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A América brasilianizada

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 4 de janeiro de 2006

Nos EUA, os imigrantes brasileiros são conhecidos como eméritos falsificadores de documentos. Achando muito natural e sempre justo resolver qualquer dificuldadezinha mediante a alteração de datas, nomes, números e fatos, eles têm sido um poderoso estimulante à corrosão da velha “sociedade de confiança” americana e à sua substituição por um sistema rígido de controles estatais e burocráticos. Esse sistema quadra bem com a mentalidade do nosso povo, que prefere ser controlado de fora para não ter de assumir as responsabilidades da vida adulta. Mas, para o americano, que vê sua orgulhosa autonomia individual dissolver-se numa sopa de regulamentos e proibições, ele é a morte. A “democracia na América”, como bem viu Tocqueville, fundava-se na síntese indissolúvel de liberdade externa e self control moral e religioso. O burocratismo socializante inverte a fórmula, fomentando a irresponsabilidade pueril que suscita a proliferação de bedéis, fiscais e sargentos de polícia. O americano tradicional sabia que podia haver governo limitado e liberdade para todos se cada um se governasse a si próprio, lesse a Bíblia e abdicasse de cobiçar a mulher ou os bens do próximo. O estatismo cresce estimulando a inveja e a cobiça generalizadas, adornando de pretextos sofisticados a recusa do autocontrole e a proclamação arrogante do primado do prazer sobre o dever. Por toda parte, aqui, observa-se o avanço implacável do infantilismo socialista sobre a antiga liberdade americana, cujos defensores se batem contra a aliança quase onipotente da burocracia estatal com as fundações bilionárias e a multidão dos ativistas enragés .

Não resta dúvida: os EUA brasilianizam-se.

Os avanços do controle estatal, não é preciso dizer, vêm sempre por iniciativa da esquerda, mas por duas vias opostas, uma positiva, outra negativa, operando segundo o consagrado esquema de uma “pressão de cima” que se opõe dialeticamente a uma “pressão de baixo” para produzir o desejado efeito de conjunto (a estratégia é descrita num famoso documento do Partido Comunista da Tchecoslováquia, escrito por Jan Kozak e divulgado no Ocidente sob o título And Not a Shot Is Fired). Positivamente e “desde cima”, os esquerdistas tornam o aumento do controle estatal sobre a sociedade uma idéia aceitável em nome de programas sociais soi disant beneméritos. Negativamente, “desde baixo”, estimulam o ódio, a revolta e exigências anarquizantes que começam nas puerilidades do “sex’ lib” e culminam na defesa aberta da espionagem e do terrorismo, criando a permanente ameaça do caos que, naturalmente, só pode ser enfrentada por meio de novos acréscimos do poder estatal. A dupla estratégia articula-se, por sua vez, com a duplicidade de discursos. Quando o acréscimo do poder estatal vem pelas mãos da própria esquerda, é utilizado como símbolo de “moderação” e “equilíbrio” para seduzir a parte não-esquerdista do eleitorado. Quando, ao contrário, é a direita que está no poder e se vê obrigada a lançar mão do mesmo mecanismo para deter o avanço do caos alimentado “em baixo” pela esquerda, isso é explicado como sintoma do “totalitarismo” do governo conservador. Bill Clinton era louvado por defender o direito presidencial de mandar espionar terroristas sem ordem judicial, enquanto George W. Bush é chamado de fascista por fazer exatamente a mesma coisa. Num caso, a pretensão presidencial funcionava como prova de que a esquerda não era tão amiga de terroristas quanto se dizia; no outro, como prova de que os conservadores se utilizam do pretexto do terrorismo para ampliar os mecanismos repressivos sobre a sociedade inteira.

O efeito de conjunto dessa quádruplo ataque é devastador, e pode ser explorado ainda, secundariamente, como alimento da propaganda anti-americana nos países periféricos. Observando por alto os avanços do controle estatal nos EUA sem saber como foram produzidos, a platéia do Terceiro Mundo pode ser facilmente persuadida a enxergá-los como provas do “fascismo conservador”.

Muito do que no Brasil se chama de “análise política” consiste somente na repetição desesperadoramente mecânica desse engodo. Carreiras universitárias inteiras constroem-se em cima disso. Os brasileiros, que nos EUA ajudam a fomentar a intromissão da autoridade governamental em tudo, em casa se autolisonjeiam falando mal do governo americano por meter-se em tudo. Não falsificam só documentos, para tirar proveito ilícito do país hospitaleiro que odeiam. Falsificam a imagem inteira desse país, para sentir-se mais honestos que a vítima da fraude que praticam.

Obstinados no erro

Olavo de Carvalho

O Globo, 12 de fevereiro de 2005

O realismo de uma análise política mede-se pela sua eficácia em prever o curso dos acontecimentos. Avaliar por esse critério o meu trabalho de mais de uma década e compará-lo ao de meus concorrentes jornalísticos ou acadêmicos poderia me encher de orgulho profissional, se não me infundisse antes o temor de descobrir, pelos olhares de fogo circundantes, que fui louco o bastante para dizer a verdade a quem não a desejava.

Em 1993, meu livro A Nova Era e a Revolução Cultural já anunciava, contra a lenda da morte do comunismo, a iminente redução da política nacional à disputa de poder entre partidos esquerdistas, bem como a ascensão irrefreável do banditismo ante a passividade complacente de autoridades intoxicadas de afeição marcusiana ao lumpenproletariado.

No meu livro de 1996, O Imbecil Coletivo, a destruição da cultura superior, que agora todos constatam como se fosse a maior novidade, já era estudada e diagnosticada desde as correntes profundas que a preparavam.

A desativação ou subjugação das orgulhosas lideranças regionais que pareciam obstáculos intransponíveis ao crescimento do esquerdismo foi repetidamente prevista nesta coluna, contra os risos de deboche dos sabichões.

Com meses de antecedência, a vitória petista de 2002, que tantos diziam julgar remota e inverossímil, foi proclamada, aqui e em cursos e conferências que dei pelo Brasil, não apenas como certa, mas como inevitável.

A farsa do Plano Colômbia, contra o qual a esquerda só gritava para camuflar sua condição de única beneficiária da iniciativa, foi aqui desmascarada muito antes que se tornassem patentes os seus efeitos incontornáveis: a ascensão das FARC ao controle do narcotráfico na Colômbia e sua consolidação como máxima força armada latino-americana. Previ essas coisas numa época em que os desinformantes de plantão preferiam alertar contra os “paramilitares de direita”, então já em plena agonia.

Quando todos diziam que o caso Waldomiro arriscava derrubar o ministro Dirceu, avisei que até o próprio Waldomiro sairia ileso.

Contra a opinião dos bem-pensantes, anunciei antecipadamente o fiasco do Fome Zero, o crescimento exponencial da corrupção sob os auspícios do “partido ético”, o surgimento de uma facção esquerdista anti-Lula e o rápido arrefecimento da onda de CPIs tão logo deixassem de ser úteis à esquerda. Sempre sob toneladas de escárnio feroz, endossei o prognóstico de Constantine C. Menges quanto à formação do eixo Lula-Castro-Chavez. Etc. etc. etc.

O espantoso não é que eu tenha acertado em tudo isso. Acertar era fácil. Mas por que os outros erraram? Erraram porque insistiram em basear seus diagnósticos em informações de segunda mão ou em conjeturas economicistas pedantes, em vez de cumprir sua obrigação (a primeira em toda pesquisa jornalística ou historiográfica) de ir direto às fontes originais, as atas e resoluções do Foro de São Paulo, que documentavam a formação de uma vasta estratégia comunista de dominação continental, tão ampla no seu escopo e tão astuta no seu preparo que nenhuma força política existente poderia lhe resistir.

Dez anos de previsões furadas são tempo mais que suficiente para que profissionais honestos se deêm conta do seu erro. Mas mesmo agora, quando o estado de coisas já é reconhecido até pela mídia americana chique que tanto idolatram, os luminares do jornalismo nacional continuam firmes na negação do óbvio e cada vez mais enraivecidos contra quem insista em mostrá-lo.

Mesmo quando a agressividade esquerdista tira a máscara e anuncia sua intenção de controlar tudo e todos, os crentes do “Lula mudou” ainda procuram, e não sem sucesso, convencer o público de que não há articulação continental nenhuma, de que o bombardeio de novos ataques à propriedade e à liberdade é apenas um curioso leque de coincidências fortuitas, de que o remédio é redobrar a aposta em Lula na esperança de que ele “contenha os radicais”, como se não estivesse irmanado a eles no compromisso com o Foro de São Paulo, como se intrigas de família pudessem abortar o plano mais ambicioso já criado pela esquerda internacional desde os tempos de Stálin.

 

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