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Os desajustados

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 24 de março de 2015

        

Que o advento do capitalismo colocou a economia no centro e no topo da existência é algo que ninguém pode negar, e é óbvio que a esse tipo de vida só se amoldam com algum conforto interior os entusiastas do dinheiro e os conformistas mais medíocres e sonsos.
Todos os outros, por mais gratos ao progresso técnico e ao conforto material, sentem que no mundo capitalista algo de muito essencial e precioso lhes foi roubado: não adianta você dispor de todos os meios se a vida não tem outra finalidade senão produzir mais meios.
Se o capitalismo obteve mais sucesso nos EUA do que em qualquer outro lugar foi apenas porque aí, desde o início, o esforço de produzir e lucrar veio associado à ética cristã da ajuda ao próximo e ao sonho heroico da conquista do território – dois objetivos de vida mais do que suficientes para animar o espírito de um povo.
O capitalismo puro, reduzido ao esquematismo de uma fórmula econômica, tal como se viu nos romances de Balzac e nas análises de Karl Marx que eles inspiraram, jamais existiu nos EUA até o fim da II Guerra.
O que existiu foi um capitalismo vivificado e embelezado pela religião cristã e pelo espírito de aventura. Tão logo o primeiro desses fatores começou a debilitar-se no cenário cultural, e o segundo perdeu todo sentido no território já integralmente dominado, o capitalismo americano deixou de ser um ideal para se tornar uma máquina de auto-reprodução que prescinde de qualquer outra justificativa além da própria capacidade de reproduzir-se e crescer ilimitadamente.
David Riesman, no clássico The Lonely Crowd (1950), assinala que, a partir desse momento, um novo tipo de personalidade-padrão passou a predominar na sociedade americana em substituição ao homem devoto da era colonial e ao self made man dos tempos heróicos: o homenzinho trêmulo e obediente, perfeitamente ajustado ao mecanismo do qual espera proteção e segurança – o Organization Man (1956), como o chamou William H. Whyte Jr. em outro livro clássico.
Não espanta que desde então a burocracia estatal interferisse cada vez mais na economia e até na vida pessoal dos cidadãos, descaracterizando o capitalismo americano e transformando-o cada vez mais num tipo incipiente de socialismo, onde os interesses do Estado convergem com o das grandes corporações no sentido de realizar, por via burocrática, o império da organização econômica como único padrão e critério de julgamento, a que todos os valores religiosos, morais e culturais devem se submeter.
Na mesma medida, uma ética coletivista passa a predominar sobre o ideal da responsabilidade individual, e a crítica cultural de esquerda ao capitalismo, forçando sob esse pretexto a redução de tudo às exigências da economia que ela mesma condena, se torna uma profecia autorrealizável.
Nos EUA, essa situação construiu-se sobre os escombros da tradição cristã e do espírito aventureiro. Nos países onde não encontrou semelhantes fatores de resistência, esse resultado se obteve de maneira muito mais rápida e direta, em muitos deles com o agravante do subdesenvolvimento, onde o misto de capitalismo incipiente, ineficiência e permanente exasperação socialista reduz a vida a uma “luta contra a pobreza”, que é a versão favelada da luta pela prosperidade.
Seja nesses países, seja no capitalismo americano esvaziado de seus valores culturais, onde quer que a economia subjugue dessa maneira as outras dimensões da vida social, o resultado é aquele tipo de existência sem sentido, no qual só se sentem à vontade, de um lado, os mais materialistas, que regem o espetáculo e, de outro lado, os mais burrinhos, incapazes de aspirar a qualquer coisa mais alta que uma sobrevivência protegida.
É aí que começam a brotar, em número cada vez maior, os desajustados, os revoltados, os outsiders.
Há basicamente três tipos de outsiders. Para abreviar, vou chamá-los de “o fracassado”, “o gênio” e “o militante”.
O primeiro é o desajustado em sentido estrito, incapaz de jogar o jogo e até de assimilar as regras. Por mais que tentem ajudá-lo, fracassa nos estudos, no trabalho e na vida social, caindo logo para a loucura, o vício, o crime. Em muitos países – o Brasil, por exemplo – esse tipo representa mais de dez por cento da população.
O segundo compreende muito bem as regras e sabe usá-las, mas prefere jogar o seu próprio jogo. Buscando no interior da sua alma a raiz do espírito que vivifica e fortalece, ele pode enfrentar no início o isolamento e a rejeição, mas acaba sempre obrigando a sociedade a aceitá-lo como ele é, e não raro a render-lhe homenagem, mesmo a contragosto.
Gênios, sobretudo literários, existiram antes do capitalismo, é claro, mas não eram outsiders. Passaram a sê-lo no tempo de Baudelaire e Flaubert, ou, nos EUA, uns poucos a partir da I Guerra e em massa a partir da II.
O terceiro é um misto, feito de versões diluídas e atenuadas dos outros dois. Tem a fraqueza do primeiro, sem o seu derrotismo, e a ambição do segundo, sem a sua força.
Não compreende a sociedade, mas não aceita que ela o esmague. Junta-se portanto a outros milhares iguais a ele, buscando no apoio do grupo as forças que o gênio encontra em si próprio. Incapaz de transformar-se, jura que vai transformar o mundo.
O número de correligionários é o fator decisivo na vida dos militantes. Quando em minoria, reúnem-se para compensar o isolamento grupal com a reiteração histérica do discurso crítico, que lhes infunde um sentimento forçado de superioridade.
Quando se tornam maioria dominante, esse sentimento se transmuta em critério de normalidade, impondo-se à sociedade inteira e marginalizando como doentes ou criminosos aqueles que ainda permanecem normais no sentido antigo.
A pletora de gênios literários que floresceu no mundo desde o século XIX conferiu ao outsider um prestígio quase sacral, que dos gênios se estendeu por osmose aos loucos e aos militantes, como se a doença de uns e a auto-hipnose grupal dos outros fossem formas de genialidade.
As modalidades de existência mais capengas que existem tornaram-se modelos de perfeição humana.
***
Talvez o sinal mais patente de que a militância revolucionária é uma forma inferior e mórbida de existência é a absoluta impossibilidade que um escritor revolucionário tem de enxergar como seres humanos normais, sem deformações sádicas ou grotescas, os que não compartilham das suas crenças.
A literatura mundial está repleta de personagens revolucionários tratados com simpatia e compreensão por escritores conservadores e reacionários, como Balzac, Dostoiévski, Bernanos, Joseph Conrad ou o nosso Octávio de Faria.
Um reacionário que não seja mau ou ridículo é algo que simplesmente inexiste na literatura comunista. Isso mostra, da maneira mais patente, que a visão do mundo revolucionária é uma fantasia histérica, em que a percepção direta do ser humano, tal como ele aparece na vida real, é sufocada sob o peso do estereótipo ideológico.

O ovo e o pinto

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 3 de agosto de 2014

          

Meu artigo anterior suscitou uma pergunta interessante na área de comentários: se há tanta gente nas altas esferas colaborando com o comunismo, como é que ele ainda não dominou o mundo?

A primeira e mais óbvia resposta é que “o comunismo” como regime, como sistema de propriedade, é uma coisa, e o “movimento comunista” enquanto rede de organizações é outra. O primeiro é totalmente inviável, mas por isso mesmo o segundo pode crescer indefinidamente sem jamais ser obrigado a realizá-lo, limitando-se, em vez disso, a colher os lucros do que vai roubando, usurpando, prostituindo e destruindo pelo caminho.

São duas faixas de realidade completamente distintas, que se mesclam numa confusão desnorteante sob a denominação de “comunismo”.

Uma analogia tornará as coisas mais claras. Nenhum ser humano pode levar uma vida razoável com base numa loucura, mas, por isso mesmo, nada o impede de ficar cada vez mais louco: ele se estrepa, mas a loucura progride. A força da loucura consiste precisamente em furtar-se ao teste de realidade. Os comunistas não podem realizar a economia comunista. Se têm uma imensa facilidade em arrebanhar pessoas para que lutem por esse fim irrealizável, é precisamente porque ele é irrealizável, o que é o mesmo que dizer: inacessível a toda avaliação objetiva de resultados.

Jamais existirá uma economia comunista da qual seus criadores digam: “Eis aqui o comunismo realizado. Podem julgar-nos e dizer se cumprimos ou não as nossas promessas.” É da natureza mais íntima do ideal comunista ser uma promessa indefinidamente autoadiável, imune, por isso, a todo julgamento humano. Seu prestígio quase religioso vem exatamente disso: o comunismo traz o Juízo Final do céu para a Terra, mas também sem data marcada.

Daí o aparente paradoxo de um movimento que, quanto mais cresce e mais poderoso se torna, mais se afasta dos seus fins proclamados. A esse paradoxo acrescenta-se um segundo: quanto mais se afasta desses fins, mais o movimento está livre para alegar que foi traído e que tem direito a uma nova oportunidade, com meios mais “puros”. Mas o paradoxo dos paradoxos reside numa faixa ainda mais profunda.

Se alguém diz que vai fazer o impossível, com certeza não fará nada ou fará outra coisa. Se fizer, poderá ao mesmo tempo dar a essa coisa o nome daquilo que pretendia e alegar que ela ainda não é, ou que não é de maneira alguma, aquilo que pretendia. Daí a ambiguidade permanente do discurso comunista, que pode sempre se alardear um movimento poderoso destinado a uma vitória inevitável, e ao mesmo tempo minimizar ou negar a sua própria existência, jurando que ela não passa de uma “teoria da conspiração”, de uma invencionice de lacaios do capital.

É alucinante, mas é o que acontece todos os dias. Definitivamente, a mente comunista não funciona segundo os cânones da psicologia usual, mas segue uma lógica própria, onde se misturam, em doses indistinguíveis, a habilidade dialética, o autoengano histérico e a mendacidade psicopática.

Por isso mesmo é que o crescimento vertiginoso do movimento comunista acompanha, “pari passu”, não a decadência do capitalismo, mas a escalada do seu sucesso. O comunismo como regime, como sistema econômico, não existe nem existirá nunca. O comunismo só pode existir como movimento político que vive de parasitar o capitalismo e, por isso mesmo, cresce com ele.

Mas, por mais que sobreviva e se fortaleça, o corpo parasitado não sai ileso da parasitagem: limitado cada vez mais à função de fornecedor de recursos e pretextos para o parasita, ele vai perdendo todos os valores morais, religiosos e culturais que originalmente o inspiraram e reduzindo-se à mecanicidade do puro jogo econômico, cada vez mais fácil de criticar, enquanto o parasita se adorna de todo o prestígio da moral e da cultura.

O modus operandi dessa parasitagem é duplo: de um lado, as economias comunistas só sobrevivem graças à ajuda capitalista vinda do exterior. De outro, em cada nação, o crescimento da economia capitalista alimenta cada vez mais a cultura comunista.

Na mesma medida em que a mais absoluta inviabilidade impede a construção da economia comunista, o comunismo militante alcança vitória atrás de vitória no seu empenho de transformar o capitalismo numa geringonça infernal e sem sentido. Toda a lógica do comunismo, em última análise, deriva da idéia hegeliana do “trabalho do negativo”, ou destruição criativa.

Mas “destruição criativa” é apenas uma figura de linguagem, uma metonímia. A destruição de uma coisa só pode dar lugar ao crescimento de outra se esta for movida desde dentro por uma força criativa própria, que nada deve à destruição. Esperar que a destruição, por si, crie alguma coisa, é como querer que nasça um pinto de um ovo frito.

Debilidades

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de junho de 2013

          

Em artigo recente, expliquei que um dos mais velhos truques do movimento revolucionário é limpar-se na sua própria sujeira, cuja existência negava até a véspera.

Desde a queda da URSS, a maneira mais usual de aplicar esse truque consiste em jurar que tudo aquilo que durante setenta anos todos os comunistas do mundo chamaram de comunismo não foi comunismo de maneira alguma: foi capitalismo.

Mediante essa simples troca de palavras a ideia comunista sai limpa e inocente de todo o sangue que se derramou para realizá-la, e gentilmente solicita da plateia um novo crédito de confiança, isto é, mais sangue, jurando que desta vez vai ser um pouquinho só, um tiquinho de nada. Por exemplo, varrer Israel do mapa ou exterminar a raça branca.

O apresentador dessa modesta sugestão não explica nunca como bilhões de pessoas inspiradas na teoria histórica mais científica de todos os tempos – insuperável, no dizer de Jean-Paul Sartre –, puderam se enganar tão profundamente quanto àquilo que elas mesmas estavam fazendo, nem como foi que ele próprio, subindo acima de Lenin, de Stálin, de Mao Dzedong e de tantos luminares do marxismo, foi o primeirão a enxergar  a luz.

Nem muito menos explica como é possível, de uma teoria que ensina a unidade substancial de ideia e prática, se pode obter uma separação tão radical dessas duas coisas que uma delas saia inteiramente limpa e a outra inteiramente suja.

Mas esse pessoal é assim mesmo: quando chega na página seguinte, já esqueceu a anterior.

Dois exemplos recentes vêm-nos da Sra. Lúcia Guimarães, que é talvez o caso mais típico de ignorância elegante no jornalismo brasileiro, e da srta. Yoani Sanchez, uma abnegada que procura salvar a imagem do comunismo cubano isolando-a de um breve erro de percurso de apenas meio século.

O argumento das duas é substancialmente o mesmo: não se pode culpar o comunismo por nada do que aconteceu na URSS, na China, no Camboja ou em Cuba, porque o comunismo é a posse e domínio dos meios de produção pelos proletários, e não pelo Estado como se viu nesses lugares.

Dona Lúcia chega a passar pito no dramaturgo David Mamet porque este diz que a doce promessa de Karl Marx, “De cada um conforme suas possibilidades a cada um conforme suas necessidades” não passa de uma expressão cifrada para justificar a espoliação de todos pelo Estado.

Em todos os regimes comunistas foi isso o que se deu realmente, mas ainda assim Dona Lúcia assegura que Mamet “levaria nota baixa em marxismo, porque o espantalho invocado por Mamet estava pensando numa utopia do proletariado, não do Estado”.

No mesmo sentido pronuncia-se Yoani Sanchez para jurar que em Cuba nunca houve comunismo, apenas capitalismo de Estado.

Não é preciso observar que assim, com um estalar de dedos, a teoria que se apresentava como idêntica à sua encarnação histórica se torna uma ideia pura platônica, um ente metafísico separado, imune a toda contaminação deste baixo mundo.

Eu não seria cruel de esperar dessas duas criaturas a compreensão dessa sutileza, mas elas poderiam ao menos ter lido um dos mais célebres parágrafos de Karl Marx, no Manifesto Comunista:

“A última etapa da revolução proletária é a constituição do proletariado como classe dominante… O proletariado servir-se-á da sua dominação política para arrancar progressivamente todo o capital da burguesia, para centralizar todos os meios de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado…”

Aí não existe, no mais mínimo que seja, o antagonismo que aquelas duas inteligências iluminadas acreditaram enxergar entre o Estado e o proletariado: o Estado é o proletariado organizado, o proletariado organizado é o Estado. E o proletariado organizado não é outra coisa senão o Partido.

A profecia da “autodissolução do Estado” na apoteose dos tempos é somente uma figura de linguagem, um jogo de palavras, uma pegadinha infernal. Marx explica que, como tudo pertencerá ao Estado, este já não existirá como entidade distinta, mas a própria sociedade será o Estado.

 É uma curiosa inversão da regra biológica de que quando o coelho come alface não é o coelho que vira alface, mas a alface que vira coelho. Se o Estado engole a sociedade, não é o Estado que desaparece: é a sociedade. Que a sociedade dominada, esmagada e anulada não sinta mais o peso da dominação não quer dizer que esta não exista, mas que o dominado está exausto e estupidificado demais para tomar consciência dela. É o totalitarismo perfeito em que, nas palavras de Antonio Gramsci, o poder do Partido-Estado já não é percebido como tal, mas se torna “uma autoridade onipresente e invisível como a de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.

Um exame atento dos textos de Karl Marx teria bastado, em plena metade do século 19, para perceber neles o Gulag, o Laogai e centenas de milhões de mortos, todo o terror e misérias dos regimes comunistas como consequências incontornáveis da própria lógica interna da teoria, caso tentasse sair do papel para encarnar-se na História.

Marx, Engels e Lenin em pessoa reconheceram isso inúmeras vezes, enaltecendo o genocídio e a tirania como “parteiros da História”. Que, decorridos cento e sessenta e tantos anos, ainda haja tantas pessoas que insistam em explicar como fruto de desagradáveis coincidências aquilo que a própria teoria exige como condição sine qua non da sua realização é, decerto, uma das provas mais contundentes de uma debilidade intelectual que não deixa de refletir, talvez, alguma debilidade de caráter.

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