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Perdendo o senso

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 1 de abril de 2013

          

Assustado com o número de mensagens falsas altamente comprometedoras que circulam em seu nome na internet, o deputado Jean Wyllys lançou do alto da sua tribuna na Câmara as perguntas desesperadas: “Será que as pessoas perderam todo o senso? Que é que está acontecendo neste país?”
São perguntas que faço há pelo menos vinte anos. Mas não foi só nisso que antecedi o sr. Wyllys. Também foi vinte anos atrás que o meu nome passou a circular como signatário de mensagens nazistas, terroristas, racistas, anti-semitas, o diabo. A isso veio acrescentar-se um caudal inesgotável de lendas urbanas que me apresentavam como espião da CIA ou do Mossad, como beneficiário de verbas do Partido Republicano, como agente comunista enrustido, como mentor secreto do Opus Dei e dos skinheads e, last not least, como guru de uma perigosa seita gnóstica.
 O sr. Wyllys está choramingando por coisa pouca. Em matéria de character assassination, ele mal sentiu o gostinho de um veneno que há décadas me é servido em doses oceânicas. Mas a nossa diferença não é só quantitativa. No caso dele, a mídia solícita e um punhado de ONGs correram para desmentir as mensagens, passando a reputação do deputado por um lava-rápido do qual saiu brilhando com o fulgor beatífico das vítimas inocentes; ao passo que, quando o atingido era eu, até figuras mais conhecidas como os srs. Leandro Konder, Emir Sader e Mário Augusto Jacobskind, à esquerda, ou os srs. Rodrigo Constantino, Anselmo Heydrich e Janer Cristaldo, à direita, se apressaram em legitimar o acervo lendário anônimo, aprimorando-o e acrescentando-lhe novas invencionices de sua própria criação.
A coisa avolumou-se a tal ponto que ultrapassou toda possibilidade de contestação ou revide. Embora o número de pessoas de nível universitário envolvidas nessa operação subisse a vários milhares, caracterizando um fenômeno sociológico de dimensões alarmantes, o sr. Wyllys achou mais escandaloso e mais significativo o fato de que tratamento similar lhe fosse aplicado homeopaticamente, em dose única e diluição infinitesimal.
Quando ele pergunta o que há de errado na mente dos brasileiros, deveria aferir antes de tudo o seu próprio senso das proporções. De qualquer modo, as perguntas valem por si.
A vida na sociedade baseia-se na aceitação geral e costumeira de certos princípios tácitos, que servem de critério de julgamento nos instantes de confrontação e dúvida. É o que Antonio Gramsci, dando ao termo uma conotação peculiar, denominava “senso comum”.
O próprio Gramsci reconhecia que o senso comum predominante nas nações ocidentais refletia, grosso modo, a cosmovisão cristã, mesmo em versão laicizada e amputada de quaisquer referências religiosas.
A demolição desse senso comum tornou-se desde os anos 60 o objetivo prioritário do combate cultural revolucionário. Mas nem de longe imaginem que “combate cultural” significa uma luta de ideias, uma disputa entre eruditos. Não significa nem mesmo propaganda ou “doutrinação”.
As pessoas que me escrevem queixando-se da “doutrinação esquerdista” que seus filhos recebem nas escolas, venho há anos tentando explicar que os bons tempos da doutrinação e da propaganda já acabaram, que há décadas o sistema educacional ameaça a integridade mental das nossas crianças com algo de bem mais perverso e temível: um conjunto de técnicas de manipulação comportamental que permitem moldar ou modificar atitudes e hábitos  diretamente, sem passar pela inculcação de idéias e crenças, isto é, sem qualquer apelo ao pensamento consciente.
Já falei disso no meu livro de 1996, O Jardim das Aflições, e recentemente a Vide Editorial publicou, a conselho meu, a obra-padrão sobre o assunto: Maquiavel Pedagogo ou O Ministério da Reforma Psicológica, de Pascal Bernardin.
 A doutrinação comunista clássica baseava-se nas artes da dialética, da retórica e da propaganda, e procurava inculcar na mente do público uma concepção do mundo, da história e da política, o que não era possível sem mostrá-la como alternativa a alguma concepção concorrente, alimentando discussões.
As novas técnicas não têm nada a ver com retórica e propaganda. Baseiam-se inteiramente nas chamadas “ciências da gestão”: engenharia social, marketing, gerenciamento, psicologia comportamental, programação neurolinguística, Storytelling, Social Learning e Reality Building.
Um dos efeitos mais diretos da aplicação dessas técnicas em escala de massas é a disseminação epidêmica de um estado crônico de “dissonância cognitiva”, um quadro mental descrito pioneiramente por Leon Festinger em 1957. Dissonância cognitiva é conflito entre as crenças e a conduta.
Dissonâncias cognitivas temporárias são normais e até desejáveis no desenvolvimento humano. Quando o quadro se torna crônico, rompe-se a unidade da consciência moral e o indivíduo tem de buscar fora dele mesmo, na aprovação grupal ou na repetição de slogans ideológicos, um sucedâneo da integridade perdida. Ao espalhar-se entre a população, a incapacidade de julgar realisticamente a própria conduta resulta na queda geral do nível de moralidade, assim como na disseminação concomitante da criminalidade e das condutas destrutivas, mas isso, segundo os engenheiros sociais, é um preço módico a pagar pela dissolução do senso comum e pela implantação dos novos modelos de conduta desejados.
Antes de posar de vítima da falta de consciência moral dos outros, o sr. Wyllys deveria perguntar se o próprio movimento que ele representa não tem utilizado abundantemente essas técnicas para modificar a conduta de crianças, adolescentes e adultos.

Uma opinião presidencial

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de outubro de 2009

Há opiniões que não podem ser debatidas, apenas analisadas como sintomas do estado de alienação que as produziu. Quando, por exemplo, o nosso presidente celebra como um progresso da democracia o fato de que na eleição do seu sucessor só haja candidatos de esquerda, é absolutamente impossível que ele próprio ou os ouvintes que o aplaudem consigam discernir nessa sentença algum sentido lógico, apto a ser discutido. Tudo o que ela expressa é a confusão de maus sentimentos, mentiras interiores e subterfúgios psicóticos que há décadas constituem o estado de espírito dominante do esquerdismo nacional. Não é uma opinião: é um sintoma.

Perguntem apenas “O que ele quis dizer com isso?”, e verão que ele mesmo não o sabe, nem pode saber.

Estaria ele insinuando que a esquerda, de modo geral e por essência, é mais democrática que a direita? Ainda que o fosse, nem um semi-analfabeto pode acreditar que a maneira mais pura de um partido provar seu amor à democracia é excluir os concorrentes do pleito eleitoral. Mas é igualmente impossível que um cidadão medianamente informado ignore os feitos ditatoriais da esquerda no século XX, enormemente mais vastos e sangrentos que os de todas as direitas somadas (mesmo que se apele ao velho e capciosíssimo expediente de incluir entre as direitas o nazismo). À luz da História, qualquer associação entre esquerdismo e democracia é absolutamente inverossímil.

Alegaria ele então que a esquerda, ditatorial em atos, é democrática pelo menos em teoria e em intenções? Nada o permite. No pensamento de seus clássicos — Marx, Engels, Lênin e sucessores –, o esquerdismo é ditatorial por princípio, proclamando mesmo o terrorismo de Estado e o genocídio como necessidades inerentes à construção do socialismo. Nas suas versões mais brandas — fabianismo e gramscismo, por exemplo –, os métodos truculentos são apenas substituídos pelo dirigismo camuflado, pelo controle estatal das consciências, por toda uma engenharia da exclusão que vai calando lenta e sistematicamente as vozes antagônicas, até que a sociedade inteira, meio às tontas, se curve, como dizia Gramsci, à “autoridade onipresente e invisível” do Partido.

Não, não há nenhum pretexto razoável para supor que a esquerda personifique a democracia, a liberdade ou o Estado de direito. No máximo, ela suporta pacientemente a ordem democrática, à espera de poder substituí-la um dia por algo que lhe pareça melhor, seja a ditadura do proletariado, seja a “democracia plebiscitária” de Rousseau, que não é outra coisa senão a ditadura da maioria enfurecida.

Façamos, por último, a hipótese de que a esquerda, em geral refratária à ordem democrática por princípio e por hábito, tenha tido seu nome casualmente associado à idéia democrática no Brasil, pela circunstância excepcional e local da “luta contra a ditadura” (tal como, na Itália, o antifascismo deu ao PCI, por algum tempo, a fama de democrata, logo desmentida). Mesmo essa alegação desesperadoramente casuística não convence. S. Excia., embora não o diga, sabe perfeitamente que nossos terroristas de esquerda, armados e orientados pelo governo cubano, jamais lutaram por democracia nenhuma, mas pela extensão do regime de Fidel Castro ao Brasil (tanto que suas guerrilhas começaram antes do advento do regime militar, só podendo ser explicadas como reação a ele mediante uma inversão psicótica da cronologia).

Resta, por fim, a hipótese do fingimento proposital: o sr. presidente sabe que o controle hegemônico da sociedade por uma só corrente ideológica é totalitário, mas, como ele gosta precisamente disso, decide chamá-lo de “democracia” por ser uma palavra atraente, boa para servir de camuflagem a tudo o que é mais antidemocrático.

Duvido que S. Excia. seja capaz de tal premeditação maquiavélica. Ele deveu toda a sua carreira às liberdades democráticas, e não é verossímil que as odeie sinceramente. Seu mandato está no fim, e ele até agora não mostrou nenhuma vocação pessoal de ditador (não digo de capomafioso, que é outra coisa).

Que quer então ele dizer? Ele mesmo não o sabe, mas eu o sei: o que ele deseja é o milagre da coincidentia oppositorum, o advento de um mundo impossível onde o absoluto controle governamental da sociedade coexista pacificamente com todas as liberdades e garantias individuais. Aí todos serão felizes.

Mas isso é loucura, dirá o leitor. Precisamente. S. Excia., como em geral os esquerdistas brasileiros, vive naquele estado mental nebuloso e crepuscular onde todos os gatos são pardos, todos os quadrados são redondos, dois mais dois são sempre cinco ou seis e nenhuma palavra dita ou ato praticado tem jamais de responder pelas conseqüências que desencadeia no mundo real. É o estado de perfeita alienação da realidade, em que um indivíduo ou grupo, imunizado contra a percepção de seus crimes e desvarios, pode se entregar gostosamente à auto-adoração narcisística e sentir-se o portador de todas as virtudes, a encarnação das mais belas esperanças da humanidade.

Intelectuais orgânicos

Olavo de Carvalho

O Globo, 26 de maio de 2001

Só agora li uma entrevista que o prof. Carlos Nelson Coutinho deu ao jornal “Valor”, na qual, forçando até onde é possível o sentido das palavras, ele me incluiu entre os que teriam “preconceito contra o marxismo”. Apesar da data já um pouco longínqua, vale a pena examinar o documento, que ilustra o peculiar modus pensandi de um “intelectual orgânico”.

“Preconceito”, caso alguém ignore, é opinião prévia a um exame racional. Na deterioração geral da língua, no entanto, a palavra tornou-se um estereótipo infamante que os mais preconceituosos usam para rotular qualquer conclusão adversa a seus preconceitos, à qual alguém tenha chegado após longo estudo e ponderação.

O prof. Coutinho aderiu ao marxismo militante na entrada da juventude, antes de ter examinado senão um fragmento infinitesimal da bibliografia marxista, e, passadas quatro décadas, ainda é marxista sem ter mais que um conhecimento periférico da argumentação antimarxista; ao passo que eu, tendo feito idêntica escolha prematura, coloquei minha opção entre parênteses uns anos depois e, abstendo-me por duas décadas de emitir opiniões políticas enquanto pesava criteriosamente os argumentos pró e contra o marxismo, emergi enfim do silêncio dizendo coisas que contrariam os sentimentos juvenis em que se fossilizaram a pessoa, a vida e os neurônios do prof. Coutinho.

Entre nós dois, obviamente, o preconceituoso é ele, que nunca escreveu uma linha senão para dar retroativamente ares de requinte intelectual às crenças a que já tinha aderido de corpo, alma e carteirinha antes de fazer qualquer uso revelante do intelecto.

Isso não quer dizer que hoje ele faça desse instrumento um uso mais intenso do que na aurora da sua militância. Pelo menos ele não o utiliza o bastante para perceber que não tem sentido afirmar que entrei na mídia “com grande respaldo” e logo em seguida referir-se a mim como “uma voz isolada”, que “não é representativa de nada”… Ou bem eu, isolado, falo com a minha própria voz, ou alguém que me respalda fala pela minha boca. O prof. Coutinho que trate de decidir se quer me chamar de pau-mandado ou de excêntrico solitário. Se entre les deux, son coeur balance, isto só prova que ele quer me rotular de alguma coisa, qualquer coisa, não importa o quê.

Quando digo que o marxismo imbeciliza, é a esse tipo de fenômeno que me refiro. Nenhum esquerdista, até hoje, conseguiu dizer contra mim algo de inteligente. Ante a “voz isolada” que os atemoriza, todos têm dado um show de inépcia, de covardia e de maledicência sussurrante. Tempos atrás desafiei para um debate sobre Gramsci, inclusive oferecendo troca de links entre nossas respectivas páginas na internet, o prof. Coutinho e seus oitenta fiéis escudeiros de um site devotado à beatificação do fundador do Partido Comunista Italiano. Fugiram, como de hábito, afetando ares de dignidade ofendida, e, em pleno dia de Natal, redigiram uma carta enfezada na qual denunciavam como imposição ditatorial a oferta do intercâmbio de links.

É sempre aquela coisa do “1984”: democracia é ditadura, ditadura é democracia. Discussão é imposição, imposição é discussão. Conceito é preconceito, preconceito é conceito.

O leitor desacostumado ao trato com comunistas pode estranhar a desenvoltura, a tranqüilidade de consciência com que posam de vencedores após uma debandada tão ostensiva. Mas, creia-me, o fenômeno não se explica pela simples cara-de-pau. Eles conservam na fuga um ar triunfante porque não são intelectuais como os outros. São — e gabam-se de ser — “intelectuais orgânicos”, células de um vasto corpo combatente. Nunca agem sozinhos. Têm sempre o apoio logístico de uma rede inumerável de militantes obscuros, anônimos, que podem prosseguir o combate nos bas fonds da intriga e da calúnia quando os porta-vozes mais respeitáveis do “coletivo” se saem mal nos confrontos públicos. Quando as vozes de cima se calam, as de baixo começam o zunzum nos porões.

Agora mesmo, enquanto meus detratores mais notórios se recolhem para lamber as feridas das últimas refregas, um jornalista de São Paulo, mais comunista que a peste, deplorável farrapo humano que busca no ódio político o alívio de sua indescritível miséria de alma, está espalhando na internet avisos segundo os quais eu, Olavo de Carvalho, não trabalho há trinta anos e… vivo da exploração de mulheres. Dito em voz alta, numa tribuna acessível aos olhos do público, isso exporia o fofoqueiro ao desprezo de todos. Sussurrado no mundo virtual, pode até funcionar. A intriga propaga-se por reflexo condicionado, não por adesão consciente. Não é preciso acreditar nela para passá-la adiante, repeti-la por automatismo e acabar tomando-a como premissa implícita de julgamentos e decisões.

A manipulação de automatismos mentais torna-se ainda mais fácil numa atmosfera infectada de ódios e temores coletivos contra alvos mais ou menos distantes, só conhecidos por ouvir-dizer. O ambiente de esquerda é o caldo de cultura ideal para esse tipo de bactérias.

É por sempre contar com esse fundo de reserva que o “intelectual orgânico” pode se sentir vitorioso mesmo quando perde. Ele perde, mas o Partido não perde nunca. Não adianta nada você derrubar um desses sujeitos no ringue. Enquanto você recebe sua medalha, eles já fizeram a sua caveira entre os vizinhos. E quando você, imbuído de seu prestígio de campeão, vai pedir fiado um quilo de feijão no armazém da esquina, o português, desviando os olhos, lhe explica que os negócios vão mal e que você não tem mais crédito.

O mais pérfido em tudo isso é que o comunista famoso pode sempre sair bonito, alegando que desaprova os métodos imorais usados por seus companheiros anônimos. Mas, a partir do momento em que aceita ser um “intelectual orgânico”, ele não pode mais deixar de beneficiar-se dos métodos que desaprova. Não é uma questão de escolha. O Partido trabalha para ele como ele trabalha para o Partido, na unidade orgânica e indissolúvel da bela imagem pública com a safadeza escondida.

A imoralidade da militância comunista é intrínseca e independe de aprovação pessoal. E o máximo da imoralidade consiste precisamente em que o sujeito pode permanecer limpo no instante mesmo em que tira vantagem da sujeira praticada por outros, da qual ele nem precisa saber. É a síntese perfeita da boa consciência com a falta de consciência.

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