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Os histéricos no poder

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de dezembro de 2012

Uma das experiências mais perturbadoras que tive na vida foi a de perceber, de novo e de novo ao longo dos anos, o quanto é impossível falar ao coração, à consciência profunda de indivíduos que trocaram sua personalidade genuína por um estereótipo grupal ou ideológico.
Diga você o que disser, mostre-lhes mesmo as realidades mais óbvias e gritantes, nada os toca. Só enxergam o que querem. Perderam a flexibilidade da inteligência. Trocaram-na por um sistema fixo de emoções repetitivas, acionadas por um reflexo insano de autodefesa grupal.
No começo não é bem uma troca. O estereótipo é adotado como um revestimento, um sinal de identidade, uma senha que facilita a integração do sujeito num grupo social e, libertando-o do seu isolamento, faz com que ele se sinta até mais humano. Depois a progressiva identificação com os valores e objetivos do grupo vai substituindo as percepções diretas e os sentimentos originários por uma imitação esquemática das condutas e trejeitos mentais do grupo, até que a individualidade concreta, com todo o seu mistério irredutível, desapareça sob a máscara da identidade coletiva.
Essa transformação torna-se praticamente inevitável quando a unidade do grupo tem uma forte base emocional, como acontece em todos os movimentos fundados num sentimento de “exclusão”, “discriminação” e similares.
Não me refiro, é claro, aos casos efetivos de perseguição política, racial ou religiosa. A simples reação a um estado de coisas objetivamente perigoso não implica nenhuma deformação da personalidade. Ao contrário: quanto mais exageradas e irrealistas são as queixas grupais, tanto mais facilmente elas fornecem ao militante um “Ersatz” de identidade pessoal, precisamente porque não têm outra substância exceto a ênfase mesma do discurso que as veicula.
À dessensibilização da consciência profunda corresponde, em contrapartida, uma hipersensibilização de superfície, uma suscetibilidade postiça, uma predisposição a sentir-se ofendido ou ameaçado por qualquer coisinha que se oponha à vontade do grupo.
No curso desse processo, é inevitável que o amortecimento da consciência individual traga consigo o decréscimo da inteligência intuitiva. As capacidades intelectuais menores, puramente instrumentais, como o raciocínio lógico verbal ou matemático, podem permanecer intactas, mas o núcleo vivo da inteligência, que é a capacidade de apreender num relance o sentido da experiência direta, sai completamente arruinada, às vezes para sempre.
A partir daí, qualquer tentativa de apelar ao testemunho interior dessas pessoas está condenada ao fracasso. A experiência que elas têm das situações vividas tornou-se opaca, encoberta sob densas camadas de interpretações artificiais cujo poder de expressar as paixões grupais serve como um sucedâneo, hipnoticamente convincente, da percepção direta.
O indivíduo “sente” que está expressando a realidade direta quando seu discurso coincide com as emoções padronizadas do grupo, com os desejos, temores, preconceitos e ódios que constituem o ponto de intersecção, o lugar geométrico da unidade grupal.
O mais cruel de tudo é que, como esse processo acompanha “pari passu” o progresso do indivíduo no domínio da linguagem grupal, são justamente os mais lesados na sua inteligência intuitiva que acabam se destacando aos olhos de seus pares e se tornando os líderes do grupo.
Um grau elevado de imbecilidade moral coincide aí com a perfeita representatividade que faz do indivíduo o porta-voz por excelência dos interesses do grupo e, na mesma medida, o reveste de uma aura de qualidades morais e intelectuais perfeitamente fictícias.
Não conheço um só líder esquerdista, petista, gayzista, africanista ou feminista que não corresponda ponto por ponto a essa descrição, que corresponde por sua vez ao quadro clássico da histeria.
O histérico não sente o que percebe, mas o que imagina. Quando o orador gayzista aponta a presença de cento e poucos homossexuais entre cinquenta mil vítimas de homicídios como prova de que há uma epidemia de violência anti-gay no Brasil, é evidente que o seu senso natural das proporções foi substituído pelo hiperbolismo retórico do discurso grupal que, no teatro da sua mente, vale como reação genuína à experiência direta.
Quando a esposa americana, armada de instrumentos legais para destruir a vida do marido em cinco minutos, continua se queixando de discriminação da mulher, ela evidentemente não sente a sua situação real, mas o drama imaginário consagrado pelo discurso feminista.
Quando o presidente mais mimado e blindado da nossa História choraminga que levou mais chicotadas do que Jesus Cristo, ele literalmente não se enxerga: enxerga um personagem de fantasia criado pela propaganda partidária, e acredita que esse personagem é ele. Todas essas pessoas são histéricas no sentido mais exato e técnico do termo. E se não sentem nem a realidade da sua situação pessoal imediata, como poderiam ser sensíveis ao apelo de uma verdade que não chega a eles por via direta, e sim pelas palavras de alguém que temem, que odeiam, e que só conseguem enxergar como um inimigo a ser destruído?
A raiz de todo diálogo é a desenvoltura da imaginação que transita livremente entre perspectivas opostas, como a de um espectador de teatro que sente, como se fossem suas, as emoções de cada um dos personagens em conflito. Essa é também a base do amor ao próximo e de toda convivência civilizada.
A presença de um grande número de histéricos nos altos postos de uma sociedade é garantia de deterioração de todas as relações humanas, de proliferação incontrolável da mentira, da desonestidade e do crime.

A capa e a espada

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 21 de dezembro de 2007

Nos dias que se seguiram ao 11 de setembro, a mídia mundial fez um barulho dos diabos alertando contra a suposta onda de ódio anti-islâmico que estaria assolando os EUA. A base factual da notícia eram seiscentas e poucas queixas de “discriminação” apresentadas à polícia americana. Nenhuma delas envolvia morte, agressão, nem mesmo demissão de emprego: os atos mais violentos consistiam em insultos, a maioria em meras palavras ambíguas interpretadas ex post facto em sentido discriminatório.

Mas desde então várias dezenas de cristãos já morreram nos EUA – e alguns milhares nos países comunistas e islâmicos — em ataques homicidas motivados por ódio anticristão explícito e documentado, sem que em nenhum desses casos a grande mídia européia e americana (da nacional nem falo) consentisse sequer em usar a expressão “crime de ódio” para descrever o ocorrido.

Mutatis mutandis , nem um único caso de agressão a homossexuais comprovadamente motivada por excesso de zelo cristão foi jamais citado para dar fundamento à mentira sórdida de que as convicções religiosas do povo brasileiro estão colocando em risco a vida da comunidade gay .

Mas, exatamente como em Columbine – aquele episódio que Michael Moore falsificou por completo –, a investida assassina contra a Igreja New Life do Colorado foi obra de um jovem homossexual intoxicado de idéias anticristãs, e ai de quem ouse insinuar que a ideologia gayzista ou a campanha furibunda dos Dawkins e Hitchens contra a fé religiosa têm alguma responsabilidade nisso. Em geral, nem mesmo padres, bispos e pastores ousam ver aí alguma relação de causa e efeito.

No caso específico da New Life, o cuidado da grande mídia brasileira em impedir que os fatos induzam a conclusões reacionárias chegou ao requinte de falsificar a identidade da heroína do episódio, Jeanne Assam, apresentando-a como “agente de segurança” para atenuar o escândalo de que uma cidadã comum, com uma Beretta 92, salvasse da morte certa mais de cem pessoas ameaçadas por Mathew Murray e se tornasse assim uma heroína dos grupos de autodefesa cristã e dos americanos armados em geral. Mas Jeanne não é profissional de segurança, licenciada para portar arma na Igreja em função do seu emprego. É apenas uma fiel cristã que se ofereceu para zelar pela vida de seus irmãos, voluntariamente, gratuitamente, assumindo para isso a responsabilidade de andar armada. Se para isso teve de obter da polícia uma licença especial, foi pela simples razão de que leis criminosamente idiotas proíbem o porte de armas em igrejas, escolas, clubes, shopping centers, etc., tornando esses locais o alvo preferencial e indefeso para tipos como Mathew Murray, Cho Seung Hui ou Tim McVeigh (um anticristão, um antibranco e um anticapitalista).

Em 25 de julho de 1993, Charl van Wyck também não trabalhava de segurança. Era apenas um fiel que assistia ao culto quando a igreja de St. James, na África do Sul, foi atacada por terroristas com granadas e tiros de fuzil AK-47. Onze pessoas morreram, mas muitas mais teriam morrido se van Wyck não estivesse armado e, com disparos do seu 38, não pusesse os atacantes em fuga. Ele conta sua experiência no livro “Shooting Back: The Right and Duty of Self Defense”, que se tornou um best seller no seu país.

No momento em que escrevo estas linhas, a comunidade cristã no mundo está ameaçada por perigos incalculavelmente maiores que a loucura avulsa – ainda que ideologicamente induzida — de um Murray ou de um Cho Seung Hui. Na Coréia do Norte, uma nova onda de prisões e execuções de fiéis, em plena época do Natal, suscita apelos desesperados que a grande mídia, especialmente no Brasil, sufoca por completo (v. Martyrdom awaits North Koreans on Christmas). Ao mesmo tempo, do outro lado do mundo, a prefeitura de Okkahoma anuncia que seus funcionários serão proibidos de celebrar o Natal no local de trabalho, o shopping center Pembroke Pines na Flórida veta os presépios e cenas natalinas em geral nas suas instalações, e jornais populares como “USA-Today” soltam artigo em cima de artigo para proclamar que não existe nenhuma guerra cultural anticristã, que é tudo invenção de paranóicos como Bill O’Reilly.

Não sei se Jeanne Assam está sabendo dessas coisas, nem se leu o livro de van Wyck. Mas leu decerto o Evangelho de Lucas, capítulo 22, versículo 36, onde Jesus ordena aos apóstolos: “Aquele que não tem espada, venda sua capa e compre uma.”

O sentido do versículo é claro: a defesa armada do rebanho é obrigação estrita dos pastores, dos sacerdotes e de cada fiel. Aquele que foge a essa responsabilidade é indigno da confiança da comunidade cristã. Neste momento, nenhuma outra mensagem de Natal pode ser mais oportuna.

Conspiração de iniqüidades

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 25 de junho de 2007

O movimento profundo da História revela-se menos nas manchetes assustadoras do que em acontecimentos mais discretos que tenham o dom da tipicidade ilimitadamente reprodutível. Fatos espetaculares podem passar sem deixar marcas, mas pequenos gestos repetidos milhares de vezes mudam irreversivelmente os hábitos da psique humana e transformam aos poucos a exceção em regra, o inesperado em rotina cotidiana, o absurdo em banalidade usual.

        Dois episódios menores da semana põem à mostra os germes do futuro Brasil, gerado nos escritórios de engenharia comportamental dos autonomeados governantes do mundo e plantados no solo pátrio pela solicitude devota da militância esquerdista local.

        Primeiro acontecimento: Terça-feira passada, um aluno da Escola Estadual Darcy Pacheco, em São José do Rio Preto, SP, ateou fogo aos cabelos da professora Iramar Araújo Sachetini. Sob os risos de toda a classe, só uma aluna correu para ajudar a professora, impedindo-a de sofrer queimaduras desfigurantes. A Secretaria Estadual de Educação anunciou que o menino não será punido, porque seu delito “não foi grave” (sic) e aconselhou seu pai a não transferi-lo para outro estabelecimento, porque isso poderia trazer dano à sua carreira escolar. A aluna que socorreu a professora, no entanto, não tem comparecido às aulas, por medo da represália de seus colegas. Nenhuma medida para protegê-la foi anunciada pela Secretaria ou pela diretoria da escola. A professora, humilhada três vezes — agredida pelo aluno, ridicularizada pela classe e frustrada em seu pedido de punição para o agressor – está desesperada e não sabe a quem recorrer.

        Segundo acontecimento: Os cartazes da campanha Visão Nacional para a Consciência Cristã, com o título “Homossexualismo” é a frase do Gênesis , “E Deus fez o homem e a mulher e viu que era bom”, foram considerados “homofóbicos” e retirados da cidade de Campina Grande, na Paraíba, por ordem da juíza Maria Emília Neiva de Oliveira, da Primeira Vara Cível daquela cidade, a pedido de entidades ligadas ao movimento gay.

        Acontecimentos dessa ordem multiplicam-se diante dos nossos olhos, mostrando a germinação acelerada dos novos valores e princípios que hão de imperar sobre a vida brasileira antes de decorrida uma geração. Rastrear até suas fontes a inspiração ideológica que os determina é enxergar antecipadamente o Brasil em que viverão, não digo os nossos filhos nem nossos netos, mas nós mesmos – ou aqueles de nós que tiverem a imprudência de permanecer no país — nos dias tenebrosos de uma velhice humilhada e impotente. Cabe lembrar aqui a máxima latina “De te fabula narratur”: você é o personagem desta história. É da sua velhice que estou falando.

        Na interpretação desses pequenos acontecimentos vigora um preceito metodológico que já expliquei mil vezes nas minhas aulas de filosofia política: o efeito histórico de fatos dessa natureza transcende de muito o horizonte de consciência dos agentes envolvidos. Para discerni-lo é preciso remontar a fontes ideológicas às vezes bastante longínquas que projetaram na tela a linha inteira de uma seqüência de transformações histórico-culturais na qual aquelas ações em particular se inserem como elos de uma corrente sem fim.

        Por trás dessas duas ações existe a opção por um corpo de princípios morais (ou mais propriamente imorais) cujo sentido os personagens envolvidos, decerto, mal têm a condição de compreender. Para o analista distanciado, é impossível não perceber que esses princípios expressam a repulsa gnóstica pela ordem da realidade e o sonho revolucionário do “mundo às avessas”. A revolta contra esta ou aquela ordem social em particular é sempre e invariavelmente nada mais que um pretexto retórico local para dar curso ao ódio gnóstico contra a realidade enquanto tal em todas as suas expressões possíveis, das quais a mais óbvia é a ordem dos valores que preside a toda sociedade normal, isto é, não-revolucionária (chamo assim a sociedade devotada à manutenção usual do bem comum e não empenhada na sua própria destruição).

        A expressão mais óbvia de toda e qualquer hierarquia social é a “discriminação”: a distinção entre seus membros mais valiosos e menos valiosos, conforme sua contribuição — real ou suposta — à consolidação ou destruição da ordem. Uma sociedade sem discriminações é a mesma coisa que um código penal sem punições. Sociedade é discriminação. As sociedades diferem apenas pelos critérios de discriminação, que vão desde a separação racional entre os elementos benéficos e nocivos até às formas mais extravagantes de exclusão baseadas em temores mitológicos, orgulho racial demente, preconceitos ideológicos de classe etc. Desde o momento em que uma cândida humanidade aceitou como coisa óbvia, normal e improblemática a promessa globalista de erradicar “todas as discriminações”, era claro para todo observador qualificado que a proclamação desse objetivo, manifestamente impossível, ocultava apenas um plano revolucionário destinado a mudar os critérios, a instaurar novas formas de discriminação, necessariamente mais violentas e injustificáveis do que as anteriores. Vale aí o seguinte preceito de método: se um líder político ou grupo militante promete o impossível, das duas uma – ou ele é louco, ou está querendo alguma outra coisa perfeitamente possível que não lhe convém declarar em voz alta. Nos dois casos a promessa tende a conquistar os corações e mentes com mais facilidade do que qualquer projeto viável. A loucura é contagiosa em si; nenhum argumento racional pode contra o arrebatamento da esperança utópica. No segundo caso, a eficiência da transmutação maquiavélica mede-se pela multiplicação da força do atrativo utópico pelo poder formidável da ação camuflada, imune a suspeitas.

        O novo critério de discriminação que se está sendo implantando no Brasil pode ser estudado numa seqüência de documentos que vêm desde a propaganda gnóstica dos séculos XIII e XIV até as doutrinas da escola de Frankfurt, do desconstrucionismo, do feminismo radical, do movimento gay , etc. Ao longo do tempo, a corrente de ódio insano à ordem do real, nascendo em pequenos grupos de fanáticos religiosos, vai se avolumando e se transformando numa enorme e complexa estratégia de poder, até o ponto em que a desordem e a destruição se tornam elas mesmas os princípios fundantes de uma nova ordem em que todos os meios de ação prática criados pela razão são subjugados e postos a serviço da absurdidade e do mal. É o Império do Crime. Os leitores, por favor, resguardem-se de entender essa expressão como sinônimo apenas de uma ordem social regida por grupos criminosos. Não se trata do império dos criminosos , mas do império do crime enquanto tal: uma ordem social na qual tudo aquilo que os milênios consideraram abominável ou desprezível é entronizado como obrigação máxima e cláusula pétrea, proibindo e criminalizando tudo o que a humanidade anterior sempre considerou bom, correto e desejável. O amor familiar é condenado como camuflagem da violência doméstica e da pedofilia, enquanto os estupradores e pedófilos autênticos são protegidos como vítimas da sociedade má. A devoção religiosa é estigmatizada como disfarce de todas as paixões mais baixas, enquanto estas, na sua versão mesmo a mais crua e direta, são elevadas à categoria de padrões normativos obrigatórios. Todas as relações humanas, denunciadas como “véu ideológico” estendido sobre relações de poder, são trocadas, ao som de fanfarras, pela manifestação brutal do poder explícito, celebrado como salvador e humanitário. Todo o universo criado, onde o império relativo do bem mantinha o mal sob controle, é acusado de ser um imenso engodo, e o império do mal explícito é aclamado como única e definitiva encarnação da bondade, como reino da justiça.

        No curso da inversão, apela-se ao ressentimento latente de todos os grupos e indivíduos que, justa ou injustamente, tenham recebido uma cota menor de benefícios da ordem social vigente. Pelo simples fato de pertencer a um deles, cada indivíduo se sente agora identificado ao Cristo vingador, portador do Juízo Final que abrirá as portas ao reino da bem-aventurança eterna após o castigo dos maus. O fato de que ninguém pertença exclusivamente nem inteiramente ao grupo dos injustiçados ou ao dos injustos, mas de que todos participem necessariamente de um e de outro em graus variados e sob aspectos diversos, é totalmente escamoteado. Fica proibido mencionar que a mulher oprimida pelo marido é não raro a opressora da empregada, que o homossexual afetado de coitadice pode ser ao mesmo tempo um feroz explorador dos pobres, que o trabalhador vítima da miséria deprimente pode acumular também as funções de espancador da mulher e dos filhos; e assim por diante. Por um momento, no entusiasmo da propaganda, todos têm impressão de que se trata de “nós” contra “eles”. Ninguém percebe que, sempre e invariavelmente, sob algum aspecto que escapa à sua atenção no momento, cada um de “nós” é também “um deles”. Mas o confronto com essa dura realidade pode ser adiado para depois da festa revolucionária, quando vier a hora de pagar as contas.

        “Summum jus, summa injuria”, diziam os juristas romanos: a justiça perfeita é a perfeita injustiça. A promessa da justiça universal é uma só e mesma coisa que o império do crime. Assim como na esfera política todos que serviram nos primeiros postos das grandes revoluções foram sempre os primeiros a ser perseguidos e assassinados pela nova ordem que elas constituíram, assim também os que se presumem beneficiários da transmutação gnóstica de valores serão destruídos implacavelmente pelo próprio poder que imaginam ter conquistado.

        Na dialética da transmutação há um detalhe retórico digno da maior atenção: os efeitos reais a ser obtidos jamais podem ser proclamados em toda a sua crueza. Sua verdadeira índole deve ser ocultada sob pretextos extraídos do mesmo corpo de valores que se deseja destruir. A desordem deve ser justificada em nome da ordem, o crime em nome da lei, a brutalidade em nome dos mais delicados sentimentos. Nos dois exemplos acima isso fica bem nítido. Atear fogo aos cabelos de uma pessoa é arriscar desfigurá-la para o resto da vida. Esse resultado teria sido alcançado se uma aluna em particular, vencendo o temor dos risos gerais, não socorresse a vítima em tempo. Se as autoridades incumbidas de educar o agressor proclamam que seu delito “não é grave” e que a carreira normal do estudante não pode ser afetada pelo detalhe irrisório de haver colocado em risco a saúde e a vida de outrem, a premissa oculta a que esse argumento faz apelo é a natural benevolência adulta para com os adolescentes; benevolência que nasce da mesma estrutura familiar e da mesma ordem tradicional de valores que através dessa apologia da delinqüência se pretende precisamente destruir. Os bons sentimentos da própria vítima são usados como justificativa ex post facto do crime. Evidentemente a Secretaria da Educação, ao minimizar a gravidade do delito, reforça o coro de risos da platéia juvenil, ensinando aos gaiatos sádicos que não é feio rir daquilo que a autoridade revolucionária não acha grave. Por um momento, o agente da transmutação deve ocultar de si próprio o maquiavelismo da tática que emprega, pois, se o trouxesse à luz da consciência, perceberia instantaneamente a monstruosidade criminosa do seu procedimento, mil vezes mais feio que o do próprio garoto incendiário. Invertendo a ordem da justiça, punindo com humilhação e discriminação a professora e a aluna que a socorreu, a Secretaria da Educação constitui-se, aos olhos do observador realista, em organização criminosa de altíssima periculosidade, imbuída da tarefa de espalhar entre a juventude o amor ao crime e o desprezo cínico pelas vítimas.

        No caso da sentença dada pela juíza paraibana, está claro que é aplicação antecipada de uma lei ainda em votação. Descriminalizar umas condutas e criminalizar outras é a natureza mesma da transmutação revolucionária. A aprovação dos diplomas legais correspondentes é apenas um formalismo jurídico que, no curso do processo, pode ser perfeitamente dispensado em favor da imposição brutal que dá vigor imediato às leis hipotéticas desejadas pelo grupo militante.

        O processo legislativo torna-se assim apenas um adorno legal acrescentado ao verdadeiro e único poder legiferante, que é a militância organizada, equipada do único argumento juridicamente válido: a capacidade de intimidar.

        Notem que a frase proibida é uma das primeiras da Bíblia. Mal os cristãos começam a tomar consciência de uma trama destinada a criminalizar o Livro Sagrado e, antes que acabem de acordar para o que pode vir a acontecer, já aconteceu. Antes que você acabe de ler o convite para o duelo, o atacante já o desventrou com uma punhalada. Não é coincidência nem engano. Propor uma novidade fingindo querer discuti-la democraticamente, e ao mesmo tempo já tratar de impô-la na prática como se estivesse universalmente aprovada — eis o estilo de ação mais antigo e invariável dos movimentos revolucionários.

O detalhe particularmente cínico do episódio é que a expressão tranqüila, respeitosa e até solene de desaprovação moral de um costume erótico, desacompanhada de qualquer insulto ou palavra constrangedora, é criminalizada como conduta anti-social, ao passo que o ataque direto e brutal ao sentimento religioso da maioria dos brasileiros, por meio da chalaça grosseira e da blasfêmia intencional como se viu na passeata gay em São Paulo , é protegido pela justiça como um direito elevado e nobre. A grande mídia reforça o assalto à religião, subscrevendo a classificação da campanha evangélica como “crime de homofobia” sem esperar que a lei o faça e legitimando como direito civil o ultraje público aos sentimentos religiosos da multidão e a interrupção proposital de ritos religiosos, crime previsto e condenado pelo Código Penal no seu artigo 208. Despreza-se a lei existente, aplica-se a inexistente.

Não imaginem que haja nisso uma absurdidade acidental, um ato falho freudiano, um ponto fraco na estratégia revolucionária. A incongruência da situação é calculada meticulosamente para desorientar e paralisar a vítima ou para induzi-la a reações inadequadas que a coloquem em posição ainda mais vulnerável. Exemplo disso em escala internacional é a hedionda campanha antijudaica baseada numa retórica deliberadamente paradoxal: acusar os judeus de racismo e legitimar o anti-semitismo como reação das pobres vítimas da prepotência israelense. O judeu ao qual de repente se imputa o mesmo crime que matou seis milhões de seus patrícios sofre uma injustiça tão extrema, tão intolerável, que tudo aí o induz à reação excessiva e inconseqüente, apta a atrair sobre ele as antipatias gerais. A Anti-Defamation League (ADL) se fez vítima dessa síndrome ao mover uma campanha alarmista, exagerada e objetivamente injusta contra o filme de Mel Gibson, A Paixão de Cristo , irritando os fãs do cineasta e arriscando mesmo romper a aliança judaico-cristã da qual depende a própria sobrevivência do Estado de Israel. Uma nova campanha, recém-lançada, acerta muito mais o alvo e mostra que a ADL, refeita da febre anti-Gibson, aprendeu a identificar melhor as fontes do perigo genuíno (v. DeOlhoNaMidia.org).

Mas os cristãos, pessimamente informados sobre as perseguições que seus correligionários sofrem no mundo e iludidos pela segurança aparente oferecida por um governo de falsos crentes, estão totalmente despreparados para lidar com a armadilha psicológica que a malícia revolucionária preparou para pegá-los.

O próprio conteúdo dos cartazes mostra a ingenuidade das suas reações. Eles não se voltam contra a prepotência ditatorial das pretensões gays , mas contra o homossexualismo em si. Já expliquei, aqui, o erro fatal aí embutido (v. as partes finais do artigo “Conseqüências mais que previsíveis”, http://www.olavodecarvalho.org/semana/070604dc.html ). Todo o uso estratégico do homossexualismo como arma revolucionária baseia-se na idéia de primeiro nivelar como igualmente respeitáveis a fé religiosa e um simples desejo de determinado tipo de prazeres sexuais, depois sobrepor este àquela e por fim esmagar por completo os direitos da consciência religiosa. Ao responder com uma apologia da heterossexualidade, os adversários do gayzismo se submetem passivamente ao engodo nivelador, transformando a discussão inteira em confronto de orientações sexuais e dando assim ao adversário a vitória no primeiro round . O heterossexualismo, enquanto tal, não é moralmente superior ao homossexualismo. A quase totalidade das condutas heterossexuais numa sociedade permissiva é francamente imoral. O espertalhão que traça a mulher do vizinho é heterossexual. O professor que abusa de suas alunas é heterossexual. O patrão que intimida a empregada para levá-la para a cama à força é heterossexual. O sedutor que promete casamento e foge depois do orgasmo é heterossexual. E é heterossexual, por definição, o estuprador de mulheres. Consideraremos todas essas condutas mais toleráveis que a de dois garotos que se trancam num banheiro de escola para trocar carícias gays ? Teremos perdido totalmente o senso das proporções? O que se deve defender contra a propaganda gay não é o heterossexualismo em si, mas sim a superioridade intrínseca da devoção religiosa em comparação a qualquer conduta sexual que seja. Rebaixar a um mero confronto de orientações sexuais uma questão infinitamente mais alta, infinitamente mais decisiva para o destino da humanidade, é cair numa armadilha sórdida, preparada com requintes de maquiavelismo por engenheiros comportamentais que contavam com essa reação das vítimas para mais facilmente as poder qualificar como preconceituosas, machistas e, por definição, culpadas de “homofobia”.

Nos dois casos, estamos diante de uma dose incalculável de malícia, de perversidade psicológica que raia a sociopatia pura e simples, e isto não da parte dos militantes vulgares que esbravejam nas ruas, mas da parte de seus mentores intelectuais e políticos espalhados nos altos escalões do governo, nas cátedras universitárias, nas diretorias dos órgãos de mídia.

        Todo aquele que acha que é possível enfrentar essas coisas mediante discussões polidas, senão mediante apelos lacrimosos às mesmas autoridades que dirigem o processo, é mais que tolo, é doente de ingenuísmo covarde e de estupidez criminosa que fazem da vítima a cúmplice maior do seu próprio estupro e assassinato. No fim, não se pode dizer que não vigore aí algum tipo de justiça: aqueles que querem matar matam aquele que pede que alguém o mate.

        As revoluções sociais são uma conspiração de iniqüidades de parte a parte. Não é raro que as vítimas, trêmulas de medo ante o agressor, se deixem iludir pela esperança louca de conquistar sua afeição mediante gestos de subserviência ou de aplacar sua fúria mediante a oferta de propinas. Também não é raro que, na ânsia de seduzir o agressor, voltem sua ira contra aquele que o denuncia (isso já me aconteceu tantas vezes que já perdi a conta).

        Se fosse preciso ilustrar a loucura completa dessas reações, bastaria lembrar o caso recente do empresário Wagner Canhedo, preso pela posse de um miserável revólver calibre 357 que aqui na América qualquer um pode comprar na esquina sem licença nenhuma. Canhedo jamais recusou ajuda aos partidos de esquerda. Eles o perseguem precisamente por isso.

Nos partidos comunistas há uma norma tradicional de senso comum. Se alguém dá dinheiro ao partido, das duas uma: ou é um “companheiro nosso” ou é “alguém que quer nos enganar”. Na primeira hipótese, está sob total controle e isto o partido pode averiguar facilmente; na segunda, o sujeito entra imediatamente na lista dos inconvenientes a ser eliminados na primeira oportunidade. Quem quer que espere aplacar revolucionários mediante oferta de vantagens financeiras é candidato à morte certa e não de todo imerecida. A injustiça perfeita é tão inexistente quanto a perfeita justiça.

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