Posts Tagged estado moderno

O Estado e a razão

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de julho de 2015          

Toda ideia que se condensa num chavão torna-se imediatamente estúpida, se é que já não o era desde o início e por isso mesmo se acomoda tão confortavelmente nesse formato.
Há anos ouço falar de “enxugar o Estado”. À primeira vista parece a resposta lógica natural à constatação de que os problemas do Brasil provêm de a sociedade civil ser muito débil e o Estado muito forte – tão forte que consegue subjugar as organizações da sociedade civil.
O PT jamais teria conseguido concentrar tanto poder sem a ajuda da OAB, da CNBB e de milhares de ONGs que, nascidas da iniciativa social espontânea, acabaram se transformando numa espécie de funcionalismo público informal. O sujeito vê isso acontecendo e exclama: “Enxugar o Estado! ”
Parece sensato, mas há um problema: Quem enxugará o Estado? O próprio Estado. Enxuga-se privatizando. E, na medida em que privatiza, cria uma rede de cumplicidades privadas que estenderão o poder do Estado – agora anônimo, informal e quase invisível – até os últimos confins da vida social.
Tudo converge no sentido da constante histórica descrita por Bertrand de Jouvenel no seu clássico Du Pouvoir: Histoire Naturelle de Sa Croissance: Haja o que houver, façam os seus inimigos o que fizerem, o poder do Estado sempre cresce. Cresce quando centraliza, cresce quando se divide e se dispersa, cresce quando faz e quando desfaz, cresce agindo e cresce dormindo.
As análises liberais correntes que repetem ad nauseam o grito de alerta de José Ortega y Gasset, “El mayor peligro, el Estado! ” estão certíssimas, no essencial, mas pecam por imaginar que o poder crescente do Estado se baseia sobretudo em mecanismos materiais de controle, como o monopólio da força física ou da economia.
A grande força do Estado moderno não está nisso, mas em algo que Hegel percebeu melhor do que ninguém: o Estado é a mais vasta e complexa criação da inteligência humana, a encarnação suprema da Razão.
Comparado à organização estatal, mesmo o conjunto das ciências existentes não passa de uma mixórdia de teorias contrapostas, grupelhos em disputa e preferências irracionais.
Cada ciência pode ser muito racional no seu próprio terreno, mas não existe nem pode existir uma articulação teórica integral, uma organização interna e científica do conjunto das ciências.
O único princípio unificador desse conjunto é de ordem administrativa e burocrática. É o Estado. Tanto que uma teoria científica, por mais cientistas que a endossem, só adquire a autoridade pública de uma verdade universalmente reconhecida quando vem a ser absorvida pelo Estado e incorporada na legislação.
Acima da comunidade científica, acima da “opinião pública” mais letrada que se possa imaginar, o Estado é o juiz supremo e final de todos os conhecimentos humanos.
Contra uma entidade assim constituída, em vão esperneará o economista argumentando que a economia liberal é mais eficiente do que uma economia estatizada. Pois a economia não passa de uma ciência entre outras, e nenhuma ciência poderá jamais se sobrepor ao conjunto de todas elas, no topo do qual brilha a Razão encarnada no Estado.
O Estado torna-se assim o juiz último de todas as questões humanas, e não somente daquelas assinaladas na definição jurídico-formal da sua “área de competência”.
A consequência prática é que mesmo aqueles que desejariam ardentemente diminuir os poderes do Estado não veem outra maneira de fazê-lo senão por meio do próprio Estado, e suas belas intenções acabam sendo trituradas pela máquina da racionalidade estatal.
Agora mesmo, no Brasil, quando tantos se queixam do Estado comunopetista invasivo e onipotente, não enxergam outra maneira de livrar-se dele senão pela disputa parlamentar e judicial, pela reforma das leis e instituições e, em suma, pela ação dentro do Estado.
Com isso, a sociedade civil torna-se ainda mais fraca, mais incapaz de organizar-se e agir. Esse círculo vicioso não será quebrado enquanto o monopólio estatal da razão não for desmascarado. Como fazer isso, é tema que ficará para um artigo vindouro.

Notinhas indesejáveis

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 20 de fevereiro de 2005

O nacionalismo brasileiro funciona às avessas: é contra o país. A maior prova é sua ojeriza às palavras importadas. A importação torna um idioma rico, poderoso, expressivo. Isso acontece sobretudo com termos técnicos que, na origem, sejam formados por extensão metafórica do seu significado inicial. Por exemplo, site , “sítio”, “local”, é usado em inglês para designar também páginas da internet . Ao passar para o português, torna-se termo próprio, distinto do genérico “sítio”, ampliando o vocabulário nacional. Se, dando ouvidos aos patriotas de botequim, preferimos “sítio”, perdemos a distinção enriquecedora e ficamos com um termo só, o genérico, para significar duas coisas. Em inglês, a palavra francesa “journal”, ao passar a alfândega, tornou-se termo próprio para designar “publicação acadêmica”, distinguindo-se dos genéricos newspaper e magazine . É assim que o inglês cresce e se torna cada vez mais preciso, mas o português do Brasil, por ufanismo anti-americano, prefere ficar pequenininho, com reduzido número de palavras para designar imprecisamente coisas diversas. Que vantagem Maria leva? A de ser patrioticamente burra.

***

Todos os movimentos nazistas, neonazistas, fascistas e neofascistas do mundo são ferozmente anti-americanos e pró-terroristas, mas no Brasil basta você dizer uma palavra em favor dos EUA e o rótulo de nazista ou fascista aparece colado instantaneamente na sua testa.

***

Quanto mais inconsistente e frágil a mentira existencial, maior o investimento emocional necessário para defendê-la contra o assédio dos fatos.

Isso basta para explicar o estilo declamatório, ora indignado e lacrimejante, ora adocicado e sedutor, ora triunfalista e debochado, com que os opinadores da moda vão ludibriando o público e apagando nele os últimos vestígios de sensibilidade literária.

Impressionar pela intensidade da exibição emocional é o truque mais besta do mentiroso, mas, neste país, quando as pessoas não têm como refutar uma idéia, jogam contra ela a expressão hipertrofiada de suas reações psicofísicas: “Me dá nojo”, “Me dá ânsia de vômito”. Isso funciona mais do que qualquer argumento racional. Apelando à identificação instintiva do ouvinte com um sentimento de repulsa orgânica, extingue nele o simples desejo de se informar sobre a idéia abominável. É a maneira mais fácil e rápida de levar um sujeito a odiar o que desconhece. “Ensino universitário”, no Brasil de hoje, consiste em adestrar a juventude nessas reações automatizadas.

***

Lembrado por meu amigo Eloy Franco, registro a morte do grande boxeador alemão Max Schmelling, aos 99 anos, numa cidadezinha perto de Hamburgo. Campeão mundial dos pesos pesados em 1936, Schmelling serviu na guerra como paraquedista e foi incensado pelos nazistas como glória da raça ariana, mas nunca consentiu em entrar para o Partido nem em demitir seu treinador judeu — e ainda escondeu crianças judias em casa durante as perseguições. Derrotado por Joe Louis na revanche de 1938, tornou-se amigo do rival e, quando Louis morreu em 1981, pagou todas as despesas do seu funeral. Foi sempre um perfeito cavalheiro.

***

Na Espanha, o padre Domingo Garcia Dobao, vigário da paróquia da Imaculada Conceição na cidade de Jaen, está sendo processado porque recusou a comunhão a um líder gay após saber de seu recente casamento com parceiro do mesmo sexo. Não se trata de proteger os gays , pois todas as discriminações anti-gay da história do mundo são um nada em comparação com as perseguições anticristãs só das últimas décadas. O movimento gay , em perfeita sintonia com os demais fronts do anticristianismo mundial, sabe que não está em luta contra uma poderosa autoridade repressora, mas contra uma instituição acuada, oprimida, hostilizada por toda parte. Expulso o cristianismo das universidades e do movimento editorial, o próximo passo é oficializar o ódio anticristão como doutrina obrigatória do Estado moderno. O sentido do processo espanhol é portanto nítido: trata-se de criminalizar o próprio Código de Direito Canônico, que o padre não fez senão obedecer.

Breve história do machismo

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 16 de agosto de 2001

As mulheres sempre foram exploradas pelos homens. Se há uma verdade que ninguém põe em dúvida, é essa. Dos solenes auditórios de Oxford ao programa do Faustão, do Collège de France à Banda de Ipanema, o mundo reafirma essa certeza, talvez a mais inquestionada que já passou pelo cérebro humano, se é que realmente passou por lá e não saiu direto dos úteros para as teses acadêmicas.

Não desejando me opor a tão augusta unanimidade, proponho-me aqui arrolar alguns fatos que podem reforçar, nos crentes de todos os sexos existentes e por inventar, seu sentimento de ódio ao macho heterossexual adulto, esse tipo execrável que nenhum sujeito a quem tenha acontecido a desventura de nascer no sexo masculino quer ser quando crescer.

Nosso relato começa na aurora dos tempos, em algum momento impreciso entre Neanderthal e Cro-Magnon. Nessas eras sombrias, começou a exploração da mulher. Eram tempos duros. Vivendo em tocas, as comunidades humanas eram constantemente assoladas pelos ataques das feras. Os machos, aproveitando-se de suas prerrogativas de classe dominante, logo trataram de assegurar para si os lugares mais confortáveis e seguros da ordem social: ficavam no interior das cavernas, os safados, fazendo comida para os bebês e penteando os cabelos, enquanto as pobres fêmeas, armadas tão-somente de porretes, saíam para enfrentar leões e ursos.

Quando a economia de coleta foi substituída pela agricultura e pela pecuária, novamente os homens deram uma de espertinhos, atribuindo às mulheres as tarefas mais pesadas, como a de carregar as pedras, domar os cavalos, abrir sulcos na terra com o arado, enquanto eles, os folgadinhos, ficavam em casa pintando potes e brincando de tecelagem. Coisa revoltante.

Quando os grandes impérios da antiguidade se dissolveram, cedendo lugar aos feudos perpetuamente em guerra uns com os outros, estes logo constituíram seus exércitos particulares, formados inteiramente de mulheres, enquanto os homens se abrigavam nos castelos e ali ficavam no bem-bom, curtindo os poemas que as guerreiras, nos intervalos dos combates, compunham em louvor de seus encantos varonis.

Quando alguém teve a extravagante idéia de cristianizar o mundo, tornando-se necessário para tanto enviar missionários a toda parte, onde arriscavam ser empalados pelos infiéis, esfaqueados pelos salteadores de estradas ou trucidados pelo auditório entediado com os seus sermões, foi novamente sobre as mulheres que recaiu o pesado encargo, enquanto os machos ficavam maquiavelicamente fazendo novenas ante os altares domésticos.

Idêntica exploração sofreram as infelizes por ocasião das cruzadas, onde, armadas de pesadíssimas armaduras, atravessaram os desertos para ser passadas a fio d’espada pelos mouros (ou antes, pelas mouras, já que o machismo dos sequazes de Maomé não era menor que o nosso). E as grandes navegações, então! Em demanda de ouro e diamantes para adornar os ociosos machos, bravas navegantes atravessavam os sete mares e davam combate a ferozes indígenas que, quando as comiam, – era porca miséria! – no sentido estritamente gastronômico da palavra.

Finalmente, quando o Estado moderno instituiu o recrutamento militar obrigatório, foi de mulheres que se formaram os exércitos estatais, com pena de guilhotina para as fujonas e recalcitrantes, tudo para que os homens pudessem ficar em casa lendo A Princesa de Clèves.

Há milênios, em suma, as mulheres morrem nos campos de batalha, carregam pedras, erguem edifícios, lutam com as feras, atravessam desertos, mares e florestas, sacrificando tudo por nós, os ociosos machos, aos quais não sobra nenhum desafio mais perigoso que o de sujar nossas mãozinhas nas fraldas dos nossos bebês.

Em troca do sacrifício de suas vidas, nossas heróicas defensoras não têm exigido de nós senão o direito de falar grosso em casa, de furar umas toalhas de mesa com pontas de cigarros e, eventualmente, de largar um par de meias no meio da sala para a gente catar.

Veja todos os arquivos por ano