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Cretinices gramscianas (II)

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de junho de 2015          

A teoria embutida no espaço entre o fato e a generalização que Gramsci dela extrai é a própria teoria gramsciana da hegemonia, segundo a qual a cultura reinante em qualquer época ou lugar é o instrumento pelo qual a classe dominante impõe sua ditadura mental a toda a população.
Interpor uma teoria entre os fatos e a conclusão, em vez de esperar que a própria acumulação de fatos sugira a conclusão, já é trapaça suficiente para desmoralizar qualquer teorizador.
Mas a teoria da hegemonia ultrapassa os últimos limites da vigarice razoável e tenta nos fazer engolir como realidade universal e constante algo que é uma impossibilidade material pura e simples.
Essa impossibilidade já estava presente na teoria marxista da “ideologia de classe”, da qual a “hegemonia” gramsciana é um prolongamento.
Se cada classe tem uma ideologia que é a expressão idealizada dos seus interesses materiais, então, das duas uma: ou cada um dos seus membros está atrelado de uma vez para sempre à ideologia da sua classe como se fosse uma segunda natureza; ou, ao contrário, pode abjurar dela e aderir à ideologia de outra classe, como fez, ou acreditava fazer, o próprio Karl Marx.
Só que neste caso não há mais conexão orgânica entre classe e ideologia; tudo se torna uma questão de livre escolha e não há mais “ideologia de classe” nenhuma, só a ideologia que cada indivíduo, livremente, atribui à sua classe ou a uma outra qualquer, conforme a interpretação que faça dos interesses desta ou daquela.
Gramsci agrava formidavelmente a situação ao declarar que quem produz a ideologia não são propriamente os membros de cada classe, mas sim os “intelectuais” que a representam sem ter de pertencer necessariamente a ela.
Esses representantes são “intelectuais orgânicos” da burguesia e do proletariado. Mas, se o são sem precisar ser eles próprios burgueses ou proletários, a conexão entre eles e a classe que representam não pode ser “orgânica” de maneira nenhuma e sim matéria de livre escolha, nada impedindo que um intelectual passe, ideologicamente, da “burguesia” para o “proletariado” (como Georg Lukács) ou vice-versa (Eric Hoffer, por exemplo).
Ademais, quem infunde nos intelectuais a “ideologia de classe”? Para que o burguês adestrasse intelectuais na ideologia burguesa seria preciso que ele, na condição de mestre, a dominasse melhor que os discípulos: esse burguês seria, então, um superintelectual, um intelectual dos intelectuais, o maître à penser da intelectualidade, reduzindo-a à condição de mera repetidora do discurso aprendido.
Mutatis mutandis, e piorando ainda mais as coisas, os “intelectuais orgânicos” do proletariado se tornariam meninos de escola operária, tomando lições de dialética hegeliana e materialismo histórico com professores pedreiros e ferramenteiros.
Essas situações caricaturais não existem na realidade, no mínimo porque o próprio Gramsci nos assegura que quem cria as ideologias das classes não são as próprias classes, e sim os intelectuais.
Nem poderia ser de outra forma. No mínimo a transposição de interesses materiais numa linguagem de valores, ideias e teorias requer um considerável treinamento especializado nas áreas de filosofia e ciências humanas, que nem um capitalista nem um operário poderiam adquirir nas horas vagas. (Sob esse aspecto é interessante comparar o gramscismo com a teoria da “violência simbólica” de Pierre Bourdieu, outro ídolo, ainda que menorzinho, da intelectualidade esquerdista; (leia aqui e aqui).
Mas, então, nem a ideologia proletária é proletária nem a burguesa é burguesa: são ambas puras criações de intelectuais, que as atribuem a esta ou àquela classe, sem precisar consultá-las, conforme interpretem livremente os “interesses” de cada uma. Não é coincidência, pois, que Karl Marx já tivesse descrito a “ideologia proletária” inteira antes de ter visto de perto um único proletário.
Na melhor das hipóteses, o burguês e o proletário se tornam “tipos ideais” que existem apenas na cabeça do intelectual para fins de comparação com personagens reais que só se parecem com eles de maneira longínqua e esquemática.
Gramsci não admite explicitamente essa conclusão inevitável da sua teoria, mas, como quem não quer nada, extrai dela uma consequência prática que, para o bom entendedor, já denuncia a falácia da construção inteira.
Quem cria as ideologias de classe? Os intelectuais. Quem, com base nela, cria a hegemonia, o controle geral do pensável e do impensável? Os intelectuais. Quem lidera a revolução? Os intelectuais. Quem assume o poder por meio da revolução? Os intelectuais.
Burgueses e proletários são, no fim das contas, apenas os emblemas dos times em jogo. É de espantar que no paraíso burguês os burgueses sejam esfolados com impostos, induzidos a financiar filmes e shows que os demonizam e a contribuir com rios de dinheiro para organizações esquerdistas que prometem matá-los?
É de espantar que no paraíso proletário os proletários sejam submetidos a condições de trabalho escravo, privados do direito de greve, removidos de um lugar para outro sem poder reclamar, policiados vinte e quatro horas por dia e obrigados a entoar cânticos de glória ao Supremo Intelectual e Guia dos Povos?
Tudo não passa, então, de uma disputa de poder entre dois grupos de intelectuais, cada um defendendo os interesses que atribui a uma classe à qual não tem de pertencer e que na maior parte dos casos não foi consultada a respeito.
O que é líquido e certo, embora Gramsci não o diga, é que os intelectuais orgânicos “da burguesia” não pretendem tomar o lugar dela; quem o pretende são os outros, os “intelectuais proletários”.
Nunca se viu um escritor apologista do capitalismo ansioso para deixar de lado seus afazeres intelectuais e tornar-se industrial ou especulador da bolsa. Em contrapartida, nenhum, absolutamente nenhum “intelectual proletário” que eu conheça planeja fazer a revolução proletária para depois continuar vivendo modestamente das suas funções de professor, jornalista ou pesquisador científico.
Tomar o poder e exercê-lo na máxima medida das suas possibilidades é a essência e missão da intelectualidade revolucionária. O que ela quer não é assumir o lugar da intelectualidade direitista, mas o da burguesia.
Isso torna evidente que, na maior parte dos casos, ela disputa o poder com um grupo que não o detém nem o deseja. Basta isso para explicar a inermidade estrutural da intelectualidade conservadora e liberal ante o avanço esquerdista.
É algo que não tem nada a ver com superioridade ou inferioridade intelectuais, mas com desejo ou falta de desejo de poder. Quando o sr. Lula sentenciou que seus inimigos “não tinham perspectiva de poder”, acertou na mosca.
Para completar a fantasia com um toque de alucinação, Gramsci admite que nem todos os intelectuais participam conscientemente da “luta de classes”. Alguns – em geral a maioria deles – são indiferentes à política e se satisfazem com suas ocupações filosóficas, científicas ou artísticas, sem se preocupar em saber quem isso vai favorecer nas próximas eleições.
A esse grupo Gramsci denomina “intelectuais tradicionais”, acrescentando que são neutros e apolíticos só em imaginação, por falsa consciência; na verdade são servos inconscientes do status quo tanto quanto os intelectuais orgânicos “burgueses”.
Ou seja: os “intelectuais proletários” estão em perpétua disputa de poder não somente com intelectuais orgânicos burgueses que não aspiram ao poder, mas com toda uma comunidade intelectual que não quer nem saber da existência dessa disputa.
A consequência disso, do ponto de vista cognitivo, é devastadora: o intelectual esquerdista explica toda a sociedade como uma projeção inversa dos seus próprios valores e metas, pouco lhe importando a auto explicação que os demais grupos e indivíduos tenham a apresentar.
Para ele, a sociedade, a história, a existência humana inteira giram em torno do seu objetivo grupal, da sua luta pelo poder, que no seu entender move todo o restante como o cão abana a cauda. Ele, em suma, é o fator ativo, o criador da História, a única realidade efetiva: todo o resto da humanidade são sombras que se mexem à sua voz de comando.
É uma visão horrivelmente autocêntrica, solipsista, psicótica mesmo, que se espalha com facilidade entre estudantes universitários pelo simples fato de que é a mais reconfortante compensação neurótica do seu justo sentimento de inutilidade social.

***

Não é só na esquerda militante que o pensamento de Gramsci inocula o seu veneno alienador e estupidificante. Chego a pensar que basta admirá-lo um pouquinho, suspender o juízo crítico por uns instantes, para que algo do besteirol gramsciano entre e permaneça para sempre.
Por ocasião de um de seus últimos chiliques anti-olavéticos, cuja razão de ser escapa ao entendimento humano, o sr. Marco Antônio Villa, na ânsia doida de exaltar tudo o que critico, chegou a proclamar que a subsistência da democracia na Itália do pós-guerra foi obra do gramscismo imperante no Partido Comunista Italiano.
É com certeza a coisa mais burra que já saiu da boca de um pretenso historiador. Raiva descontrolada é vexame na certa. O regime democrático só sobreviveu na Itália graças à derrota acachapante que, contra todas as previsões iluminadas, a Democracia Cristã de Alcide De Gasperi, mobilizando o apoio de toda a população católica na primeira eleição geral realizada após a queda do fascismo, impôs em 18 de abril de 1948 ao Front Popular comunista, que desde então foi saindo do cenário político, por etapas sucessivas, para a lata de lixo da História.
Se o sr. Villa quiser alguma bibliografia sobre o assunto, posso lhe fornecer, mas só se ele pedir com jeito.

Cretinices Gramscianas (I)

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 1 de junho de 2015          

Como foi que o comunopetismo, após cinco décadas de hábil e continuado esforço para conquistar a hegemonia segundo a receita de Antonio Gramsci, caiu do sucesso avassalador para o fracasso total em apenas um dia, a data fatídica de 15 de março?
A resposta é simples: a receita gramsciana está errada. Não funciona. Não vale nada, seja como análise da estrutura do poder, seja como fórmula para conquistá-lo. Serve para infundir na esquerda um entusiasmo temporário que termina por jogá-la num buraco ainda mais fundo do que aquele do qual pareceu tirá-la no começo.
Tal como o marxismo clássico, o revisionismo de Bernstein e Kautsky, o leninismo, o stalinismo, o trotskismo, o maoísmo, a teoria “foquista” de Régis Débray, o marxismo estrutural de Louis Althusser e não sei mais quantas versões e remodelagens, o gramscismo nunca passou de mais uma na série interminável de formas ilusórias, entre patéticas e mortíferas, de que o marxismo se revestiu no empenho louco de dominar a realidade total e moldar o curso da História.
Um traço essencial do pensamento esquerdista, cuja disseminação nas escolas brasileiras basta por si só para explicar o decréscimo de capacidade dos nossos estudantes, jornalistas, professores universitários e intelectuais em geral, é aquele que, à falta de melhor nome, chamo “indução mediada”.
No processo normal do conhecimento científico, o acúmulo de fatos convergentes sugere uma constante, que então se consolida em hipótese descritiva e deve ser testada no confronto com possíveis fatos divergentes, antes mesmo de adquirir o estatuto de “teoria”.
Na visão esquerdista das coisas, entre os fatos e a hipótese descritiva já se interpõe toda uma teoria prévia – carregada, sempre, de moralismo acusador – que não só obriga os fatos a ir na direção desejada, mas obstaculiza, proíbe e impossibilita de antemão o confronto com os fatos divergentes, ao ponto de que o simples fato de alegá-los se torna prova da acusação embutida.
Notem bem: eu não disse que isso acontece de vez em quando, que é um cochilo frequente entre pensadores de esquerda. Disse que é um traço essencial e infalível, presente mesmo nas criações mais altas da intelectualidade esquerdista e sem o qual ela não poderia ser esquerdista de maneira alguma.
A teoria interposta tem uma infinidade de versões, mas pode-se resumir numa premissa simples e unívoca: Todos os males do mundo provêm de que aqueles que estão no poder não somos nós (comunistas e afins). Levei décadas para perceber que essa premissa, com toda a candura da sua estupidez brutal, está presente em cada linha não só dos “clássicos do marxismo”, Marx, Engels, Lênin, Stalin, Mao, mas dos militantes intelectuais marxistas mais sofisticados, como Lukacs, Sartre, Merleau-Ponty, Foucault, Althusser, Gramsci.
Retire-a, e tudo o que eles escreveram não passará de um imenso e insensato non sequitur, tirando dos fatos conclusões que eles não sustentam nem em sonhos. Ponha-a de volta, e tudo começará a fazer sentido, mas não como teoria científica e sim como camuflagem pseudocientífica de uma intransigente e psicopática reivindicação de poder.
O próprio Marx já confessou isso implicitamente na sua 11a. Tese sobre Feuerbach: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo; o que importa é transformá-lo. ”
Se o filósofo pode exercer a sua atividade contemplativa longe dos altos escalões do poder e sem nenhuma intenção nem mesmo de frequentá-los, “transformar o mundo” requer, como primeiríssima condição, o poder de fazê-lo. Tudo, absolutamente tudo no pensamento marxista, marxiano, pró-marxista e marxistóide depende fundamentalmente dessa premissa, sem a qual ele não poderia ser o que é.
Isso quer dizer que, mesmo ao falar de assuntos que estão aparentemente a léguas de qualquer luta pelo poder – as tragédias de Ésquilo, a arquitetura das catedrais ou a música de Mozart – o intelectual marxista (uso o termo lato sensu) está sempre investigando a mesma questão ou série de questões: Quem está no poder, como chegou lá, como podemos tirá-lo de lá e ocupar o lugar dele?
Tudo, absolutamente tudo entre o céu e a terra, é examinado sob esse prisma e somente sob ele. A variedade mesma dos assuntos que interessam aos marxistas é a prova de que essa perspectiva obsessivamente limitada e limitadora pode ser estendida a todos os objetos possíveis, já que tudo pode ser útil para a conquista do poder, da mesma maneira que tudo pode ser meio ou obstáculo para a conquista de qualquer outro objetivo humano: a felicidade, a salvação da alma, a glória de uma nação ou raça, a prosperidade geral, a paz universal etc. etc.
Tudo o que existe, sob qualquer modo que seja, se torna então um instrumento de dominação, e todo o problema consiste em saber como tomá-lo dos seus detentores passados e presentes e entregá-los aos comunistas.
Imaginem, por exemplo, em quê se transforma, na perspectiva marxista (repito: lato sensu), o estudo da linguagem.
Antonio Gramsci enfatiza que em muitas línguas o adjetivo “bom” vem da mesma raiz que significa “rico” ou, como no latim, é ele próprio um sinônimo de “rico”.
O consensus bonorum omnium, “consenso de todos os homens bons”, a que Cícero apela contra o sedicioso Catilina, não é outra coisa senão a opinião dos ricos e poderosos, os membros do Senado, os optimates em oposição aos populares.
É um fato. Mas Gramsci interpreta-o como prova de que a linguagem é por excelência um instrumento da hegemonia, o controle do que a sociedade pode ou não pode pensar. Na medida em que acredita que os ricos são os bons, ela se sentirá inibida de agir contra eles.
Mas, se fosse assim, todas as palavras do idioma deveriam enaltecer as virtudes dos ricos e vituperar os vícios dos pobres. Não poderia existir, por exemplo, a palavra corruptio, que no uso romano significava eminentemente induzir ao mal por meio de propinas – um modo de agir que é próprio dos ricos e não está ao alcance dos pobres.
Nem poderia existir o verbo spolio, spoliare, que, em contraste com outras acepções do verbo “roubar”, como subripio, latrocinor, surrupio etc., designa eminentemente a espoliação do fraco pelo forte, do pobre pelo rico.
Se a linguagem fosse propriedade dos ricos e instrumento da sua glória, toda palavra que por si insinuasse alguma coisa contra eles deveria ser suprimida do vocabulário.
Se não o é, é pela simples razão de que as palavras não são consagradas no vocabulário dominante pela classe dominante, mas pelos gramáticos e escritores, que tanto faz serem pobres ou ricos, assim como pelo uso popular repetido, que se prolonga pelos séculos e transcende quaisquer disputas momentâneas de poder.
“Bom” ser usado como sinônimo de “rico” não significa que os ricos sejam sempre bons, o que seria uma crença demasiado pueril para ter qualquer eficácia retórica, mas, simplesmente, que é melhor ser rico que ser pobre — uma verdade que os pobres conhecem até mais que os ricos.
Isso sem contar o fato banal de que qualquer adjetivo pode ser usado em sentido literal ou em sentido irônico, dependendo da construção da frase. Para usar os termos clássicos de Saussure, o significado das palavras não é decidido no nível da língua, mas no da fala – no uso concreto que as pessoas fazem da língua.

O cão, o lobo e o rato

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de maio de 2015          

Giambattista Vico ensinava que nada conhecemos tão bem quanto aquilo que nós mesmos inventamos. O sr. Marco Antonio Villa ilustra essa regra com perfeição.
Após declarar, em artigo do Globo, que, “na política é indispensável, ao enfrentar um adversário, conhecê-lo” – abertura triunfal que realiza às mil maravilhas o ideal literário do  Conselheiro Acácio -, ele inventa um PT à imagem e semelhança da sua própria estreiteza mental e o enfrenta até mesmo com certa bravura.
No seu entender, o PT nada tem de comunista. É apenas “um mix original que associa pitadas de caudilhismo, com resquícios da ideologia socialista no discurso — não na prática —, um partido centralizado e a velha desfaçatez tupiniquim no trato da coisa pública, tão brasileira como a caipirinha que seu líder tanto aprecia”.
Desprovido de todo aparato marxista e de toda conexão com o movimento comunista mundial e suas tradições, reduzido a um fenômeno folclórico local sem nenhuma retaguarda estratégica, o partido governante está pronto para ser demolido na base de puras notícias de TV, sem o menor combate ideológico ou sondagem das suas conexões internacionais.
Foi nisso que se especializou o sr. Villa, e ele desempenha essa tarefa pelo menos tão bem quanto o faria qualquer aprendiz de jornalismo.
Dos que temem que na sua atitude haja um excesso de presunção otimista ele se livra com meia dúzia de petelecos, rotulando-os de “exaltados e néscios”, proferidores de “puras e cristalinas bobagens”, culpados de “absoluto desconhecimento político e histórico”, de restaurar “o rancoroso discurso da Guerra Fria”, de usar “conceituações primárias que não dão conta do objeto” e de retirar do baú da História o anticomunismo primário”, isso quando alguns deles não chega mesmo a ser, como ele disse na TV, um “astrólogo fascista embusteiro metido a líder político”.
Tendo assim alcançado um recorde jornalístico de insultos por centímetro de coluna, ele se sente preparado para provar cientificamente a ausência de comunismo no PT. E eis como ele se desincumbe da tarefa:
“O petismo impôs seu ‘projeto criminoso de poder’… sem que tivesse necessidade de tomar pela força o Estado. O processo clássico das revoluções socialistas do século XX não ocorreu. O ‘assalto ao céu’  preconizado por Marx.. foi transmutado numa operação paulatina de controle da máquina estatal no sentido mais amplo, o atrelamento da máquina sindical, dos movimentos sociais, dos artistas, intelectuais, jornalistas, funcionando como uma correia de transmissão do petismo.”
Quem quer que tenha estudado o assunto, ao menos um pouquinho, entende, logo ao primeiro exame, que isso que o sr. Villa acaba de descrever é a aplicação fiel, milimetricamente exata, da estratégia de Antonio Gramsci para a conquista do poder pelos comunistas.
Nada de tomar o Estado pela força, nada de “assalto aos céus”. Em vez disso, a lenta e quase imperceptível “ocupação de espaços”, ou, nos termos do sr. Villa, “o atrelamento da máquina sindical, dos movimentos sociais, dos artistas, intelectuais, jornalistas”.
Faz quase seis décadas que o movimento comunista internacional em peso adotou essa estratégia, por ser ela a única compatível com a política de “coexistência pacífica” entre a URSS e as potências ocidentais, preconizada por Nikita Kruschev no discurso que proferiu em 1956 no XX Congresso do Partido Comunista soviético.
Ou seja: a prova cabal de que o PT não é um partido comunista é que ele faz exatamente o que todos os partidos comunistas do Ocidente fazem há sessenta anos.
Não é de tapar a boca de qualquer astrólogo fascista embusteiro?
O sr. Villa mostra-nos um bicho de pele grossa, orelhas grandes, seis toneladas de peso e duas presas de marfim, mas se lhe dizemos que é um elefante ele sobe nas tamanquinhas e diz que são “conceituações primárias”.
Como exemplo do que deveria ser uma conceituação mais sofisticada, ele reconhece que o PT é leninista, mas só “na estrutura, não na ação”.
Precisamente: leninista na estrutura, gramsciano na ação. Como o próprio Gramsci recomendava. Mas pensar que isso é comunismo é “pura e cristalina bobagem”, não é mesmo? Especialmente para quem, nada sabendo de Gramsci e muito menos das longas discussões entre intelectuais gramscianos que prepararam e preparam cada decisão do PT, descreve o gramscismo sem saber que é gramscismo e jura, de mãos postas, que o PT jamais teve outro estrategista senão Macunaíma, nem outra inspiração senão a caipirinha.
“Como falar em marxismo se Lula sequer leu uma página de Marx?”, pergunta o sr. Villa. Bem, no tempo em que eu andava com os comunistas só vi dois deles lendo Marx. O terceiro era eu. Os outros liam exemplares de A Voz Operária e as resoluções do Comitê Central. O próprio Rui Falcão mal conhecia o Manifesto Comunista.
Mas isso é só uma curiosidade. O fato é que o sr. Lula não leu talvez uma só página de Marx, mas o sr. Frei Betto leu muitas, além de um bocado de Gramsci, e há décadas exerce as funções de cérebro do ex-presidente. Ou o sr. Frei Betto, coautor da Constituição cubana, co-fundador do Foro de São Paulo e mentor reconhecido de um gratíssimo sr. Lula, não é ele próprio comunista?
No entanto, se o argumento do sr. Villa não vale para o caso do sr. Lula, vale para o do próprio sr. Villa. Ele definitivamente não é comunista, já que não leu Marx. Se tivesse lido, não teria escrito esta lindeza:
“Quando Lula chegou ao Palácio do Planalto, o partido só tinha de socialista o vermelho da bandeira e a estrela. A prática governamental foi de defesa e incentivo do capitalismo. Em momento algum se falou em socialização dos meios de produção.”
Pois Marx ensinava, precisamente, que a socialização dos meios de produção não seria possível antes de totalmente desenvolvidas as forças produtivas do capitalismo.
O processo, dizia ele, poderia levar décadas ou até séculos. Para um partido comunista que chegue ao poder por via democrática, numa nação capitalista, o único caminho possível para o socialismo, sobretudo desde 1956, é desenvolver as forças produtivas do capitalismo ao mesmo tempo que as atrela ao Estado por meio de impostos e regulamentos e vai aos poucos – invisivelmente, dizia Antonio Gramsci – conquistando a hegemonia e neutralizando as oposições.
É precisamente o que o PT faz. Já me expliquei um pouco a esse respeito um ano atrás, neste mesmo jornal (leia aqui).
Mas nem o próprio Lênin, que subiu ao poder nas ondas de uma revolução armada e tinha todos os instrumentos para governar pelo terror, saiu logo falando em estatizar. Fez como o PT: deu um incentivo ao capitalismo enquanto montava o sistema de poder hegemônico, tomando gradativamente dos burgueses os meios de ação política enquanto os mantinha anestesiados por meio de vantagens financeiras imediatas.
Foi isso o que ele resumiu na máxima: “A burguesia nos venderá a corda com que a enforcaremos”. Nem mesmo em teoria Lênin pensou em estatização imediata. Ao contrário. Dizia ele: “O meio para esmagar a burguesia é moê-la entre as pedras da inflação e do imposto.”
Se o PT faz exatamente isso, é a prova cabal, segundo o sr. Villa, de que ele não é um partido comunista de maneira alguma.
O sr. Villa fala ainda contra o conceito de “bolivarianismo” quando aplicado ao PT. Nisso ele tem razão, mas não pelos motivos que alega. Ele investe contra o termo “bolivarianismo”, porque, no seu entender, Hugo Chávez só escolheu Simon Bolívar como símbolo da sua revolução por achar que “a crise do socialismo real tinha chegado ao seu ponto máximo e não havia mais nenhuma condição de ter como referência o velho marxismo-leninismo”.
Isso é absolutamente falso.
Em primeiro lugar, adotar a máscara nacionalista, populista ou coisa que o valha não foi, como sugere o sr. Villa, um arranjo de última hora, uma alternativa de emergência adotada no ponto extremo de uma crise do marxismo, mas é um dos hábitos mais velhos e constantes do movimento comunista, que desde os anos 30 do século passado veio se camuflando como “progressismo”, “terceiromundismo”, “movimento dos não-alinhados”, “antifascismo”, “anticolonialismo”, “teologia da libertação”, “filosofia da libertação”, “pan-africanismo” etc. etc. etc.
Segundo: O próprio sr. Villa qualifica o bolivarianismo de “fachada”, mas parece ignorar que toda fachada é fachada de alguma coisa. Como em 2010 Hugo Chávez, reeditando a célebre confissão tardia de Fidel Castro, admitiu publicamente sua condição de marxista, já não é preciso nenhum esforço divinatório para saber o que se escondia por trás do “bolivarianismo”.
Terceiro: No Brasil o termo “bolivarianismo” tem servido sobretudo como subterfúgio eufemístico para evitar a palavra proibida, “comunismo”, que o sr. Villa quer proibir ainda mais.
Aliás esse é um dos fenômenos linguísticos mais lindos de todos os tempos, uma conspiração de duas forças antagônicas que colaboram para silenciar o óbvio.
Os comunistas não querem que ninguém fale de comunismo porque, na estratégia de Antonio Gramsci, a revolução comunista só pode prosperar sob o manto da mais confortável invisibilidade (exemplo, os dezesseis anos de silêncio geral sobre o Foro de São Paulo).
Os anticomunistas também não querem que se fale de comunismo porque precisam que todo mundo acredite que saíram vencedores na Guerra Fria, sepultando o comunismo de uma vez para sempre.
O sr. Villa alista-se decididamente nesta segunda facção:
“Considerar o PT um partido comunista revela absoluto desconhecimento político e histórico… Não passa de conceder sentido histórico ao rançoso discurso da Guerra Fria. O Muro de Berlim caiu em 1989 mas tem gente em Pindorama que ainda não recebeu a notícia.”
Talvez o sr. Villa, que não chegou a 1956, tenha saltado direto para 1989, mas é seguro que não chegou a 2000, quando o filósofo Jean-François Revel, num livro de sucesso mundial (La Grande Parade, Paris, Plon, 2000), fez a pergunta decisiva: Como tinha sido possível que o movimento comunista, desmoralizado na URSS, em vez de desaparecer por completo, crescesse até proporções gigantescas na década seguinte?
As explicações eram muitas: adoção da estratégia gramsciana, troca da antiga estrutura hierárquica por uma organização mais flexível em “redes”, fuga generalizada ante a responsabilidade pelas atrocidades do regime comunista etc. etc.
Mas essas respostas não vêm ao caso, já que o sr. Villa não percebeu nem a pergunta. Não se vende remédio a quem não sabe que está doente.
Que o sr. Villa está doente, não se discute. A estreiteza do seu campo de visão é decididamente anormal. É um tipo de glaucoma intelectual. Só que o doente de glaucoma fisico se queixa quando o seu ângulo visual diminui, ao passo que o sr. Villa se gaba e se pavoneia.
“Estou pouco me lixando para o Foro de São Paulo”, declarou ele na TV tempos atrás, mostrando que, do alto da sua infinita superioridade, uma coisinha de nada como a maior organização política que já existiu no continente não merecia o dispêndio de uma gota sequer dos seus prodigiosos dons intelectuais.
Nós, os primários, os embusteiros, os fascistas, admitimos que nada podemos compreender do PT se o encaramos como um fenômeno estritamente local, fazendo abstração tanto das suas raízes (que remontam à criação da “teologia da libertação” por Nikita Kruschev; leia aqui), quanto das verbas estrangeiras que o alimentaram por décadas ou dos compromissos e conexões internacionais que determinam cada passo na consecução da sua estratégia.
Mas essas coisas são grandes demais para o campo visual do sr. Villa. Ele simplesmente as suprime e, fingindo desprezo ao que ignora, despeja insultos sobre quem as conhece.
Não desejo mal ao sr. Villa. O PT minúsculo que ele enxerga é uma parte do PT real, e ele até que faz o possível para trazer algum dano a esse pedacinho.
O cão de pastor que em defesa do redil se atraca com o lobo não há de achar ruim se um rato, pisoteado por acaso na confusão da luta, inventa de roer o dedão do invasor.

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