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A liberdade como parteira da tirania

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de abril de 2007

No livro esplêndido que publicou sob o título “Roads to Modernity: The British, French and American Enlightenments” (New York, Vintage Books, 2005), Gertrude Himmelfarb mostrou que o iluminismo inglês, tão influente sobre a Revolução Americana, não foi um movimento simples e unilinear, mas um conflito insanável entre duas correntes de pensamento, uma nascida com John Locke (1632-1704), Bernard Mandeville (1670-1733) e Jeremy Bentham (1748-1832), a outra com Anthony Ashley Cooper, conde de Shaftesbury (1671-1713), Joseph Butler, bispo de Durham (1692-1752), Francis Hutcheson (1694-1746), Thomas Reid (1710-1796), George Berkeley (1685-1753), Adam Smith (1723-1790) e Edmund Burke (1729-1797). O filósofo David Hume (1711-1776) e o historiador Edward Gibbon (1737-1794) ficaram em cima do muro. A primeira das duas correntes teve repercussão mais espetacular no mundo em geral, mas a segunda foi mais determinante na prática política anglo-americana. A primeira, através do materialismo do século XIX, desembocaria em Ayn Rand; a segunda nos pais intelectuais do atual movimento conservador americano, Russel Kirk e Irving Kristol, este casado com a própria Himmelfarb.

A diferença entre as duas filosofias começa numa questão de teoria do conhecimento e desemboca em concepções opostas e irredutíveis da sociedade política. Vale a pena estudar o caso, pois essa divergência – e não a mera oposição entre intervencionismo estatal e livre mercado – marca hoje algumas das mais decisivas fronteiras entre as forças que disputam o poder nos EUA e no mundo.

Segundo Locke, a mente humana, ao nascer, é uma folha em branco. Todos os conteúdos lhe vêm de fora, através das impressões sensíveis. Sendo assim, as idéias morais não podem aparecer nela senão como resultado da acumulação de estímulos sensoriais positivos e negativos que se condensam em preferências e repulsas através das sensações de prazer e dor.

Para Shaftesbury, Hutcheson, Reid e sua prole intelectual, as sensações de prazer e dor, por si, não têm nenhum significado moral. Por mais que se somassem, não ensinariam ninguém a distinguir entre o bem e o mal, só entre o interesse próprio e o alheio. O introjeção das regras da moralidade seria impossível se o ser humano não tivesse um órgão específico para apreendê-las. Há um instinto do bem e do mal, que pode ser aperfeiçoado (ou pervertido) pelo ensino e prática mas é natural e inato em todo ser humano. Os filósofos dessa escola variam muito ao conceituar esse instinto, mas são unânimes em proclamar que ele está por trás da universal tendência humana para a vida em sociedade, a qual seria impossível se baseada só no interesse próprio e sem a presença de sentimentos básicos como a benevolência, a caridade e o amor ao próximo. O ser humano, em suma, não pode ser reduzido a um bichinho colecionador de impressões: a capacidade para um tipo de conhecimento que transcende a mera natureza corporal tem de estar presente nele desde o início, ou o salto da sensorialidade para a moralidade é inviável.

Um ponto que Himmelfarb não menciona, mas que é importante para a compreensão do assunto, é o seguinte: embora nenhuma influência escolástica seja visível nas obras desses filósofos, e embora eles não fossem religiosos de maneira alguma (com exceção de Butler e Berkeley), não é possível deixar de perceber a perfeita concordância entre a sua noção do instinto moral e o conceito escolástico da sindérese, a capacidade inata do ser humano para apreender os princípios da moralidade.

Dessa divergência radical quanto à origem do conhecimento seguem-se duas concepções opostas da vida em sociedade. O pensamento da escola lockeana encontrou sua expressão mais popular na “Fábula das Abelhas” de Bernard de Mandeville, narrativa satírica publicada originalmente em 1705 como “A Colméia Resmungona, ou os Patifes Tornados Honestos” e em 1714 na versão definitiva com o seu título atual e o subtítulo “Vícios Privados, Benefícios Públicos”. O sentido da historieta é que, cada indivíduo cuidando apenas do seu interesse próprio, tudo se ajeita espontaneamente para o benefício de todos; ao passo que o esforço para ser bom e virtuoso coloca o homem em oposição ao interesse geral e leva à destruição da sociedade. O tema reapareceu mil vezes na literatura, no cinema e no teatro. Uma de suas versões mais célebres é o filme “Nazarín” (1958) do espanhol Luís Buñuel, um anarquista professo. É a história de um monge piedoso que faz o melhor que pode para praticar as virtudes evangélicas e só consegue, involuntariamente, trazer dano a todos em torno. Não é preciso dizer que tanto Mandeville quanto Buñuel deformam caricaturalmente a noção das virtudes, isolando as ativas das cognitivas, especialmente a “prudência” (capacidade racional de distinguir o bem verdadeiro do aparente). Os volumosos romances de Ayn Rand não são senão a transposição afirmativa da sátira de Mandeville, com seus heróis egoístas gerando mais benefícios para a coletividade do que todos os sacrifícios dos virtuosos.

A “Fábula” suscitou uma série infindável de reações hostis dos shaftesburianos (até Gibbon, um anticristão notório, a achou ofensiva demais), mas não se pode negar que ela os ajudou a definir sua própria concepção da sociedade em oposição à de Locke e Mandeville. Enquanto esta enfatizava a liberdade, julgando que só a livre concorrência dos interesses individuais produziria o bem coletivo, eles entendiam que a liberdade não era um princípio autofundante, mas o simples resultado das virtudes básicas que fundamentavam a vida em sociedade. O homem era levado a respeitar a liberdade do próximo pela sua benevolência, generosidade e tolerância, e não pelo mero interesse egoísta de preservar a sua própria liberdade. Esvaziada dessas virtudes, a liberdade se arruína a si mesma e se transmuta em prepotência caótica.

Tanto a tradição política britânica quanto a Revolução Americana imbuíram-se profundamente desse ensinamento, enquanto Locke exercia mais influência na França, sobretudo através de Voltaire. A idéia da virtude como base da organização política e fundamento teórico-prático da liberdade acaba vinculando as concepções da moderna democracia anglo-americana, mas principalmente a americana, a uma tradição de pensamento político e filosófico que remonta a Platão e Aristóteles e que está em perfeita harmonia com as doutrinas dos escolásticos. Ao desembarcar na América pela primeira vez em 1920, para dedicar-se ao estudo do constitucionalismo americano, Eric Voegelin notou que ali a filosofia de Platão e Aristóteles ainda era uma presença viva nas discussões políticas e jurídicas, enquanto o pensamento franco-alemão da época tinha se afastado infinitamente desse legado. Mais recentemente, a continuidade do pensamento político tradicional nas doutrinas dos Founding Fathers e na vida política americana em geral foi demonstrada exaustivamente por Ellis Sandoz em duas obras notáveis: “A Government of Laws” (Louisiana State University Press, 1990) e “Republicanism, Religion and the Soul of America” (Columbia and London, University of Missouri Press, 2006). Para essa tradição, a política é uma subdivisão da ética assim como a conduta do homem em sociedade é uma extensão das virtudes morais básicas.

Quem leu meus últimos artigos há de recordar que a liberdade é um mero preceito formal, sem conteúdo identificável a não ser mediante a enumeração dos seus limites. As virtudes, ao contrário, são princípios substantivos, que contêm na sua própria definição o desenho explícito dos limites de cada qual, bem como o perfil de suas relações com as demais virtudes. A liberdade baseada nas virtudes e emoldurada por elas não necessita de uma definição precisa para tornar-se numa prática concreta de todos os dias. Erigida ela própria em princípio, como aconteceu na França, o resultado é a tirania nos “amigos da liberdade” contra seus supostos “inimigos”. A diferença entre uma filosofia política fundada no conhecimento substantivo da natureza humana e uma baseada em preceitos formais imantados de atrativos retóricos já se mostra aí com toda imensidão das suas conseqüências práticas. Quando o conde de Shaftesbury disse pela primeira vez que o amável e moderado John Locke era ainda mais perigoso do que o cínico “linha dura” Thomas Hobbes, todos acharam que era um exagero. Quase um século depois, os acontecimentos na França mostraram que a liberdade abstrata podia mesmo ser ainda mais tirânica do que a monarquia absoluta.

Pouco importa, é claro, que cada participante do debate público se nomeie a si próprio como “liberal” ou “conservador”; o que interessa é saber a posição de cada um no confronto entre o substantivismo tradicional e o formalismo moderno. Do ponto de vista da economia, a diferença é mínima, pois ambos defendem a economia de mercado. A diferença aparece é em tudo o mais. Ora, desde que a influência de Lukács, da Escola de Franckfurt e de Antônio Gramsci adquiriu predomínio na formulação estratégica do movimento esquerdista internacional, foi justamente esse “tudo o mais” que veio para o centro da luta política, enquanto a socialização dos meios de produção era deixada para o dia de são nunca. Isso aconteceu, porque, de um lado, o fracasso econômico do socialismo se tornou demasiado evidente para que mesmo os esquerdistas mais fanáticos pudessem negá-lo; e, de outro lado, o sucesso cultural do esquerdismo era garantido pela própria expansão capitalista, que, abrindo a mais e mais pessoas a oportunidade de acesso ao ensino superior e à participação na política, fazia crescer ilimitadamente a classe revolucionária por excelência, isto é, a “intelectualidade”, no sentido elástico e não-qualitativo que Antônio Gramsci dá ao termo. É justamente essa imensa transformação da esquerda mundial que, hoje, obriga os seus opositores a tomar posição antes em função da guerra cultural do que das questões econômicas. E aí o formalismo liberal, por mais que se proclame inimigo do comunismo, se torna um instrumento da estratégia esquerdista através do apoio que presta a slogans e bandeiras que lhe pareçam “ampliar a democracia” por meio do aumento das liberdades e direitos concedidos a cada novo grupo militante e reivindicante. Como essa expansão dos direitos se faz através de novas legislações, e a aplicação delas exige a criação de novos órgãos jurídico-administrativos especializados, o resultado é a intervenção cada vez maior do Estado na vida dos cidadãos. Uma vez mais, a liberdade vazia é a parteira da ditadura.

Esse processo, coexistindo às vezes com a retração do intervencionismo estatal em economia, pode levar a algumas situações aparentemente paradoxais. A administração Reagan, por exemplo, restaurou o sentido dos valores tradicionais na política e acertou um golpe mortal no coração do movimento comunista. Para fazê-lo, no entanto, aumentou barbaramente o orçamento estatal, que sua plataforma “classic liberal” prometia diminuir. Já o governo Clinton, que foi recordista de privatizações, campeão do “enxugamento do Estado”, impôs ao mesmo tempo, no campo jurídico, moral e cultural, inúmeras novidades “politicamente corretas” que ampliaram formidavelmente a margem de intervenção do Estado na vida privada (escrevi sobre isso em “O Jardim das Aflições” no instante mesmo em que a coisa estava acontecendo). Incentivando o comércio com a China, sob o pretexto de que a liberalização da economia traria automaticamente a da política (típico raciocínio liberal-formalista), Clinton ajudou ainda a consolidar a ditadura dos generais de Pequim, aos quais fornecia, ao mesmo tempo, tecnologia atômica suficiente para varrer da face da terra a população americana.

O pensamento formalista, não podendo afirmar valores substantivos, apega-se ao ícone da “liberdade”, mas, sem o amparo nas virtudes, é a liberdade de mercado que se torna o modelo de todas as demais liberdades. Daí a tendência a sacrificar em prol do mercado os próprios valores que o possibilitam, na esperança louca de que ele volte a criá-los por mágica. Deste ponto de vista, Clinton estava muito mais próximo dos ideais liberais do que Reagan.

Há também um segundo aspecto que torna ainda mais inconciliável a divergência entre aqueles que chamei “conservadores” e “liberais” (reconhecendo a ampla margem de malentendidos que essa terminologia pode evocar). Ao abordá-lo, vou parar longe das análises de Himmelfarb.

Embora os iluministas da linhagem de Shaftesbury não fossem nada religiosos, todos eles reconheciam a importância da religião para a preservação dos sentimentos morais básicos. Isso já nos dá um indício de que a divergência acima mencionada não diz respeito à “religião” no sentido dogmático-institucional (como desejariam fazer crer os materialistas, seja liberais, seja de esquerda), mas a algo de bem mais vital e profundo.

A crença num mundo transcendente à experiência usual humana e num princípio de justiça divina imperando sobre o cosmos é um dos dados mais universais da história das culturas e sociedades. Do homem de Neandertal até hoje, não encontramos um único exemplo de “sociedade laica”, isto é, construída inteiramente à margem dessa crença. Um fenômeno tão generalizado não pode ser explicado em função de estereótipos pejorativos como “a necessidade de crer”, “os interesses da classe sacerdotal”, etc. Sem algum fundamento na própria experiência, a confiança no que está para além da experiência seria um elemento tão despropositado e psicótico que todas as sociedades inspiradas nela – isto é, todas as sociedades tout court –, estariam condenadas ao caos e ao fracasso em prazo brevíssimo.

Descontando experiências espirituais mais sutis e complexas, existe uma que se repete em todas as épocas e culturas e que basta, por si, para mostrar a razoabilidade da crença no regulamento transcendente da existência. São as narrativas apresentadas por pessoas que estiveram clinicamente mortas durante horas ou dias, e que retornam ao mundo dos vivos trazendo relatos notavelmente similares entre si: todos esses retornados do além tiveram um confronto com algum tipo de instância julgadora, na qual suas vidas eram pesadas e medidas, absolvidas ou condenadas. Um exemplo clássico é o mito de Er, narrado na “República” por Platão, que o obteve, parece, de um círculo pitagórico. Diante da pira mortuária, o pai de Er chora a perda do filho morto em batalha, quando de repente o soldado se ergue das chamas e narra o seu encontro, no além, com a justiça cósmica.

Em todas as culturas aparecem histórias similares, e elas são naturalmente um poderoso suporte racional à crença na justiça transcendente. Mesmo em época recente, livros como o de Morris Rawlings, “Beyond Death’s Door” (New York, Thomas Nelson, 1978) e o de Raymond Moody, “Life After Life” (New York, Bantam, 1979). deram o que pensar a todos os que aí notaram a concordância das centenas de relatos de pacientes clinicamente mortos que voltaram à vida. O segundo desses livros chegou a vender treze milhões de exemplares, mostrando que o interesse pelo conhecimento da “vida além da vida” é uma constante do espírito humano. Não há nada de irracional em dar fé a esses relatos, porque os moribundos não têm interesses a defender e entre as testemunhas ouvidas por esses e outros autores não havia um só reconhecidamente desequilibrado. A objeção que os materialistas fazem é que os fatos aí narrados não são experiências repetíveis à vontade em laboratório. São testemunhos individuais, inacessíveis ao controle da comunidade científica. Essa objeção não invalida as narrativas, é claro, mas as impede de receber o aval do establishment acadêmico. Ao mesmo tempo, no entanto, os testemunhos individuais continuam válidos em História e jurisprudência, assim como na orientação das vidas pessoais e nas decisões políticas. Os antigos consideravam que um conhecimento era tanto mais valioso e digno de respeito quanto mais versasse sobre assuntos vitais e fosse, por isso mesmo, mais difícil de obter. O formalismo moderno, que subscreve as precauções metodológicas da ciência materialista, acredita, ao contrário, que um conhecimento é tanto mais precioso e investido de autoridade quanto mais fácil de conferir e mais acessível, portanto, ao controle da coletividade. É um conceito, evidentemente, mercadológico e retórico do conhecimento. A humanidade precisou decair muito para que verdades essenciais entrevistas ainda que nebulosamente por homens sábios, ou por testemunhas privilegiadas, fossem preteridas em favor de detalhes de segunda ordem comprovados por uma multidão de medíocres e imbecis. A confirmação pública é um luxo quase nunca acessível àquele que busca sinceramente o conhecimento. E fazer dela a fonte da certeza é simplesmente trocar o desejo de conhecimento pelo simples medo de errar, que é quase sempre, como dizia Hegel, puro medo de conhecer.

Muitos dos valores e princípios que orientaram a humanidade durante milênios e que, sem nenhum pressuposto religioso, ainda eram sustentados com tanta veemência pelo iluminismo inglês – incorporando-se, através dele, na tradição política americana –, foram obtidos por pessoas especiais em circunstâncias especiais. Não estão à mercê de qualquer grupo de estudantes entusiasmados com demonstrações de laboratório. Constituem um patrimônio de sutilezas tão difíceis de apreender quanto a forma interna das obras de arte superiores ou quanto as virtudes ocultas na alma de um santo discreto.

A verdadeira divergência entre o pensamento tradicional e o formalismo moderno é que o primeiro incorpora esse tesouro de sutilezas, mesmo sabendo que a prova delas depende de qualidades humanas raras exercidas em circunstâncias ainda mais raras, ao passo que o segundo exige a prosternação geral ante a autoridade de um “coletivo” acadêmico constituído da unanimidade dos cientistas médios. É por essa via que o formalismo liberal ajuda mais profundamente a militância esquerdista a assumir o poder no mundo. A autoridade do establishment científico é hoje um dos instrumentos mais eficazes de que a burocracia estatal lança mão para planejar e controlar a conduta das multidões. Estas não sabem, é claro, o quanto essa autoridade é limitada e pouco racional, já que baseada numa concepção protocolar e diminutiva da razão, assim como na credulidade cega das massas. Falarei mais sobre isso em artigos vindouros, mas desde já posso enunciar uma conclusão: aqueles que são capazes de uma análise crítica mais aprofundada do assunto têm a obrigação de entender que não há nada de científico em negar um relato só porque os fatos que ele transmite não podem ser repetidos, já que isto resultaria em impugnar todo conhecimento que temos da história humana. Eles têm, por isso, o dever estrito de compreender a tragédia do formalismo liberal, que ergue bem alto a cabeça temível da autoridade no instante mesmo em que promete afogá-la e dissolvê-la na “liberdade de mercado”.

É da cultura que estou falando

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial) , 28 de março de 2007

As reações negativas aos meus recentes artigos sobre o liberalismo seguem o mesmo padrão de automatismo mental que neles mencionei. Como o debate político brasileiro não vai além dos temas econômicos e, nestes, como que em obediência à lei da gravidade, volta sempre à contraposição usual de Estado e mercado, o que quer que se diga contra o liberalismo é sempre interpretado como uma apologia ao menos implícita do intervencionismo estatal.

Nesses termos foram respondidos os meus artigos, o que é o mesmo que dizer: não foram respondidos.

Minha objeção central ao liberalismo é sua falta de princípios, seu apego exclusivo a preceitos formais – liberdade e propriedade – que ele toma ingenuamente como se fossem princípios. Preceitos formais são sentenças vazias cujo conteúdo é determinado a posteriori pela sua regulamentação prática. A liberdade de cada um nada significa sem a enumeração clara dos limites impostos à liberdade dos outros. A propriedade, por sua vez, é algo de tão vago e indefinido que não se sabe nem mesmo se um feto em gestação é propriedade de sua mãe ou um cidadão proprietário do seu corpo.

Princípios têm de ser claros e auto-explicativos. Eles têm de determinar por mera dedução lógica a sua própria regulamentação prática em vez de ser determinados por ela. “Não matarás” já contém no significado mesmo da palavra “matar” a distinção entre homicídio doloso, homicídio culposo, guerra e legítima defesa. Estas definições são obtidas por mera análise lógica do conceito principal.

Uma filosofia política constituída de preceitos formais é baseada na ilusão positivista de poder orientar a sociedade tão somente com base em conveniências de ordem funcional prática, fugindo ao confronto com as questões mais gerais e substantivas (“metafísicas”, no linguajar positivista) sobre a natureza humana, o lugar do homem no cosmos, o sentido da vida etc.

O ideal liberal é fazer da sociedade uma máquina neutra que cada consumidor use segundo suas preferências e valores autodeterminados. Isso é impossível. Com exceção dos gênios e profetas inspirados, os indivíduos não inventam seus valores nem os recebem do céu: fazem suas escolhas num leque de opções oferecido pela sociedade. À filosofia política incumbe não só montar a máquina, mas discutir e selecionar os valores a ser oferecidos e negados. Esses valores têm de ser baseados em princípios substantivos, e não em formas vazias, a mera estrutura da máquina. De que serve uma máquina de sanduíches sem nenhum sanduíche dentro? Se o fabricante da máquina se recusa a decidir o que ela vai vender, a única coisa que lhe sobra para pôr à venda é a máquina mesma. A pura defesa da economia de mercado, separada de valores substantivos, faz com que o único valor restante seja o próprio mercado. Mas o mercado é um conjunto de formas vazias. Ele está aberto a todos os valores: bons e maus. Não pode criá-los nem determiná-los. Também não cabe ao Estado fazer isso. O Estado-guru é o ideal fascista e comunista, uma ilusão macabra. Criar e selecionar valores é a função da cultura, da qual faz parte a filosofia política. A cultura, se não tem iniciativa própria, independente do mercado e do Estado, não é cultura de maneira alguma: é apenas propaganda. Fazer abstração dos princípios e valores, deixando-os por conta do mercado, é o mesmo que entregá-los à mercê do Estado, que não tem a menor dificuldade de tornar-se, quando quer, o maior comprador e vendedor de tudo. O liberalismo é uma filosofia política suicida, que alimenta o monstro do intervencionismo pelos mesmos meios com que acredita liquidá-lo. Só uma cultura poderosa pode limitar o Estado, mas para isso ela tem de determinar o leque de escolhas no mercado em vez de ser determinada por ela.

Quando o liberal desiste da utopia da máquina neutra e começa a pensar em valores e princípios, ele pode continuar a chamar-se liberal, se quiser. Mas já é, em substância, um conservador.

Revolução gaúcha

Olavo de Carvalho


 O Globo , 16 de fevereiro de 2002

A imaginação popular concebe as revoluções somente pelo lado espetaculoso, pela explosão insurrecional. Mas revolução é qualquer reviravolta profunda da estrutura de poder, seja operada por meio violento e ostensivo, seja introduzida aos poucos, de maneira quase imperceptível e aparentemente dentro da lei, sem que a população possa compreender ou controlar o curso dos acontecimentos. Duas das principais revoluções do século XX foram exatamente assim: a revolução alemã de Adolf Hitler e a tomada do poder pelos comunistas na Tchecoslováquia. Em ambos os casos, a violência só veio depois, quando era tarde para tentar detê-la. Mesmo nas revoluções cruentas, a brutalidade em toda a sua plenitude só se desencadeia após a tomada do poder. O que nunca houve nem haverá no mundo será uma revolução sem violência — nem insurrecional, no começo, nem repressiva, depois. Revolução “pacífica” quer dizer apenas uma revolução que só se torna violenta depois de vitoriosa.

No começo das revoluções “pacíficas”, o apego às crenças rotineiras, a falta de informação correta e o simples medo de ter medo impedem o povo de perceber o avanço rumo ao desenlace irreversível. Ao observador de fora, porém, que note a escalada das mudanças sem um olhar amortecido pela acomodação progressiva, não escapará o sentido trágico de acontecimentos que, no seu lento gradualismo, terão parecido à população local apenas irritações epidérmicas e passageiras.

É isso, precisamente, o que vejo a cada nova visita que faço a Porto Alegre. O Rio Grande está em revolução. Dentro de muito pouco tempo, estará consolidada no poder uma nova classe dominante, emergida da militância revolucionária; uma classe de arrivistas ambiciosos, ferozes e imbuídos da crença cega na sua própria impecância essencial, que os autorizará a todas as crueldades sob o adorno de belas palavras. Aos derrotados, desprovidos de suas propriedades e de seus meios de defesa, não restará outro caminho senão o exílio, a prisão ou a existência apagada e humilhante de ressentidos impotentes.

Mas faz parte da natureza mesma das revoluções “pacíficas” manter a população amortecida e sonsa mediante a alternância dos choques com a distribuição periódica de tranqüilizantes e soporíferos. A cada nova penetração da lâmina revolucionária no corpo da sociedade, segue-se uma injeção de entorpecente que transmuta a percepção em dúvida, a dúvida em subterfúgio, o subterfúgio em esquecimento e o esquecimento em tranqüilidade. Quando todo mundo está calmo, a faca entra mais um pouco.

No presente estado de coisas, as mudanças já me parecem praticamente irreversíveis, mesmo no caso de uma derrota do PT nas próximas eleições estaduais. Não há ingenuidade maior do que confundir o processo revolucionário com uma simples disputa eleitoral. A oposição gaúcha, valorosa e esforçada, está profundamente afetada dessa ingenuidade, apegando-se à esperança desesperada de que reste, nos governantes revolucionários, um fundo de lealdade democrática. Esse fundo não existe. O que existe é apenas a velha articulação leninista de meios legais e ilegais, pacíficos e violentos, calculada para desnortear o adversário e envolvê-lo em ilusões suicidas. Daí os resultados já alcançados.

Em primeiro lugar, a mudança psicológica. A educação, o imaginário, os valores e a linguagem diária da sociedade gaúcha já estão totalmente impregnados da nova mentalidade: quem quer que não creia possuir uma solução alternativa mágica e instantânea para os males que legitimam a revolução se sente inibido de opor-se frontalmente à onda revolucionária; e aqueles que crêem ter uma alternativa ficam cada vez mais afoitos de expressá-la na linguagem dos revolucionários, pondo lenha na fogueira. Os clichês esquerdistas — “exclusão”, “desigualdade”, “discriminação” — já se tornaram de uso geral e obrigatório. Quando um liberal ou conservador os emprega, julgando-se muito esperto por apropriar-se da retórica do adversário, não tem a mínima consciência de quanto essa assimilação vocabular denota sua fraqueza, seu esvaziamento ideológico e sua morte próxima.

Em segundo lugar, a inversão das legitimidades. À medida que a invasão de propriedades é consagrada como um direito, a propriedade é que se torna um ilícito. Desde que o STJ deu posse ao invasor, alegando que o proprietário anterior não dera provas cabais da produtividade da terra e omitindo-se de exigir prova idêntica aos novos ocupantes, torna-se claro que só a propriedade adquirida legalmente é contestável: a legitimidade da posse por invasão é automática e a priori. É claro que, logo após uma mutação tão drástica, seus promotores deixarão passar um tempo, para fins de anestesia, antes de generalizar sua aplicação a toda e qualquer propriedade. Mesmo então, continuarão procedendo de maneira lenta e gradativa, para evitar choques de percurso. Mas só um povo muito entorpecido ou muito ignorante da dinâmica das revoluções pode alimentar a ilusão de que alguém comece uma reviravolta tão profunda sem o intuito e os meios de universalizá-la. Uma revolução pode parar para descansar, mas nunca voltar atrás —- e, a cada nova retomada do movimento, há uma subida de patamar.

Em terceiro lugar, a mutação no controle dos meios de violência física. Um elemento essencial do Estado, ensinava Max Weber, é o monopólio do uso legítimo e, portanto, da distribuição desses meios. Deixá-los como estão ou redistribuí-los é o que distingue uma simples mudança de governo e uma revolução. Um governante constitucional mexe no orçamento, nos planos administrativos, nos projetos de obras públicas etc., mas não toca na distribuição dos meios de violência legítima. Exército, polícias, guardas particulares e simples cidadãos armados conservam seus direitos, seus deveres, seus papéis e suas armas. Já um governante revolucionário tem como objetivo prioritário justamente a mudança radical desse quadro: quando novos grupos passam a dispor dos instrumentos de violência legítima, enquanto seus antigos detentores são desarmados ou paralisados, está consumada a revolução. O desmantelamento consciente da brigada militar e sua substituição por milícias ideologicamente doutrinadas — processos delicados e complexos demais para ser descritos aqui em detalhes — já estão em fase avançada de execução no Rio Grande. Desde que existe o movimento comunista, há um século e meio, a função do revolucionário que os acasos da política coloquem em funções de governo num Estado não comunista é invariavelmente a mesma: desmantelar, debilitar ou neutralizar as seções do poder estatal que não estejam sob o comando direto da sua facção, enquanto seus colaboradores de fora do governo vão ao mesmo tempo formando os quadros de um “Estado virtual” aptos a substituir, gradativamente ou de súbito, as funções desativadas. O que o governo do Rio Grande está fazendo é isso, e nada mais que isso.

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