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Um globalismo cristianizado?

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de julho de 2009

Em qualquer texto doutrinário que vise a influenciar de algum modo a vida política, é preciso distinguir três níveis: (1) os princípios morais e políticos gerais proclamados ou implícitos; (2) a análise da situação concreta, e (3) as ações sugeridas ou apoiadas. No primeiro nível, a Encíclica Caritas in Veritate proclama a necessidade de fundar toda política social na caridade, e esta na verdade: “Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida. A verdade é a luz que dá sentido e valor à caridade.” No segundo nível, oferece um diagnóstico totalmente falso das causas da presente crise econômica. No terceiro, sugere como remédio aos males da economia atual a intensificação e ampliação das mesmas causas que os determinaram. Por mais que eu respeite a pessoa do Papa e a santidade do seu ofício, não posso ver aí verdade nenhuma, nem portanto caridade, exceto se por esta palavra entendermos as boas intenções ineficazes que a própria Encíclica condena.

Desde logo, Bento XVI apresenta como causa fundamental dos problemas atuais a desregulamentação da economia e a redução das redes de segurança social, que trazem “grave perigo para os direitos dos trabalhadores, os direitos fundamentais do homem e a solidariedade atuada nas formas tradicionais do Estado social.” Precisamente ao contrário, a ampliação desmesurada da previdência social – quase sempre forçada por meio dos mesmos argumentos agora usados por S. Santidade – foi que causou a falência do sistema bancário e, portanto, dos Estados que nele se apóiam. É verdade que “os sistemas de segurança social podem perder a capacidade de desempenhar a sua função”, mas não porque o mercado foi desregulamentado e sim porque lhes falta dinheiro para atender às exigências crescentes de ONGs ativistas, “movimentos sociais” e organismos internacionais, inclusive em favor da imigração ilegal. Quando Bento XVI oferece como solução para a crise econômica o aumento do poder regulador desses organismos, ele esquece que esse poder já veio crescendo, nas últimas décadas, ao ponto de impor a muitos países obrigações sociais que sua economia não suporta.

Por outro lado, é claro que muito do falatório liberal em favor da “abertura dos mercados” não veio de nenhum amor sincero ao liberalismo econômico, mas como expediente maquiavélico para debilitar os Estados nacionais e transferir sua soberania a organismos globais controladores, de modo que tanto as vantagens quanto as desvantagens daquela abertura concorressem igualmente para o acréscimo do poder da elite globalista.

Os beatos de sempre vão assegurar-nos, é claro, que a nova Encíclica não é um manifesto de apoio ao governo global. O texto mesmo dá-lhes o desmentido formal: “Para sanar as economias atingidas pela crise, … urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial” investida de “poder efetivo”. Como modelo dessa autoridade, S. Santidade sugere… o Estatuto das Nações Unidas! Publicada com poucos dias de antecedência da nova reunião dos líderes do G-8, que já proclamam a necessidade de adotar em escala mundial uma política de “estímulos” como a implantada pelo presidente Barack Obama nos EUA, qual outro efeito real pode ter essa Encíclica senão o de um incentivo legitimador a que esses indivíduos façam precisamente o que querem fazer? Se, enquanto isso, o desemprego que Obama prometia eliminar cresce a olhos vistos, levando o próprio vice-presidente Joe Biden a confessar que a política alegadamente salvadora se baseou numa interpretação errada da economia, isso não impede S. Santidade de endossar como certa essa mesma interpretação errada e de sugerir que a solução fracassada seja ampliada em escala mundial.

A obstinação dos altos círculos católicos na idolatria do “controle global” não vem de hoje. Como o próprio Bento XVI reconhece, “depois da queda dos sistemas econômicos e políticos dos países comunistas da Europa Oriental,… na seqüência dos acontecimentos do ano 1989, o Pontífice (João Paulo II) pediu que o fim dos ‘blocos’ fosse seguido por uma nova planificação global do desenvolvimento, não só em tais países, mas também no Ocidente.” Ou seja, do fracasso total do maior experimento de economia planificada já tentado neste mundo, João Paulo II concluía que era preciso mais planificação ainda, e de dimensões globais.

Não se trata, aqui, de fazer a apologia abstrata da liberdade de mercado. É verdade que a modéstia na intervenção estatal coincide universalmente com a prosperidade (o Índice de Liberdade Econômica do Hudson Institute prova isso ano após ano), mas, como já tenho explicado dezenas de vezes, em geral essa liberdade vem hoje articulada a um projeto político que só a expande em escala local para melhor estrangulá-la no plano mundial. Nenhuma referência a essa maliciosa articulação de estratégias se vê na Encíclica de Bento XVI. Reconhecendo embora o poder criativo do livre mercado, o Papa não só faz a apologia do maior controle burocrático, mas sugere que dele participem as entidades da “sociedade civil”, como se não tivesse sido justamente a pressão dessas entidades – quase sempre apoiadas num discurso enganosamente cristão e subsidiadas pela elite globalista – que levou à destruição do sistema bancário.

Se, em aparente compensação, Bento XVI exorta os planificadores globais a orientar suas ações num sentido cristão, ele não fornece nem a mais mínima sugestão prática de como realizar essa cristianização do globalismo. A proclamação dos valores cristãos paira no céu das generalidades abstratas, enquanto, no plano da ação prática, só o que se sugere é a ampliação dos controles globais. Sem conexão com as medidas efetivas sugeridas, o apelo à verdade e à caridade funciona, nesse documento, tão-somente como um adorno retórico, embelezando um programa político que não tem com ele a menor conexão lógica e que oferece, como solução do mal, a ampliação das causas que o geraram. Os líderes do G-8 estão livres para brandir a Encíclica Caritas in Veritatecomo um poderoso argumento em favor de políticas que já haviam escolhido de antemão.

Para piorar formidavelmente as coisas, é público e notório que o poder globalista em expansão, longe de se inspirar no que quer que seja de genuinamente cristão, tem como um de seus objetivos professos – intimamente associado às suas políticas econômicas – a implantação de uma religião universal biônica, na qual a Igreja Católica, expurgada de seus elementos tradicionalistas, se integre como um instrumento dócil da maior farsa espiritual já tentada no universo (v. documentação cabal em Lee Penn, False Dawn. The United Religions Initiative, Globalism and the Quest for a One-World Religion, Hillsdale, NY, Sophia Perennis, 2004). Ao longo do texto, Bento XVI esperneia, aqui e ali, contra o relativismo e a descristianização, como se estes males viessem do ar e não do mesmo establishment globalista cujo poder ele procura expandir.

O dilema em que esse documento coloca os católicos é temível: deverão eles, por obediência ao Papa, colaborar com o fortalecimento do mesmo poder global que os estrangula e vai tornando inviável o exercício público da sua fé, ou, ao contrário, devem voltar-se contra o Sumo Pontífice, aprofundar ainda mais a divisão na Igreja e dar munição à campanha mundial anticatólica? Qualquer das duas alternativas é inaceitável. Enquanto os conservadores e cristãos não aprenderem que não é possível fazer face ao inimigo simplesmente “tomando posição” contra ou a favor disto ou daquilo, não haverá esperança para a humanidade senão a de adaptar-se servilmente a controles globais cada vez mais opressivos e anticristãos. A estratégia do inimigo não é linear: ela é dialética. Ela articula forças contrárias, fazendo-as trabalhar pelo sucesso da síntese global. O que é preciso não é combater propostas isoladas – favorecendo na esfera cultural o que se abomina na da política, ou cedendo na economia aquilo que se pretende defender na esfera cultural –, mas compreender a lógica total do “sistema do Anticristo” e oferecer-lhe resistência integral, tão articulada quanto a estratégia de que ele se serve.

A rejeição categórica do diagnóstico econômico e das soluções propostas pelo Papa Bento XVI deve, portanto, vir junto com o apoio mais decidido aos valores gerais que ele proclama. E a melhor maneira de fazer isto é mostrar que esses valores vão no sentido precisamente oposto ao dos remédios que ele propõe.

Kenneth Maxwell rides again

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 01 de junho de 2007

Kenneth Maxwell, em cuja autoridade de historiador o Council on Foreign Relations e a Folha de S. Paulo confiam para todas as questões relativas ao Brasil, já havia fornecido provas de sua total incompetência ao assegurar, baseado em opiniões de terceiros tão ignorantes quanto ele, que o Foro de São Paulo não existia.

Com o parágrafo que transcrevo a seguir ele alcançou o nível de inépcia requerido para tornar-se controlador de vôo em Cumbica, diretor da CIA ou ministro do governo Lula (digo isso porque colunista da Folha ele já é). O rapaz vai longe. Indignado contra a campanha anti-abortista de Bento XVI, ele passa o seguinte pito no Papa:

“Caso o papa tivesse ido a Chiapas (México) para pregar na igreja fundada em San Cristóbal pelo frei Bartolomé de Las Casas, talvez sentisse a necessidade de confrontar uma realidade diferente. Las Casas não tinha dúvidas de que a chegada dos cristãos à América havia causado ‘a destruição das Índias’, literalmente levando pragas e morte a milhões dos habitantes indígenas da região.”

Maxwell é decerto o último historiador do mundo que aceita a “leyenda negra” de frei Bartolomé de las Casas como fonte confiável. Depois que a pesquisadora australiana Inga Clendinnen reuniu em Aztecs: An Interpretation (Cambridge University Press) todos os testemunhos de sobreviventes das batalhas de Hernán Cortez contra os astecas, nenhum membro da comunidade historiográfica tem o direito de ignorar que quem destruiu essa antiga cultura não foram os espanhóis, mas as tribos circunvizinhas, cansadas de fornecer vítimas sacrificiais para os ritos macabros de uma religião cujo fim Maxwell acha lamentável. Se o livro de frei Bartolomé ainda serve de documento, não é sobre a história das Américas: é sobre o ódio psicótico que os europeus têm a si mesmos, que os leva a inventar mentiras contra seus heróis e mártires enquanto os remanescentes astecas alardeiam orgulho de uma cultura genocida.

Mas, se Maxwell desconhece o passado, ignora ainda mais radicalmente o presente. Apelar à igreja de Chiapas como argumento contra o anti-abortismo papal é dar um tiro no próprio pé: os bispos de Chiapas foram os primeiros na América Latina a ameaçar de excomunhão os partidários do aborto, e são até hoje os mais intransigentes nisso. Tiro no pé não é talvez a expressão adequada: Maxwell está mais é seguindo os passos de Jimmy Carter, queridinho da esquerda chique, o único presidente americano que derrubou um aliado para dar o poder a um inimigo, o primeiro atleta que conseguiu ter falta de ar por meio de exercícios respiratórios e o primeiro e único jogador de golfe, em todo o universo, que conseguiu acertar o próprio olho com o taco.

Ainda há tempo

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 10 de maio de 2007

Uma notícia do UOL, traduzida do El País, informa que o governo da Polônia planeja derrubar os monumentos construídos no território polonês pela URSS, “ incluindo os dedicados aos soldados do Exército Vermelho que libertaram a Polônia dos nazistas”. O preconceito pró-comunista embutido no texto não poderia ser mais visível. Os soviéticos jamais libertaram a Polônia; eles a invadiram – e invadiram duas vezes: uma em parceria com os nazistas, no começo da guerra, outra contra eles, no fim. A ocupação soviética, ali como em toda a Europa Oriental, não foi nem um pouco menos cruel que a nazista. Enquanto os EUA ajudavam os países derrotados a tornar-se potências econômicas independentes, a URSS só espalhava terror e miséria nas nações que tomou dos alemães. Desde que tive a grata ocasião de caminhar sobre a estátua de Lenin jogada num depósito de lixo em Bucareste, tenho pensado no seguinte: Não só os monumentos erigidos à glória do comunismo têm de ser demolidos, mas todos os que colaboraram para a construção da mais vasta monstruosidade política de todos os tempos devem ser tratados como os criminosos cínicos e desumanos que são – incluindo nisso o beautiful people comunista que ainda brilha na nossa mídia e no nosso Parlamento, ditando regras, posando de santo, empanturrado de verbas públicas.

Ao protestar contra a decisão polonesa, o governo russo mostrou sua fidelidade inalterada ao culto de Lênin e Stálin, mas não é da Rússia que vem hoje o grosso do ódio estrangeiro à Polônia católica. Desde a queda da URSS a elite comunista se refugiou nos organismos políticos internacionais, de onde comanda a guerra anticristã, antijudaica e anti-americana sob novos pretextos publicitários e com armas emprestadas à estratégia anestésica do socialismo fabiano. Os gurus iluminados da ONU já ameaçam processar os governantes da Polônia por sua oposição ao abortismo, apoiada na vontade majoritária do povo polonês. Pela primeira vez na História, impedir um morticínio tornou-se “crime contra a humanidade”.

Nesse momento, a proposta de um acordo anti-abortista entre o Vaticano e o governo brasileiro mostra claramente o intuito papal de ampliar a frente de resistência à opressão global, cujas iniciativas contra os cristãos e os judeus no Ocidente já vão assumindo as feições nítidas de um genocídio cultural, contrapartida do genocídio tout court que prossegue, impune e mal camuflado, nas nações islâmicas e comunistas.

Funcione ou não o acordo, uma coisa é certa: se Bento XVI toma essa iniciativa, é sinal de que tem em mente algo como uma estratégia abrangente para a autodefesa da religião contra o assédio ateístico cada vez mais brutal e mendaz. Ainda há tempo para isso, mas em dois milênios de cristianismo nada trouxe mais dano à Igreja do que a acomodação com as esquerdas adotada no Concílio Vaticano II. João Paulo II esboçou uma volta atrás, mas no fim do reinado já estava engrossando o coro do anti-americanismo universal. “O destino da Igreja será decidido no Brasil”, disse seu sucessor. Oremos para que saiba avaliar o peso de suas próprias palavras.

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