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Fundamentalismos em luta

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 24 de julho de 2012

  “Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua origem dana.”

Bocage

A ambigüidade a que me referi no artigo anterior mostra-se ainda mais visível quando o versículo (Rom. 1:26) não é lido isoladamente, mas como continuação lógica daquele que o antecede. Este diz que os homens caíram no pecado quando começaram a “servir mais à criação (ktísei) do que ao Criador”. O contraste com o que vem em seguida não poderia ser mais patente: afinal, o homem peca porque obedece a natureza criada ou porque se rebela contra ela?

À primeira vista, o Apóstolo parece aí imitar o lobo da fábula, condenando o pecador per fas et per nefas.

Mas é impressão enganosa. Paulo não é um ginasiano brasileiro perdido entre as regras da lógica elementar; é um dos grandes escritores da língua grega. A contradição verbal aparente foi o meio literariamente perfeito que ele encontrou para expressar uma tensão que existe objetivamente na própria natureza, a qual é ao mesmo tempo, e inseparavelmente, a natureza decaída e o símbolo vivo da natureza primordial, anterior ao pecado. O par corresponde mais ou menos à distinção medieval entre a natura naturata (a natureza criada ou produzida, ktísis) e a natura naturans (a essência, a lei interna, physis) que a estabelece. Das duas, só a natura naturata pode decair, enquanto seu modelo primordial permanece intacto, visível em filigrana por trás dos meros fatos naturais dados à experiência sensível. Quando a natureza sensível é tomada como totalidade autônoma, o símbolo assume o lugar do simbolizado, a aparência imediata veda o acesso à realidade profunda que a fundamenta. É assim que, obedecendo a natureza empírica (ktísei), o homem no mesmo ato cai “fora” da natureza primordial (physis): correndo atrás de imagens, afasta-se dos bens verdadeiros que elas refletem.

O versículo contém de algum modo a antevisão profética de todo o processo cultural da modernidade. Amputada da sua dimensão simbólica, reduzida a seus aspectos sensíveis e mensuráveis, a “natureza” tal como concebida pela ciência experimental de Galileu e Bacon corresponde ponto por ponto à natureza decaída tal como Paulo a compreendia, a “natureza escrava” a que se refere o poeta. Obviamente ninguém peca por ir “contra” essa natureza, mas sim, ao contrário, por tornar-se “servo” das aparências que a compõem. As pulsões hereditárias, por exemplo, forças perfeitamente naturais que ordenadas em vista das finalidades superiores da existência fariam de cada ser humano uma imagem personalizada e única da perfeição divina, podem sobrepor-se às exigências do espírito ao ponto de reduzir a alma ao estado de escravidão.

Tomar esse versículo como uma investida unilateral contra a “antinaturalidade” de tais ou quais pecados é achatar indevidamente a sua mensagem, suprimindo a tensão dialética na qual aquilo que é natural num sentido se torna antinatural em outro, dependendo do horizonte de visão mais estreito ou mais amplo do observador.

No caso, o observador é um homem para o qual a realidade superior é algo mais que mero objeto de “crença religiosa”. É alguém que teve a sua própria vida cortada em dois por uma intervenção divina direta e fulminante. É desde o patamar dessa experiência que ele distingue e unifica dialeticamente os dois níveis da “natureza” – uma operação que é inacessível a essas duas criaturas típicas da modernidade: o sensorialista radical e seu irmão inimigo, o crente fundamentalista.

Num sentido estritamente cognitivo, fundamentalismo, como o definia Eric Voegelin, é o vício de achatar os símbolos, fazendo deles signos diretos de fatos ou objetos do mundo físico, sem atinar com a experiência espiritual que medeia entre uma coisa e a outra. Amputadas dessa experiência, até as mais sublimes verdades espirituais podem ser reduzidas a banais erros científicos. O doutrinário ateísta que joga contra a Bíblia fatos da astronomia ou da geologia incorre nesse erro, tanto quanto o crente que condena pecados como “antinaturais” num sentido chapado e uniforme do termo.

Em suas versões mais extremadas, o fundamentalismo leva à confusão pueril entre palavras e coisas, sem a qual nenhum discurso de propaganda demagógica teria credibilidade nem por um minuto.

Felizmente para os demagogos, o homem moderno em geral é quase sempre um fundamentalista. Ateu ou crente, pouco importa. Querem um exemplo? Quando um cristão inflamado acusa o homossexualismo de “antinatural”, o gayzista fanático que o ouve fareja aí a distorção que acabo de assinalar e então acusa o crente de “fundamentalista”, mas anexando ao sentido puramente cognitivo da palavra a acepção de violência terrorista e perseguição estatal  teocrática, com que o termo é usado na mídia quando se refere ao radicalismo islâmico. Ora, os cristãos são, por toda parte, as vítimas preferenciais e inermes do radicalismo islâmico, que os mata à base de cem mil por ano. A confusão de palavra e coisa faz com que os perseguidos, num passe de mágica, apareçam com o rosto hediondo do seu perseguidor. É um prodígio de difamação, mas a coisa não pára por aí: em seguida, o gayzista, sentindo-se ou fingindo-se assombrado por esse fantasma de sua própria invenção, tenta proteger-se dele mediante uma legislação repressiva que proíbe citações bíblicas como se estas fossem atentados mortíferos e eleva o homossexualismo à condição de divindade intangível, ante a qual toda crítica humana deve calar-se, genuflexa e contrita. A política gayzista é toda ela uma confusão fundamentalista de palavras e coisas, mas aqueles que a combatem não podem perceber isso porque estão eles próprios, quase sempre, enredados em confusões fundamentalistas.

Longa noite

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 4 de junho de 2012

Se há uma coisa que, quanto mais você perde, menos sente falta dela, é a inteligência. Uso a palavra não no sentido vulgar de habilidadezinhas mensuráveis, mas no de percepção da realidade. Quanto menos você percebe, menos percebe que não percebe. Quase que invariavelmente, a perda vem por isso acompanhada de um sentimento de plenitude, de segurança, quase de infalibilidade. É claro: quanto mais burro você fica, menos atina com as contradições e dificuldades, e tudo lhe parece explicável em meia dúzia de palavras. Se as palavras vêm com a chancela da intelligentzia falante, então, meu filho, nada mais no mundo pode se opor à força avassaladora dos chavões que, num estalar de dedos, respondem a todas as perguntas, dirimem todas as dúvidas e instalam, com soberana tranqüilidade, o império do consenso final. Refiro-me especialmente a expressões como “desigualdade social”, “diversidade”, “fundamentalismo”, “direitos”, “extremismo”, “intolerância”, “tortura”, “medieval”, “racismo”, “ditadura”, “crença religiosa” e similares. O leitor pode, se quiser, completar o repertório mediante breve consulta às seções de opinião da chamada “grande imprensa”. Na mais ousada das hipóteses, não passam de uns vinte ou trinta vocábulos. Existe algo, entre os céus e a terra, que esses termos não exprimam com perfeição, não expliquem nos seus mais mínimos detalhes, não transmutem em conclusões inabaláveis que só um louco ousaria contestar? Em torno deles gira a mente brasileira hoje em dia, incapaz de conceber o que quer que esteja para além do que esse exíguo vocabulário pode abranger.

Que essas certezas sejam ostentadas por pessoas que ao mesmo tempo fazem profissão-de-fé relativista e até mesmo neguem peremptoriamente a existência de verdades objetivas, eis uma prova suplementar daquilo que eu vinha dizendo: quanto menos você entende, menos entende que não entende. Ao inverso da economia, onde vigora o princípio da escassez, na esfera da inteligência rege o princípio da abundância: quanto mais falta, mais dá a impressão de que sobra. A estupidez completa, se tão sublime ideal se pudesse atingir, corresponderia assim à plena auto-satisfação universal.

A mais eloqüente indício é o fato de que, num país onde há trinta anos não se publica um romance, uma novela, uma peça de teatro que valha a pena ler, ninguém dê pela falta de uma coisa outrora tão abundante, tão rica nestas plagas, que era a – como se chamava mesmo? – “literatura”. Digo que essa entidade sumiu porque – creiam – não cesso de procurá-la. Vasculho catálogos de editoras, reviro a internet em busca de sitesliterários, leio dezenas de obras de ficção e poesias que seus autores têm o sadismo de me enviar, e no fim das contas encontrei o quê? Nada. Tudo é monstruosamente bobo, vazio, presunçoso e escrito em língua de orangotangos. No máximo aponta aqui e ali algum talento anêmico, que para vingar precisaria ainda de muita leitura, experiência da vida e uns bons tabefes.

Mas, assim como não vejo nenhuma obra de literatura imaginativa que mereça atenção, muito menos deparo, nas resenhas de jornais e nas revistas “de cultura” que não cessam de aparecer, com alguém que se dê conta do descalabro, do supremo escândalo interectual que é um país de quase duzentos milhões de habitantes, com uma universidade em cada esquina, sem nenhuma literatura superior. Ninguém se mostra assustado, ninguém reclama, ninguém diz um “ai”. Todos parecem sentir que a casa está na mais perfeita ordem, e alguns até são loucos o bastante para acreditar que o grande sinal de saúde cultural do país são eles próprios. Pois não houve até um ministro da Cultura que assegurou estar a nossa produção cultural atravessando um dos seus momentos mais brilhantes, mais criativos? Media, decerto, pelo número de shows de funk.

Estão vendo como, no reino da inteligência, a escassez é abundância?

Mas o pior não é a penúria quantitativa.

Da Independência até os anos 70 do século XX, a história social e psicológica do Brasil aparecia, translúcida, na literatura nacional. Lendo os livros de Machado de Assis, Raul Pompéia, Lima Barreto, Antônio de Alcântara Machado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Marques Rebelo, José Geraldo Vieira, Ciro dos Anjos, Octávio de Faria, Anníbal M. Machado e tantos outros, obtínhamos a imagem vívida da experiência de ser brasileiro, refletida com toda a variedade das suas manifestações regionais e epocais e com toda a complexidade das relações entre alma e História, indivíduo e sociedade.

A partir da década de 80, a literatura brasileira desaparece. A complexa e rica imagem da vida nacional que se via nas obras dos melhores escritores é então substituída por um sistema de estereótipos, vulgares e mecânicos até o desespero, infinitamente repetidos pela TV, pelo jornalismo, pelos livros didáticos e pelos discursos dos políticos.

No mesmo período, o Brasil sofreu mudanças histórico-culturais avassaladoras, que, sem o testemunho da literatura, não podem se integrar no imaginário coletivo nem muito menos tornar-se objeto de reflexão. Foram trinta anos de metamorfoses vividas em estado de sono hipnótico, talvez irrecuperáveis para sempre.

O tom de certeza definitiva com que qualquer bobagem politicamente correta se apresenta hoje como o nec plus ultra da inteligência humana jamais teria se tornado possível sem esse longo período de entorpecimento e de trevas, essa longa noite da inteligência, ao fim da qual estava perdida a simples capacidade de discernir entre o normal e o aberrante, o sensato e o absurdo, a obviedade gritante e o ilogismo impenetrável.

Estupro psicológico estatal

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 24 de julho de 2008

Não existe qualquer epidemia de violência contra os homossexuais neste país, mas, mesmo que houvesse, nenhuma lei contra opiniões religiosas poderia fazer nada para detê-la, pela simples razão de que, fora dos países islâmicos, casos de violência anti-homossexual por motivo de crença religiosa são a raridade das raridades, e no Brasil até agora não se comprovou nenhum. Rigorosamente nenhum.

Em compensação, a lei tornaria automaticamente criminosos e sujeitaria à pena de prisão milhões de brasileiros honestos, cujo único delito é acreditar na Bíblia. Eles poderiam ser presos não só por ler em voz alta versículos tidos como “homofóbicos”, mas por protestar contra qualquer casal gay que, por mera provocação ou genuína falta de autocontrole, se afagasse com a maior impudência dentro de uma igreja, quanto mais numa praça pública.

Os gays, indefesos como todo o restante da população num país que tem cinqüenta mil homicídios por ano, continuariam tão sujeitos quanto agora à truculência de assassinos e estupradores – estes últimos necessariamente homossexuais eles próprios, no caso –, mas estariam protegidíssimos contra o apelo suave do Evangelho que os convoca a mudar de vida.

Alegar que essa lei se destina à proteção da comunidade gay é cinismo; ela se destina, isto sim, à destruição da comunidade cristã, sem nada oferecer aos homossexuais em troca, apenas dando à parcela politizada e anti-religiosa deles a satisfação sadística de alegrar-se com a desgraça alheia. Desgraça tanto mais satisfatória, a seus olhos, quanto mais injusta, arbitrária e sem motivo.

Se algum dia houve no Brasil uma proposta de lei desprovida de qualquer razão de ser além do puro ódio, é essa.

Mas não é somente sobre os cristãos que ela despeja esse ódio. É sobre toda a concepção do Estado democrático, do governo do povo pelo povo. Não há um entre os proponentes dessa lei que o ignore, nem um só que não se regozije com isso. No Estado democrático, o governo é a expressão da vontade popular e, portanto, da cultura reinante. Ele pode elevá-la e aperfeiçoá-la, mas o próprio fundamento da sua existência consiste em respeitá-la e protegê-la. Na nova concepção imposta pela elite globalista iluminada, o Estado é o “agente de transformação social”, a vanguarda da “revolução cultural” incumbida de fazer o povo gostar do que não gosta, aprovar o que não aprova, cultuar o que despreza e desprezar o que cultuava. É o órgão do estupro psicológico permanente, empenhado em chocar, escandalizar e contrariar a alma popular até que esta se renda, vencida pelo cansaço, e passe a aceitar como decreto da Providência, como fatalidade natural inevitável, o que quer que venha da burocracia dominante.

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