torna pobre quando seus vizinhos também enriquecem, mas um poder que seja igualado por outros poderes se anula automaticamente. A riqueza desenvolve-se por acréscimo de bens, ao passo que o poder, em essência, não aumenta pela ampliação de seus meios, e sim pela supressão dos meios de ação dos outros homens. Para instaurar um Estado policial não é preciso dar mais armas à Polícia: basta tirá-las dos cidadãos. O ditador não se torna ditador por se arrogar novos direitos, mas por suprimir os velhos direitos do povo.

Foi preciso que a inteligência humana descesse a um nível quase infranatural para que uma filosofia – ou coisa assim – chegasse a inverter equação tão evidente, vendo na miséria o fundamento da riqueza e no poder político o instrumento criador da igualdade.

O fenômeno mais característico do século 20, o totalitarismo, não foi um desvio ou acidente de percurso no caminho do sonho democrático: foi a conseqüência inescapável de uma aposta suicida na superioridade moral do poder político e na sua missão social igualitária. O resultado dessa aposta está diante dos olhos de todos. A prometida igualdade econômica não veio, mas, em contrapartida, a diferença de meios de ação entre governados e governantes cresceu a um ponto que os mais ambiciosos tiranos da Antiguidade não ousaram sequer sonhar. Júlio César, Átila ou Gêngis Khan recuariam horrorizados se alguém lhes oferecesse os meios de escutar todas as conversas particulares ou de desarmar todos os homens adultos. Hoje os governantes já estudam como programar geneticamente a conduta das gerações futuras. Não se contentam com o poder destrutivo dos demônios: querem o poder criador dos deuses.

É uma das mais atrozes perversidades da nossa época que o homem imbuído do simples desejo de enriquecer seja considerado um tipo moralmente lesivo e quase um criminoso, enquanto o aspirante ao poder político é visto como um belo exemplo de idealismo, bondade e amor ao próximo. Um século que pensa assim clama aos céus para que lhe enviem um Stalin ou um Hitler.

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