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O comunismo dos imbecis

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de maio de 2015          

Definir o comunismo como “estatização dos meios de produção”, como o fazem o sr. Marco Antonio Villa e seus admiradores, que por incrível que pareça existem, é descrevê-lo pelo sistema econômico ideal que lhe serve de bandeira e slogan, e não pela sua realidade de movimento político e intelectual com um século e meio de uma história tremendamente complexa.
É explicar fatos históricos pela definição de uma palavra no dicionário, procedimento no qual nenhuma pessoa com mais de doze anos de idade tem o direito de confiar.
Procedimento que se revela ainda mais pueril e inaceitável quando a definição é usada como premissa de um raciocínio (ou raciossímio, diria o Reinaldo Azevedo) segundo o qual um partido que não prega ou pratica ostensivamente a estatização dos meios de produção não pode ser comunista de maneira alguma.
Pois, ao longo de toda a sua história, os grandes partidos comunistas do mundo, a começar pelo da própria URSS, preferiram quase sempre deixar essa meta hipotética e longínqua num discreto segundo plano, ou omiti-la completamente, concentrando-se em objetivos concretos mais imediatos que pudessem compartilhar com outros partidos e forças, ampliando a base das suas alianças possíveis.
Característica, nesse sentido, foi a política do Front Popular, que na década de 30 angariou apoio mundial para a URSS na base de um discurso “antifascista”, onde tudo soava como se nenhuma incompatibilidade tivesse existido jamais entre o regime comunista e os interesses da burguesia democrática dos países ocidentais.
O velho Partido Comunista Brasileiro de Luís Carlos Prestes sempre falou muito menos em estatizar a economia do que em “defender os interesses nacionais” e a “burguesia nacional”, supostamente ameaçados pelo capital estrangeiro.
No período da luta contra a ditadura militar, então, não se ouvia um só comunista, fora do meio estudantil enragé ao qual pertencia o sr. Villa, pregando estatização do que quer que fosse: só clamavam por “democracia”.
Mao Dzedong, no início da carreira, falou tanto em patriotismo antijaponês e foi tão discreto no que diz respeito ao fim do livre mercado, que superou Chiang Kai-Shek nas simpatias do governo americano, ante o qual fez fama de “reformador agrário cristão”.
Mesmo quando se fala em estatização, na maior parte dos casos ela é sempre parcial e aplicada de tal modo que não fira indiscriminadamente os interesses da burguesia e o direito a toda propriedade privada dos meios de produção, mas pareça mesmo favorecê-los a título de “aliança entre Estado e iniciativa privada”. Mesmo no Chile de Allende foi assim.
Sendo, malgrado todas as suas mutações e ambiguidades, um movimento organizado de escala mundial, o comunismo sempre comportou uma variedade de subestratégias locais diferenciadas, as quais, não raro, se pareciam tanto com um comunismo de dicionário quanto as intrigas diplomáticas do Vaticano se parecem com a salvação da alma.
A famosa “solidariedade comunista internacional” consiste precisamente numa bem articulada divisão de trabalho, de modo que as ações dos partidos comunistas locais contribuam para o sucesso mundial do movimento pelas vias mais diversas e às vezes até incompatíveis em aparência.
Nos anos 30 do século passado, Stálin ordenou que o Partido Comunista Americano se abstivesse de tentar organizar a militância proletária e, em vez disso, se concentrasse em ganhar o apoio de bilionários, de intelectuais célebres e do beautiful people da mídia e do show business, na base de apelos ao “pacifismo”, aos “direitos humanos” e à “democracia”, de modo que o discurso comunista se tornasse praticamente indistinguível dos ideais formadores do sistema americano.
Nessa perspectiva, arregimentar militantes e intoxicá-los de doutrina marxista era muito menos importante do que seduzir possíveis “companheiros de viagem”, pessoas que, sem ser comunistas nem mesmo em imaginação, pudessem, nos momentos decisivos, colaborar com as iniciativas do Partido e com os interesses da URSS, usando, justamente, da sua boa fama de insuspeitas de comunismo.
Foi por isso que o Partido, na América, sempre foi uma organização minúscula, dotada de um poder de influência desproporcional com o seu tamanho.
O objetivo dessa estratégia era não só criar em torno do comunismo uma aura de humanismo inofensivo, mas também fazer do capitalismo americano a fonte de dinheiro indispensável à sustentação de um movimento político sempre deficitário quase por definição.
A operação teve sucesso não só em desviar para a URSS e para o PCUSA quantias vultuosas provenientes das grandes fortunas privadas, mas em transformar o próprio governo americano no principal mantenedor e patrono do regime soviético, que sem isso não teria sobrevivido além dos anos 40.
Quanto a este segundo ponto, é evidente que simples idiotas úteis e agentes de influência não poderiam ter obtido tão esplêndido resultado; eles serviram apenas para dar suporte moral e político à ação de agentes de interferência, profissionais de inteligência altamente treinados, cuja infiltração maciça nos altos postos do governo de Washington, como se sabe hoje, foi muito além do que poderia ter calculado, na época, o infeliz senador Joe McCarthy.
Por todos esses exemplos vê-se como é imbecil esperar que um partido saia pregando a “estatização dos meios de produção” para só então notar que ele é comunista.
O próprio PT já deixou clara, para quem deseje vê-la, a sua quádrupla função e tarefa no movimento comunista internacional:
1. No plano diplomático, alinhar o Brasil com o grande bloco antiocidental encabeçado pela Rússia e pela China. O BRICS não é nada mais que uma extensão embelezada da Organização de Cooperação de Shanghai, que já expliquei aqui em 2006 (leia aqui).
2. Na esfera de ação continental, salvar e fortalecer o movimento comunista, como bem o reconheceram as Farc, mediante a criação do Foro de São Paulo e de um sistema de proteção que permita a transfiguração da narcoguerrilha, ameaçada de extinção no campo militar, em possante e hegemônica força política e econômica.
3. Por meio de empréstimos ilegais e da corrupção, usar os recursos do capitalismo brasileiro para salvar os regimes comunistas economicamente moribundos, como os de Cuba e de Angola.
4. Na política interna, eliminar as oposições, aparelhar o Estado e estabelecer de maneira lenta, discreta e anestésica um poder hegemônico indestrutível.
Quem tem toda essa complexa e portentosa missão a cumprir há de ser louco de sair por aí pregando “estatização dos meios de produção” para assustar e pôr em fuga a burguesia local, sem cuja colaboração o cumprimento da tarefa se torna impossível?
Na perspectiva do sr. Marco Antonio Villa, nada disso é atividade comunista, já que falta “estatizar os meios de produção”.
A desproporção entre a complexidade do fenômeno comunista e a estreiteza mental de um autor de livrinhos compostos de recortes de jornal já é patética por si, sem que ele precise ainda enfatizá-la afetando sua superioridade de portador de um diploma ante os que, sem diploma nenhum, conhecem a matéria porque a estudaram.
Como eu mesmo me incluo entre estes últimos, sendo tão carente de estudos formais quanto Machado de Assis, João Ribeiro, Capistrano de Abreu, Luís da Câmara Cascudo, Manuel Bomfim, José Veríssimo e outros construtores maiores da cultura brasileira, deve parecer mesmo revoltante ao sr. Villa que eu tenha acumulado mais honrarias acadêmicas, prêmios literários, citações em trabalhos universitários e aplausos de grandes intelectuais de três continentes do que ele, com seu canudinho da PUC e seu currículo mirim, poderá angariar em trinta reencarnações, caso existam.
Entre os anos 40-70 do século passado, a idolatria dos diplomas, tão característica da Primeira República e tão bem satirizada nos romances de Lima Barreto, parecia uma doença infantil finalmente superada numa época em que a cultura brasileira ia vencendo o subdesenvolvimento e igualando-se às de países mais ricos.
Um quarto de século de “Nova República”, e sobretudo doze anos de PT no poder, trouxeram-na de volta com força total, numa espécie de compensação ritual que, sentindo vagamente no ar a ausência da alta cultura desfeita em pó, busca apegar-se supersticiosamente aos seus símbolos convencionais, como o viúvo inconsolável que dorme agarrado a um chumaço de cabelos da falecida, para trazê-la de volta.
Não é de todo coincidência que entre os sacerdotes desse culto caquético se destacassem justamente alguns daqueles que minutos antes perguntavam “Diploma para quê? ” e buscavam persuadir a nação de que a fé democrática trazia como corolário a obrigação de eleger um semianalfabeto presidente da República.
Uma vez que o Partido domina as universidades, é indispensável que elas monopolizem a atividade cultural, marginalizando e achincalhando toda criação ou pensamento independente.
Se o sr. Villa colabora gentilmente com esse empreendimento, não há nisso nada de estranho, já que ele se empenha também em acobertar as atividades do Foro de São Paulo, reduzindo todo combate antipetista a uma “luta contra a corrupção” imune ao pecado mortal de anticomunismo.
Qualquer que seja o caso, num país em que cinquenta por cento dos formandos das universidades são comprovadamente analfabetos funcionais, todo portador de um diploma deveria pensar duas vezes antes de exibi-lo como prova de competência, para não falar de superioridade.

O cão, o lobo e o rato

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de maio de 2015          

Giambattista Vico ensinava que nada conhecemos tão bem quanto aquilo que nós mesmos inventamos. O sr. Marco Antonio Villa ilustra essa regra com perfeição.
Após declarar, em artigo do Globo, que, “na política é indispensável, ao enfrentar um adversário, conhecê-lo” – abertura triunfal que realiza às mil maravilhas o ideal literário do  Conselheiro Acácio -, ele inventa um PT à imagem e semelhança da sua própria estreiteza mental e o enfrenta até mesmo com certa bravura.
No seu entender, o PT nada tem de comunista. É apenas “um mix original que associa pitadas de caudilhismo, com resquícios da ideologia socialista no discurso — não na prática —, um partido centralizado e a velha desfaçatez tupiniquim no trato da coisa pública, tão brasileira como a caipirinha que seu líder tanto aprecia”.
Desprovido de todo aparato marxista e de toda conexão com o movimento comunista mundial e suas tradições, reduzido a um fenômeno folclórico local sem nenhuma retaguarda estratégica, o partido governante está pronto para ser demolido na base de puras notícias de TV, sem o menor combate ideológico ou sondagem das suas conexões internacionais.
Foi nisso que se especializou o sr. Villa, e ele desempenha essa tarefa pelo menos tão bem quanto o faria qualquer aprendiz de jornalismo.
Dos que temem que na sua atitude haja um excesso de presunção otimista ele se livra com meia dúzia de petelecos, rotulando-os de “exaltados e néscios”, proferidores de “puras e cristalinas bobagens”, culpados de “absoluto desconhecimento político e histórico”, de restaurar “o rancoroso discurso da Guerra Fria”, de usar “conceituações primárias que não dão conta do objeto” e de retirar do baú da História o anticomunismo primário”, isso quando alguns deles não chega mesmo a ser, como ele disse na TV, um “astrólogo fascista embusteiro metido a líder político”.
Tendo assim alcançado um recorde jornalístico de insultos por centímetro de coluna, ele se sente preparado para provar cientificamente a ausência de comunismo no PT. E eis como ele se desincumbe da tarefa:
“O petismo impôs seu ‘projeto criminoso de poder’… sem que tivesse necessidade de tomar pela força o Estado. O processo clássico das revoluções socialistas do século XX não ocorreu. O ‘assalto ao céu’  preconizado por Marx.. foi transmutado numa operação paulatina de controle da máquina estatal no sentido mais amplo, o atrelamento da máquina sindical, dos movimentos sociais, dos artistas, intelectuais, jornalistas, funcionando como uma correia de transmissão do petismo.”
Quem quer que tenha estudado o assunto, ao menos um pouquinho, entende, logo ao primeiro exame, que isso que o sr. Villa acaba de descrever é a aplicação fiel, milimetricamente exata, da estratégia de Antonio Gramsci para a conquista do poder pelos comunistas.
Nada de tomar o Estado pela força, nada de “assalto aos céus”. Em vez disso, a lenta e quase imperceptível “ocupação de espaços”, ou, nos termos do sr. Villa, “o atrelamento da máquina sindical, dos movimentos sociais, dos artistas, intelectuais, jornalistas”.
Faz quase seis décadas que o movimento comunista internacional em peso adotou essa estratégia, por ser ela a única compatível com a política de “coexistência pacífica” entre a URSS e as potências ocidentais, preconizada por Nikita Kruschev no discurso que proferiu em 1956 no XX Congresso do Partido Comunista soviético.
Ou seja: a prova cabal de que o PT não é um partido comunista é que ele faz exatamente o que todos os partidos comunistas do Ocidente fazem há sessenta anos.
Não é de tapar a boca de qualquer astrólogo fascista embusteiro?
O sr. Villa mostra-nos um bicho de pele grossa, orelhas grandes, seis toneladas de peso e duas presas de marfim, mas se lhe dizemos que é um elefante ele sobe nas tamanquinhas e diz que são “conceituações primárias”.
Como exemplo do que deveria ser uma conceituação mais sofisticada, ele reconhece que o PT é leninista, mas só “na estrutura, não na ação”.
Precisamente: leninista na estrutura, gramsciano na ação. Como o próprio Gramsci recomendava. Mas pensar que isso é comunismo é “pura e cristalina bobagem”, não é mesmo? Especialmente para quem, nada sabendo de Gramsci e muito menos das longas discussões entre intelectuais gramscianos que prepararam e preparam cada decisão do PT, descreve o gramscismo sem saber que é gramscismo e jura, de mãos postas, que o PT jamais teve outro estrategista senão Macunaíma, nem outra inspiração senão a caipirinha.
“Como falar em marxismo se Lula sequer leu uma página de Marx?”, pergunta o sr. Villa. Bem, no tempo em que eu andava com os comunistas só vi dois deles lendo Marx. O terceiro era eu. Os outros liam exemplares de A Voz Operária e as resoluções do Comitê Central. O próprio Rui Falcão mal conhecia o Manifesto Comunista.
Mas isso é só uma curiosidade. O fato é que o sr. Lula não leu talvez uma só página de Marx, mas o sr. Frei Betto leu muitas, além de um bocado de Gramsci, e há décadas exerce as funções de cérebro do ex-presidente. Ou o sr. Frei Betto, coautor da Constituição cubana, co-fundador do Foro de São Paulo e mentor reconhecido de um gratíssimo sr. Lula, não é ele próprio comunista?
No entanto, se o argumento do sr. Villa não vale para o caso do sr. Lula, vale para o do próprio sr. Villa. Ele definitivamente não é comunista, já que não leu Marx. Se tivesse lido, não teria escrito esta lindeza:
“Quando Lula chegou ao Palácio do Planalto, o partido só tinha de socialista o vermelho da bandeira e a estrela. A prática governamental foi de defesa e incentivo do capitalismo. Em momento algum se falou em socialização dos meios de produção.”
Pois Marx ensinava, precisamente, que a socialização dos meios de produção não seria possível antes de totalmente desenvolvidas as forças produtivas do capitalismo.
O processo, dizia ele, poderia levar décadas ou até séculos. Para um partido comunista que chegue ao poder por via democrática, numa nação capitalista, o único caminho possível para o socialismo, sobretudo desde 1956, é desenvolver as forças produtivas do capitalismo ao mesmo tempo que as atrela ao Estado por meio de impostos e regulamentos e vai aos poucos – invisivelmente, dizia Antonio Gramsci – conquistando a hegemonia e neutralizando as oposições.
É precisamente o que o PT faz. Já me expliquei um pouco a esse respeito um ano atrás, neste mesmo jornal (leia aqui).
Mas nem o próprio Lênin, que subiu ao poder nas ondas de uma revolução armada e tinha todos os instrumentos para governar pelo terror, saiu logo falando em estatizar. Fez como o PT: deu um incentivo ao capitalismo enquanto montava o sistema de poder hegemônico, tomando gradativamente dos burgueses os meios de ação política enquanto os mantinha anestesiados por meio de vantagens financeiras imediatas.
Foi isso o que ele resumiu na máxima: “A burguesia nos venderá a corda com que a enforcaremos”. Nem mesmo em teoria Lênin pensou em estatização imediata. Ao contrário. Dizia ele: “O meio para esmagar a burguesia é moê-la entre as pedras da inflação e do imposto.”
Se o PT faz exatamente isso, é a prova cabal, segundo o sr. Villa, de que ele não é um partido comunista de maneira alguma.
O sr. Villa fala ainda contra o conceito de “bolivarianismo” quando aplicado ao PT. Nisso ele tem razão, mas não pelos motivos que alega. Ele investe contra o termo “bolivarianismo”, porque, no seu entender, Hugo Chávez só escolheu Simon Bolívar como símbolo da sua revolução por achar que “a crise do socialismo real tinha chegado ao seu ponto máximo e não havia mais nenhuma condição de ter como referência o velho marxismo-leninismo”.
Isso é absolutamente falso.
Em primeiro lugar, adotar a máscara nacionalista, populista ou coisa que o valha não foi, como sugere o sr. Villa, um arranjo de última hora, uma alternativa de emergência adotada no ponto extremo de uma crise do marxismo, mas é um dos hábitos mais velhos e constantes do movimento comunista, que desde os anos 30 do século passado veio se camuflando como “progressismo”, “terceiromundismo”, “movimento dos não-alinhados”, “antifascismo”, “anticolonialismo”, “teologia da libertação”, “filosofia da libertação”, “pan-africanismo” etc. etc. etc.
Segundo: O próprio sr. Villa qualifica o bolivarianismo de “fachada”, mas parece ignorar que toda fachada é fachada de alguma coisa. Como em 2010 Hugo Chávez, reeditando a célebre confissão tardia de Fidel Castro, admitiu publicamente sua condição de marxista, já não é preciso nenhum esforço divinatório para saber o que se escondia por trás do “bolivarianismo”.
Terceiro: No Brasil o termo “bolivarianismo” tem servido sobretudo como subterfúgio eufemístico para evitar a palavra proibida, “comunismo”, que o sr. Villa quer proibir ainda mais.
Aliás esse é um dos fenômenos linguísticos mais lindos de todos os tempos, uma conspiração de duas forças antagônicas que colaboram para silenciar o óbvio.
Os comunistas não querem que ninguém fale de comunismo porque, na estratégia de Antonio Gramsci, a revolução comunista só pode prosperar sob o manto da mais confortável invisibilidade (exemplo, os dezesseis anos de silêncio geral sobre o Foro de São Paulo).
Os anticomunistas também não querem que se fale de comunismo porque precisam que todo mundo acredite que saíram vencedores na Guerra Fria, sepultando o comunismo de uma vez para sempre.
O sr. Villa alista-se decididamente nesta segunda facção:
“Considerar o PT um partido comunista revela absoluto desconhecimento político e histórico… Não passa de conceder sentido histórico ao rançoso discurso da Guerra Fria. O Muro de Berlim caiu em 1989 mas tem gente em Pindorama que ainda não recebeu a notícia.”
Talvez o sr. Villa, que não chegou a 1956, tenha saltado direto para 1989, mas é seguro que não chegou a 2000, quando o filósofo Jean-François Revel, num livro de sucesso mundial (La Grande Parade, Paris, Plon, 2000), fez a pergunta decisiva: Como tinha sido possível que o movimento comunista, desmoralizado na URSS, em vez de desaparecer por completo, crescesse até proporções gigantescas na década seguinte?
As explicações eram muitas: adoção da estratégia gramsciana, troca da antiga estrutura hierárquica por uma organização mais flexível em “redes”, fuga generalizada ante a responsabilidade pelas atrocidades do regime comunista etc. etc.
Mas essas respostas não vêm ao caso, já que o sr. Villa não percebeu nem a pergunta. Não se vende remédio a quem não sabe que está doente.
Que o sr. Villa está doente, não se discute. A estreiteza do seu campo de visão é decididamente anormal. É um tipo de glaucoma intelectual. Só que o doente de glaucoma fisico se queixa quando o seu ângulo visual diminui, ao passo que o sr. Villa se gaba e se pavoneia.
“Estou pouco me lixando para o Foro de São Paulo”, declarou ele na TV tempos atrás, mostrando que, do alto da sua infinita superioridade, uma coisinha de nada como a maior organização política que já existiu no continente não merecia o dispêndio de uma gota sequer dos seus prodigiosos dons intelectuais.
Nós, os primários, os embusteiros, os fascistas, admitimos que nada podemos compreender do PT se o encaramos como um fenômeno estritamente local, fazendo abstração tanto das suas raízes (que remontam à criação da “teologia da libertação” por Nikita Kruschev; leia aqui), quanto das verbas estrangeiras que o alimentaram por décadas ou dos compromissos e conexões internacionais que determinam cada passo na consecução da sua estratégia.
Mas essas coisas são grandes demais para o campo visual do sr. Villa. Ele simplesmente as suprime e, fingindo desprezo ao que ignora, despeja insultos sobre quem as conhece.
Não desejo mal ao sr. Villa. O PT minúsculo que ele enxerga é uma parte do PT real, e ele até que faz o possível para trazer algum dano a esse pedacinho.
O cão de pastor que em defesa do redil se atraca com o lobo não há de achar ruim se um rato, pisoteado por acaso na confusão da luta, inventa de roer o dedão do invasor.

Você estar comunisto?

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 5 de dezembro de 2014

O falecido Jean Mellé, fundador e diretor do “Notícias Populares”, que se tornaria um clássico do jornalismo de escândalo, era um refugiado romeno que tinha sólidas razões para odiar o comunismo. Grande e musculoso, de vez em quando agarrava um de seus subordinados pela goela e, com um olhar feroz de grão-inquisidor, perguntava: “Você estar comunisto?”. Se a resposta fosse “Não”, ele se dava por satisfeito.
Em noventa por cento dos casos, o interrogado era um membro do Partido e saía rindo do patrão cujo poder ameaçador se neutralizava a si mesmo com uma dose patética de ingenuidade.
Na verdade, Mellé não era nada ingênuo. Conhecia de trás para diante a ambiguidade escorregadia da conduta dos comunistas. Não tinha a menor ilusão de que andassem com foice e martelo estampados na testa ou declarassem de bom grado sua identidade ideológica. Contentava-se com a resposta sumária somente porque não dominava a língua nacional o suficiente para encompridar a discussão. Queria apenas infundir um pouco de medo no coração dos comunas, e conseguia. Eles vingavam-se com risadinhas forçadas que espalhavam o mito do adversário simplório, grandão bobo que até crianças poderiam enganar. Mentiam, e mentiam sobre a mentira: ocultavam sua filiação partidária e fingiam que tinham conseguido ludibriar “a direita”. A satisfação com que se entregavam a esse empreendimento acabava por se impregnar nas suas mentes, transfigurando o fingimento ocasional numa sintomatologia histérica completa e o autoengano num estilo de vida permanente.
Decorrido meio século, o movimento comunista ainda tem no jornalismo brasileiro um exército de colaboradores fiéis cuja tática persuasiva habitual e praticamente única consiste em inventar uma versão ridiculamente simplória do comunismo, atribuí-la aos direitistas e, demolindo-a com duas ou três piadinhas sem graça, cantar vitória, ficando assim provado que o comunismo não existe, que é apenas uma fantasia paranoica de direitistas raivosos. É o bom e velho recurso erístico do “homem de palha”, que nessas pessoas já se tornou uma segunda natureza.
Alguns dos praticantes dessa mágica besta são homens tarimbados, treinados em Havana e Praga. A prova mais patente do poder que adquiriram nas redações é a naturalidade com que estágios em centros de propaganda e desinformação na Cortina de Ferro entram nos seus currículos como provas de “experiência jornalística”, como se a técnica de mentir fosse a mesmíssima coisa que a de relatar os fatos. É óbvio que, ao menos nos velhos tempos, muitas dessas gentis criaturas eram agentes pagos de serviços secretos comunistas. Seus nomes, com atraso de meio século, vão sendo pouco a pouco revelados pelos documentos arquivados em Praga no Instituto para o Estudo dos Regimes Totalitários (ver aqui e aqui).
Outros, mais jovens, não precisaram viajar para adquirir as manhas da prosa comunista. Aprenderam-nas por aqui mesmo, em faculdades de jornalismo que os cavalheiros mencionados no parágrafo anterior transformaram em centros de adestramento da militância pelo menos desde a década de 70 do século passado.
O primeiro sinal de que você é inteligente é a sua capacidade de perceber que um outro é mais inteligente. Mutatis mutandis, o primeiro sinal de burrice é supor, sempre, que o outro é mais burro do que é. Nisso consiste o artifício de retórica erística a que me referi: O sujeito define o comunismo da maneira mais simplória e mecânica e, argumentando que esse comunismo não existe (como de fato não pode existir), conclui que todo anticomunismo é uma doença mental, fonte de violência e “crimes de ódio”.
A definição usada nesse truque é a seguinte: o comunismo é a estatização completa, repentina e ostensiva dos meios de produção e de toda propriedade particular. O governante pega o microfone e anuncia: “Olhe aqui, gente, eu sou comunista. Agora quem manda nesta porcaria é o comunismo. Passem aí as suas propriedades ou vão para o Gulag.”Para tipos como o sr. Jô Soares e outras cabeças iluminadas que guiam o pensamento nacional, o fato de que isso nunca tenha acontecido é a prova cabal de que o perigo comunista não passa de uma invencionice criada para justificar um golpe de Estado ou coisa pior.
Em contraste com essa desconversa vagabunda, vejamos o que é o comunismo de verdade, na sua teoria e na sua prática no mundo.
Karl Marx ensinava que a estatização dos meios de produção – etapa inicial da construção do socialismo – seria um processo complexo que deveria se estender por muitas décadas ou séculos, e que não poderia nem mesmo começar antes que os meios capitalistas de produção alcançassem o seu máximo desenvolvimento possível.
A última coisa que um governante comunista deve fazer – sobretudo se chegou ao poder pelas vias democráticas usuais e sem derramamento de sangue — é portanto sair estatizando tudo, desmantelando a classe capitalista. Ao contrário: deve ajudar os capitalistas a ganhar o máximo de dinheiro que possam, ao mesmo tempo que os destitui dos seus meios de ação política e ideológica. A função do capitalista nessa fase do socialismo é fazer dinheiro e não dar palpite, tornando-se tanto mais próspero quanto mais politicamente inócuo e subserviente à elite governante comunista. Seduzidos pelos ganhos fáceis, os capitalistas vão transferindo aos comunistas todo o seu poder ideológico, de modo que, em prazo relativamente breve, quatro coisas acontecem:
(1) Em pleno regime de prosperidade capitalista, só há ideias comunistas em circulação. De maneira mais ostensiva ou mais camuflada, a propaganda comunista se torna o único discurso vigente na sociedade. As ideias concorrentes desaparecem ao ponto de se tornarem impensáveis. Subsistem, na melhor das hipóteses, como vagos mitos de outras épocas. Um restinho de “ideologia capitalista” permanece no ar, reduzido à apologia da eficiência econômica, que os comunistas seriam os últimos a negar.
(2) A riqueza deixa de ser um meio de ação política independente e se reduz a instrumento da propaganda comunista. Cada capitalista gasta rios de dinheiro elegendo comunistas e financiando o ódio ao capitalismo.
(3) Ter uma imensa conta bancária dá menos poder do que uma carteirinha do Partido ou um cargo público qualquer. O poder político-ideológico é transferido da burguesia para a elite partidária sem que a propriedade capitalista sofra qualquer arranhão visível.
(4) Os comunistas, por seu lado, podem tanto se gabar de ser os dominadores absolutos da situação como continuar a se fazer de vítimas indefesas da burguesia. Passam do discurso ameaçador às lágrimas de autocomiseração com a maior facilidade, e a incoerência mesma da sua atitude serve para desnortear ainda mais o adversário.
Nessa etapa, não há guerra econômica. Não se trata de tomar as propriedades dos burgueses, mas de destituí-los de seus meios de autodefesa ideológica.
Esse é o programa que o governo do PT vem cumprindo à risca, esse é o esquema comunista real e genuíno. Ele não é um homem de palha, muito menos é uma ameaça: é a realidade em que vivemos.

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