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Por que a direita sumiu

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de março de 2012

Em artigo recente (http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,uma-nova-direita–por-que-nao-,839845,0.htm), João Mellão Neto define muito corretamente o espírito do conservadorismo, mas falha em explicar por que a direita se enfraqueceu no Brasil ao ponto de todos os candidatos, nas duas últimas eleições presidenciais, serem de esquerda. Isto aconteceu, diz ele, porque a direita apoiou a ditadura e a ditadura não respeitou os direitos humanos. Esse diagnóstico revela mais sobre a mente que o produziu do que sobre os fatos a que pretende aludir. Mellão, com toda a evidência, aceitou a narrativa histórica dos adversários e argumenta contra eles numa perspectiva que, no fim das contas, continua sendo a deles.

Ninguém entenderá a história do período militar sem estar consciente de que em 1964 não houve um golpe, porém dois: o primeiro removeu do poder um governante odiado por toda a população, que foi às ruas aplaudir entusiasticamente a derrubada do trapalhão esquerdista. O segundo, meses depois, traiu a promessa de restauração democrática imediata e iniciou o longo e deprimente processo de demolição das lideranças políticas conservadoras, substituídas, no poder, por uma elite onipotente de generais e tecnocratas “apolíticos”. A grande ironia das duas décadas de governo militar foi que este, movendo céus e terras para liquidar a esquerda armada, nada fez contra a desarmada, mas antes a cortejou e protegeu, permitindo que ela assumisse o controle de todas as instituições universitárias, culturais e de mídia, fazendo daqueles vinte anos, alegadamente “de chumbo”, uma época de esfuziante prosperidade da indústria das idéias esquerdistas no Brasil.

Vasculhem a história do período e verão que, se o governo perseguia e amaldiçoava a violência guerrilheira, ao mesmo tempo nada fazia para combater o comunismo no plano ideológico, muito menos para ensinar à nação o valor perene dos princípios conservadores, que pouco a pouco foram caindo no total esquecimento até tornar-se como que uma língua estrangeira, desaparecida do cenário público decente já antes de que os líderes esquerdistas mais notórios voltassem do exílio.

À imperdoável omissão dos governos militares no campo da guerra cultural e ideológica somou-se o desprezo da clique oficial pela classe política, onde as grandes lideranças conservadoras foram sendo apagadas, uma a uma, como velas sob um vendaval. Foi durante aquele regime que vozes poderosas do campo conservador, como as de Carlos Lacerda e Adhemar de Barros, foram caladas, enquanto outras, como as de Pedro Aleixo e Paulo Egídio Martins, foram menosprezadas e esquecidas, e outras ainda, como a de Roberto de Abreu Sodré, acabaram se acomodando à mediocridade oficial até perderem toda relevância própria. Tanto foi assim que, quando o governo Geisel deu sua virada à esquerda, adotando uma política nuclear antiamericana, estimulando o mais obsceno “terceiromundismo” na diplomacia e até fornecendo armas, dinheiro e assistência técnica para Fidel Castro invadir Angola, não se ouviu um protesto sequer das lideranças civis. E a única resistência que apareceu, vinda do campo militar por meio do valente general Sylvio Frota, foi logo sufocada sob acusações de “golpismo” e aplausos gerais ao presidente triunfante que estrangulara a “linha dura”. Nas universidades, a direita foi sistematicamente preterida na distribuição de verbas e cargos, que a generosidade insana do governo prodigalizava aos esquerdistas na ilusão de neutralizá-los ou seduzi-los (o processo, de uma indecência sem par, é descrito em http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/QTMFB.pdf pelo estudioso venezuelano Ricardo Vélez Rodriguez, um dos mais abalizados conhecedores da vida universitária no Brasil). Até mesmo no jornalismo, foi ainda durante o período militar que a esquerda assumiu de vez o controle das redações (v. meus artigos a respeito em http://www.olavodecarvalho.org/semana/111124dc.html,http://www.olavodecarvalho.org/semana/111125dc.html e http://www.olavodecarvalho.org/semana/111130dc.html), enquanto porta-vozes fulgurantes do pensamento conservador, como Gustavo Corção, Lenildo Tabosa Pessoa e Nicolas Boer, iam sendo jogados para escanteio sem que ninguém desse pela sua falta. A direita pensante e atuante foi, literalmente, esmagada pela ditadura, que ao mesmo tempo, na esperança idiota de dividir os adversários e ganhar o apoio de uma parte deles, abria as portas e os cofres das instituições de cultura para o ingresso da revolução gramsciana.

Quando terminou a era dos governos militares, em 1988, só quem era ainda conservador no Brasil era o povão mudo, desprovido de canais para fazer valer suas opiniões, enquanto o espaço cultural inteiro – mídia, movimento editorial, universidades, escolas secundárias e primárias, etc. – já era ocupado, gostosamente, pela multidão de tagarelas da esquerda que ainda mandam e desmandam no panorama mental brasileiro. Aos sucessos retumbantes que obteve na economia e no combate às guerrilhas, a ditadura aliou, em triste compensação, uma cegueira ideológica indescritível, que expulsou a direita do cenário público e entregou o espaço inteiro àqueles que até hoje o dominam. Cabe, nesse contexto, lembrar mais uma vez o dito de Hugo Von Hofmannsthal, segundo o qual nada está na política de um país que primeiro não esteja na sua literatura (tomada em sentido amplo de alta cultura). A direita saiu da política nacional, porque, com a complacência e até a ajuda do governo militar, foi primeiro banida da cultura nacional.

Por trás das palavras

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de fevereiro de 2010

Por que os direitistas brasileiros se denominam “liberais” em vez de “conservadores”? A escolha das palavras revela uma diferença específica que, bem examinada, basta para explicar a debilidade e o fracasso da direita nacional.

O termo “conservador” denota a adesão a princípios e valores atemporais que devem ser conservados a despeito de toda mudança histórica, quando mais não seja porque somente neles e por eles a História adquire uma forma inteligível. Por exemplo, a noção de uma ordem divina do cosmos ou a de uma natureza humana universal e permanente. Fora do quadro delimitado por essas noções, a “História da humanidade” dissolve-se numa poeira de processos temporais heterogêneos, descompassados, inconexos, não raro incomunicáveis e mutuamente incompreensíveis. Só resta então aceitar a completa irracionalidade da existência histórica ou, não podendo suportar essa idéia, fabricar uma unidade postiça, baseada na “luta de classes”, na “luta das raças”, na “evolução animal”, na dialética hegeliana, no determinismo geográfico ou em qualquer outro pseudoprincípio, que pode ser obtido seja pela ampliação hiperbólica de algum fenômeno empírico limitado, seja, nos casos mais graves, pela invencionice pura e simples. Uma vez estabelecido esse pseudoprincípio, pode-se deduzir dele um “sentido” unilinear da História e, deste, um programa político que se torna automaticamente obrigatório para todos os seres humanos, atirando-se à guilhotina ou aos campos de concentração os discordes e recalcitrantes. Tal é precisamente o trabalho da mentalidade revolucionária. Se as revoluções invariavelmente resultam na implantação de regimes totalitários, não é nunca por algum desvio de seus belos ideais de origem, mas pelo simples fato de que, transfigurada em ação política, a certeza de conhecer o sentido total da História não pode, por definição, admitir que alguém permaneça alheio ao dever de realizá-lo. A mera indiferença política basta então para fazer do cidadão um inimigo da espécie humana.

O conservadorismo, em contrapartida, funda-se na admissão de que a ordem divina não pode nem ser conhecida na sua totalidade nem muito menos realizada sobre a Terra. A eternidade jamais pode ser espremida dentro da ordem temporal, tal como o infinito não cabe dentro do finito. Por isso, em toda política genuinamente conservadora que se observa ao longo dos tempos, a ordem divina nunca é um princípio positivo a ser “realizado”, mas apenas um limite que não deve ser transposto, um critério negativo de controle e moderação das presunções humanas. O conservadorismo é, em essência, um freio às ambições prometéicas do movimento revolucionário e, mais genericamente, de todos os governantes. A modéstia e a prudência, a rejeição de toda mudança radical que não possa ser revertida em caso de necessidade, a recusa de elaborar grandes projetos de futuro que impliquem um controle do processo histórico, a concentração nos problemas mais imediatos e nas iniciativas de curto prazo, tais são os caracteres permanentes da política conservadora. Encarnações eminentes do pensamento conservador ao longo dos tempos são Lao-Tsé, Aristóteles, os profetas hebraicos, Cícero, Sto. Tomás, Richard Hooker, Shakespeare, Goethe, Disraeli, Jacob Burckhardt, Winston Churchill e Ronald Reagan. Malgrado as diferenças de épocas e mentalidades, todos exibem um sacrossanto horror à hübrisrevolucionária, um sentimento agudo de que em política nada é melhor que a moderação e a prudência.

Que não haja nem possa haver um conservadorismo perfeito, é algo que decorre da definição mesma do conservadorismo. Quando o amor à ordem divina se inflama ao ponto de fazer esquecer a impossibilidade humana de realizá-la no mundo histórico, ou quando a resistência a um projeto revolucionário específico se cristaliza na ambição de invertê-lo materialmente, elementos do discurso conservador são absorvidos e integrados num discurso revolucionário substitutivo que, travestido de conservadorismo, pode seduzir parcelas imensas da população, inclusive as mais tradicionalistas e reacionárias, usando-as como bucha de canhão em aventuras políticas suicidas.

Revolução é, em essência, todo projeto de mudança social e política profunda a ser realizado mediante a concentração de poder. O conservadorismo expressa a resistência natural, geral e espontânea da alma humana a deixar-se usar como instrumento a serviço de promessas irrealizáveis sob o guiamento de líderes pretensamente iluminados. Quando a contra-revolução, em vez de contentar-se em ser apenas uma medida de emergência contra uma situação de fato, se enche de sonhos de glória e cria seu próprio projeto de mudança social profunda, ela própria se torna um movimento revolucionário. Eis por que o conservadorismo é a mais forte linha de resistência contra todas as revoluções “de esquerda” e “de direita”. Os exemplos de Dolfuss e Churchill na década de 30 bastam para ilustrar o que estou dizendo.

O liberalismo, em contraste, é a resistência a uma modalidade específica de projeto revolucionário, o socialismo. Ambos nasceram no século XIX e se definem um ao outro como irmãos inimigos. Ao socialismo a proposta liberal opõe a defesa da economia de mercado e das liberdades políticas no quadro do moderno Estado laico. A todos os componentes do movimento revolucionário que escapem da definição formal de socialismo, que portanto não ataquem diretamente esses dois pilares da ideologia liberal, o liberalismo não pode oferecer nenhuma oposição eficaz. Nada, no discurso liberal, oferece fundamento sólido para a rejeição do abortismo, do feminismo radical, da liberação de drogas, do gayzismo, do multiculturalismo, da guerra assimétrica, da abolição das soberanias nacionais ou da destruição de todos os pilares culturais e religiosos milenares em que se assenta a possibilidade de existência do próprio liberalismo. Quando essas bandeiras se tornam as principais armas de propaganda do movimento socialista, só resta ao liberalismo opor-lhes uma resistência muito fraca, fundada em argumentos de legalidade formal, ou então aderir a elas, na esperança louca de parasitar a força retórica do discurso socialista para fins de imediatismo eleitoral. Nesta última hipótese, cada miúdo triunfo eleitoral dos liberais torna-se mais uma vitória ideológica de seus adversários.

Nada a conservar

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 10 de julho de 2005

No Globo do último dia 8, o articulista Luíz Paulo Horta, que personifica a medida máxima de conservadorismo admitida naquele jornal depois da supressão abrupta mas politicamente compreensível da minha coluna semanal, reconhece a “orgia de ganância” em que chafurda o partido governante, e, constatando que a reação geral a esse fenômeno tomou a forma de “um esforço quase patético para preservar a figura do presidente”, dedica o restante do seu artigo a intensificar esse esforço e a torná-lo ainda mais patético, tentando salvar, junto com a imagem do sr. Luís Inácio, a do seu partido inteiro.

A tática que usa para isso é o clássico expediente de criar uma falsa impressão de equivalência. A diferença específica entre a corrupção petista e suas antecessoras é que estas eram obra de maus políticos infiltrados em partidos com os quais não tinham nenhum compromisso sério e dos quais se serviam apenas como meios de enriquecimento pessoal. Já o PT é, de alto a baixo, uma máquina de corrupção, onde roubar, chantagear, mentir e ludibriar são obrigações partidárias cumpridas com o orgulho e a consciência limpa com que, no tempo do terrorismo, os mesmos personagens de agora explodiam gente inocente e, diante da reação governamental, se faziam (e se fazem até hoje) de vítimas inermes da perseguição fascista. Essa diferença é o fato político e moral mais relevante das últimas décadas, e é ela que o sr. Horta dilui ao insinuar que os crimes do PT não fazem senão nivelá-lo aos demais partidos, como se cada um destes estivesse também metido numa trama continental com os narcotraficantes das Farc, os seqüestradores do MIR e os torturadores cubanos. O equivalentismo, diante de uma desproporção tão majestosa, torna-se um ato de desinformação e propaganda ainda mais pérfido do que a apologia franca e direta dos delinqüentes.

Baseado nesse completo falseamento das dimensões, o sr. Horta está livre para atribuir antecipadamente aos criminosos do presente os méritos de um futuro hipotético, insinuando que o único defeito do PT é o apego a estratégias demodées e que, com pequenas alterações modernizantes, sem alterar em nada a essência partidária, essa entidade pode reconquistar um lugar honroso na vida política brasileira.

Em matéria de gerenciamento de danos, Duda Mendonça não faria melhor. Apenas, duvido que o sr. Horta tenha alguma consciência do que fez. Ele foi um daqueles que, durante quinze anos, ajudaram a ocultar por atos, palavras e omissões a existência do Foro de São Paulo e a as macabras alianças continentais do lulismo. Suprimidos esses fatos, é claro, o PT tornava-se uma entidade tão inofensiva como o Partido Trabalhista inglês, pronta a discutir educadamente com os conservadores pequenas divergências econômico-administrativas, sem nenhum risco maior para as duas partes senão a perda de algumas cadeiras na eleição seguinte.

Menciono o sr. Horta apenas como um exemplo casual. Tanto ele quanto centenas de outros articulistas brasileiros nominalmente antipetistas acostumaram-se de tal modo à prática compulsiva do jornalismo eufemístico ao falar do PT, que conseguiram anestesiar não somente a si próprios mas à população inteira, tornando o Brasil uma nação incapaz de discernir a gravidade da sua situação e pronta a aceitar o pior sem nenhuma reação significativa.

Se o PT não lhes pagou para fazer isso, estamos diante da maior onda de injustiças salariais da história do jornalismo brasileiro.

Quando pessoas como essas representam na mídia a única perspectiva conservadora que resta num país, é porque esse país já nada mais tem que valha a pena conservar .

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Não espanta que, no mesmo artigo, o sr. Horta, com a responsabilidade intelectual de um menino de dois anos, compare Arnaldo Jabor a James Joyce. Quando se perde o senso das proporções na política, é impossível conservá-lo na literatura.

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