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A consciência da consciência

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 05 de maio de 2008

Embora estes artigos venham repletos de análises de situações políticas concretas, raramente reproduzo neles algo dos fundamentos de filosofia política e filosofia geral que transmito nos meus cursos. O resultado é que as análises ficam boiando no ar como balões sem dono, soltas do fio que as amarra ao solo comum. Vou aqui remediar isso um pouco, explicando um – apenas um – daqueles fundamentos.

O fato de que nas ciências ditas humanas o sujeito e o objeto do conhecimento sejam o mesmo foi muitas vezes lamentado como causa de distorções subjetivistas incompatíveis com as pretensões do rigor científico.

No esforço de eliminar essas distorções, muitos estudiosos tentaram constituir aquele objeto como entidade do mundo exterior, à maneira dos fatos da natureza, neutralizando o viés subjetivo do observador. Acontece que aquela coincidência de sujeito e objeto é a verdadeira e efetiva situação de conhecimento nas ciências humanas, e não vejo por que fugir a essa situação mediante analogias com modelos colhidos de outras ciências deva ser mais útil e proveitoso do que tomá-la inteiramente a sério desde o início como um dado incontornável da realidade.

Toda tentativa de constituir o objeto “homem” como coisa externa – e, pior ainda, de recortá-lo do seu fundo concreto mediante a seleção de seus aspectos matematizáveis, com  exclusão do resto – só pode resultar na produção de uma analogia, de uma figura de linguagem, de um símile poético. Estudos assim orientados podem criar interessantes metáforas, mas não ciência propriamente dita. Pode-se comparar o homem com formigas, com ratos de laboratório, com programas de computador, ou, como o faz o dr. Freud, com um sistema de pressões hidráulicas. Tudo isso é muito sugestivo, mas, como o número de símiles é ilimitado por definição, o conjunto não tem como deixar de ser totalmente inconclusivo, como inconclusiva é a leitura das obras-primas da literatura universal.

A coincidência de sujeito e objeto é, ao contrário, uma posição privilegiada que deve ser assumida desde o início como premissa e norma orientadora em todo o campo das ciências humanas. A técnica para o estudo de um objeto assim definido, aliás, já existe há milênios e é um dos mais aprimorados instrumentos cognitivos ao alcance do ser humano. Ela chama-se “meditação” e não deve ser confundida com nada daquelas esquisitices que as seitas pseudo-orientais colocaram em circulação sob esse nome. Hugo de S. Victor explicava que pensar é transitar de uma idéia à outra (seja vagando pela floresta das analogias, seja subindo ou descendo na escala das proposições, do geral para o particular e vice-versa). Meditar, ao contrário é retroceder metodicamente desde um pensamento até seu fundamento ou raiz na experiência que o tornou possível. Modelos clássicos de meditação são as investigações sobre a natureza do “eu” empreendidas nas Confissões de Santo Agostinho, no Vedanta , no livro de Filosofia Primeira de René Descates, na fenomenologia de Husserl, em inumeráveis trechos de Louis Lavelle ou na Anamnesis de Eric Voegelin.

Repassar essas descrições célebres já seria matéria para um curso inteiro. Esquematicamente, a pergunta central é: “A quem propriamente você se refere quando usa a palavra ‘eu’ na vida de todos os dias?” O percurso da resposta vai de uma mera idéia ou convenção verbal até a experiência de uma realidade ao mesmo tempo imediata e profunda que essa palavra encobre e revela simultaneamente.

O eu – não o eu filosófico, abstrato, sujeito hipotético das demonstrações metafísicas, mas o eu concreto, real — não é o corpo, não é as sensações, não é as emoções, não é os pensamentos. Também não é a pura memória, mas é a memória da memória, a memória que se lembra de ter lembrado e responde perante os outros e perante si mesma como autora e portadora única de seus próprios conteúdos. “Consciência”, definia Maurice Pradines, “é uma memória do passado preparada para os desafios do presente”. O “eu” é aquele que responde por aquilo que sabe, e, mais ainda, por aquilo que ele sabe que sabe . O mais elevado autoconhecimento não consiste senão na admissão de um saber prévio assumido responsavelmente.

Mas esse eu não existe somente nas alturas da meditação filosófica. É ele que responde pelas cobranças do mundo em torno nas tarefas e lazeres cotidianos. O eu que responde – o eu responsável – é a realidade humana mais direta, universal e permanente. Mesmo culturas que não chegaram a ter uma noção clara da individualidade psíquica já sabiam disso, como o prova o fato de que em todas elas quem é chamado a responder por seus atos é o autor deles, não um terceiro. Não há sociedade, por mais primitiva, onde as noções de autoria, culpa e mérito não estejam perfeitamente identificadas entre si.

O eu não poderia ser criado por incorporação de papéis sociais se já não estivesse prefigurado, por um lado, na individualidade física e, por outro, na memória da memória – a recordação de estados interiores revividos na pura intimidade do indivíduo consigo mesmo.

O eu responsável – a consciência da consciência – não existe como coisa nem como estado: existe apenas como tensão permanente em direção a mais consciência, mais responsabilidade, mais abrangência e maior integração. A consciência cresce na medida em que se reconhece, e não pode reconhecer-se senão abrindo-se permanentemente a conhecimentos que transcendem o seu patrimônio anterior. A abertura para a transcendência – para aquilo que está para além do horizonte atual de experiência – é portanto um dado permanente da estrutura da consciência. Suprimi-la é falsear na base a situação de conhecimento.

A consciência responsável é a verdadeira situação do ser humano no mundo. Observa-se isto nas interações mais simples, onde aquele que fala sempre espera que o outro o compreenda: não apenas que apreenda o sentido de uma frase, mas que adivinhe uma intenção e por trás dela capte a presença de um eu consciente semelhante ao seu. O contrário seria falar com as paredes.

O eu responsável é um dos fundamentos primários da sociedade humana. Ele é a origem de todas as idéias, criações, instituições, leis, hábitos, estruturas. Tudo o que, na sociedade, não possa ser rastreado até sua origem no eu consciente assume a aparência de coisa externa vinda ao mundo por pura magia espontânea. É o coeficiente de fantasmagoria que resta em toda sociedade por efeito da alienação e da perda de memória. Que muitos estudiosos da sociedade prefiram concentrar nesse resíduo coisificado as suas atenções, eludindo a incomodidade de uma autoconsciência exigente, cujas demandas no entanto podem continuar atendendo enquanto cidadãos comuns fora das horas de expediente, mostra que aquilo que leva o nome honroso de “ciência” é muitas vezes nada mais que uma forma elegante de fuga da realidade.

Lendo Platão

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 8 de agosto de 2004

Alguns leitores pedem-me umas dicas sobre como estudar a “República” de Platão. Creio que a resposta pode ser útil também para todos os demais.

O conselho que tenho a dar é simples e direto: não leiam esse livro como se fosse uma “utopia”, a proposta de uma sociedade ideal a ser construída num futuro próximo ou distante, determinado ou indeterminado. Ao contrário do que acontece com as utopias modernas, a “República”, definitivamente, não é uma proposta política nem um mito destinado a atiçar as ambições de partidos revolucionários. É uma investigação filosófica em sentido estrito, e uma das mais sérias que alguém já empreendeu. Para tirar proveito do seu estudo é preciso situá-la no lugar exato que ocupa no edifício da ciência platônica. Essa ciência compõe-se de uma diferenciação muito fina entre os diversos níveis, planos ou camadas da realidade. Quando você divide um quadrado na diagonal e obtém dois triângulos isósceles, este resultado não pode ser explicado pelo exame dos processos cerebrais mediante os quais você o obteve. As propriedades das figuras geométricas e a fisiologia cerebral permanecem irredutivelmente independentes entre si, embora de algum modo misterioso as duas se toquem no instante em que você estuda geometria. Elas residem em “planos de realidade” distintos. No conjunto da existência, Platão discerne um certo número desses planos, e num deles ele situa o ser humano – uma realidade específica que não pode ser explicada totalmente nem pela ordem geral do cosmos (a lei divina ou “Bem Supremo”), nem pelas propriedades que tem em comum com os demais habitantes do planeta Terra, animais, plantas ou minerais. Dessa situação peculiar do homem na estrutura do universo Platão extrai uma descrição analítica da natureza humana como a de um ser intermediário, que vive da “participação” ( metaxy ) simultânea e instável em dois planos de realidade, sem poder absorver-se por completo em nenhum deles: mal instalado no ambiente terrestre, ao qual busca adaptar-se por meio de engenhosos artifícios, não consegue também elevar-se à contemplação da ordem suprema, da beatitude divina, senão por instantes fugazes que enfatizam ainda mais a sua dependência do meio físico imediato. Platão resume isso dizendo que o homem é um tipo intermediário entre os animais e os deuses.

Uma vez delineada assim a natureza humana, Platão coloca em seguida o problema de quais seriam as condições sociais e políticas mais adequadas ao desenvolvimento do homem segundo as exigências dessa natureza. É a essa investigação que ele consagra “A República”. Não se trata, pois, de uma proposta política, mas da construção de um conjunto de hipóteses. Como estas hipóteses estão sujeitas à avaliação crítica segundo os princípios anteriormente colocados e segundo a experiência de cada estudante (o próprio Platão fará mais tarde uma parte desse exame crítico, no livro das “Leis”), está claro que se trata de uma investigação científica no sentido mais rigoroso do termo.

É assim que deve ser lida a “República”.

A beleza da filosofia clássica de Platão e Aristóteles está na transparência com que ergue os princípios do conhecimento racional e em seguida se oferece para ser julgada por eles. Na entrada da modernidade, que paradoxalmente alardeia ter inaugurado o estudo científico da sociedade humana, essa transparência se perde e é substituída por um emaranhado de premissas implícitas, inconscientes ou mal confessadas, obrigando o estudioso a uma complexa e arriscada especulação das intenções subjetivas do autor antes de ter a certeza de que compreendeu Maquiavel ou Rousseau o bastante para poder julgar se têm razão.

A grande tarefa da filosofia política hoje em dia é recuperar o ideal clássico de transparência e racionalidade, sem o qual o nome de “ciência” se torna apenas um rótulo publicitário colado em cima de uma massa obscura de preconceitos bárbaros e rancores fúteis.

Simulação geral

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 29 de junho de 2003

Andei discutindo outro dia no meu blog umas idéias que talvez valha a pena resumir aqui.

É que se tornou impossível examinar este país sob a ótica da filosofia política, a qual pressupõe, nos agentes do processo histórico, um mínimo indispensável de consistência, de realidade, de substancialidade. No Brasil de hoje tudo é simulação, e o único enfoque viável para estudar um caso desses é o da psicopatologia social, porque aí todas as conexões observáveis entre pensamento e realidade, entre vida interior e conduta exterior, são mesmo convencionais e fantasiosas.

O atual enredo brasileiro é totalmente composto de auto-ilusões que se sustentam na base de ilusões secundárias que cada um cria para ludibriar o próximo, mas que não raro acabam por persuadir o próprio agente, transformando-o em instrumento inconsciente daqueles a quem pretendia manipular.

A estrutura típica da ação humana, nesse quadro, é a de um engano mútuo fundado num duplo auto-engano, multiplicando-se num efeito em espelho até a total impossibilidade de controlar – ou até de narrar – o fluxo dos acontecimentos. Tudo começa com uma mentira consciente, mas que já não se reconhece como tal na prole inumerável das mentiras auxiliares produzidas automaticamente para sustentá-la.

Nesse jogo de esconde-esconde, qualquer discussão de idéias, doutrinas ou programas nunca é o que parece, mas também não é o que os produtores da comédia desejariam que parecesse, uma vez que eles não têm domínio suficiente da realidade para projetar um efeito previsível e acabam sendo eles próprios arrastados na dança de fantasmagorias que encenaram.

É a apoteose da macaquice, que termina por macaquear-se a si mesma, na ilusão suprema de poder restabelecer contato com a realidade por meio de uma macaqueação de segundo grau.

Expondo essas idéias, recebi do embaixador Meira Penna, por intermédio de um artigo seu, a sugestão de que o estado de coisas talvez se devesse ao fato de que o Brasil, por falta de saber para onde ir, está copiando meio às tontas o modelo chinês de esquizofrenia política: um Estado, dois regimes. Com a ressalva de que o nosso modelo parece menos chinês do que venezuelano – capitalismo para fora, socialismo para dentro -, a duplicidade é um fato. Só não sei se ela é causa ou resultado. Afinal, não é este o país em que todo mundo insiste em continuar esquerdista, como se isso fosse uma questão de honra, ao mesmo tempo que admite que a esquerda não tem projeto nenhum para a sociedade, como se a honra consistisse em não largar a rapadura quando se confessa já não ter dentes para roê-la? Não é este o país que admite sua impotência ante meros assaltantes de rua e ao mesmo tempo sonha em dar uma surra nos marines na selva amazônica (com o agravante de que lá não há marine nenhum e sim um punhado de guerrilheiros das Farc)? Não é este o país que sai alardeando fórmulas para acabar com a fome no mundo antes mesmo de tê-las experimentado com algum sucesso em seu próprio território? Não é a duplicidade de regime que está nos enlouquecendo: vamos entrando num regime duplo porque estamos malucos faz tempo.

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