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Fugindo da filosofia

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de setembro de 2012

Na universidade brasileira – e refiro-me somente às mais prestigiadas –, a lógica e a filologia foram consagradas como os refúgios convencionais da impotência filosófica. Ambas constituem, é claro, domínios autônomos, com seus objetos e métodos respectivos, que às vezes podem ser freqüentados indefinidamente sem nenhum suporte filosófico especial, mas que, como todas as demais ciências, podem suscitar problemas de ordem filosófica para os quais não encontram solução dentro dos seus critérios e terrenos próprios.

          Nenhuma das duas é a filosofia, embora ambas prestem a ela os serviços de ciências auxiliares freqüentemente indispensáveis.

          A lógica está para a filosofia como a gramática está para a literatura. Idealmente, espera-se que tudo o que um escritor escreve seja compatível com as regras consagradas da gramática, seja por segui-las em sentido estrito, seja por transcendê-las criativamente, seja por transgredi-las em detalhes menores amplamente compensados – ou até justificados — pelo valor do conjunto. O que não se espera nunca é que um escritor sacrifique a vivacidade direta das suas intuições estéticas às exigências de algum gramático ranheta. Do mesmo modo, espera-se que aquilo que um filósofo diz resista ao teste da consistência lógica, mas não que ele próprio forneça a cabal demonstração lógica de tudo o que disse.

Isso é assim por dois motivos. Primeiro: em filosofia não há cabal demonstração lógica de praticamente nada. Todas as teses filosóficas podem ser recolocadas em questão à medida que se descobrem nelas novas nuances insuspeitadas à primeira vista ou que o desenvolvimento das ciências traz à luz novos aspectos dos seus objetos. Segundo: o trabalho de demonstração lógica exaustiva só é possível em questões filosóficas já longamente elaboradas por uma tradição de interpretações e debates, quando as dificuldades de expressão foram superadas e os conceitos estabilizados. Acontece, por fatalidade, que essa condição quase nunca é cumprida pelas grandes filosofias. O que caracteriza essas filosofias – acima de tudo a de um Platão, a de um Aristóteles – é que desbravam continentes desconhecidos, para os quais não há ainda uma linguagem consagrada nem conceitos descritivos prontos. A busca da perfeita (ou mais perfeita) consistência lógica é antes ocupação de continuadores e epígonos que dos espíritos criadores. Na exploração do desconhecido, uma certa margem de imprecisão e nebulosidade é inevitável. Prova-o acima de qualquer possibilidade de dúvida o fato de que, decorridos dois milênios e picos, ainda se discute o sentido preciso de tais ou quais termos nos escritos daqueles dois filósofos.

É aí, precisamente, que entra a filologia. Sua tarefa é reconstituir a forma e, se possível, o sentido originário dos textos antigos – ou não tão antigos –, de modo a que o estudioso deles tenha em mãos um material confiável, de onde se depreenda com clareza máxima o pensamento dos autores, bem como o seu encadeamento histórico e os seus nexos com o ambiente social e mental das épocas respectivas.

Com isso chegamos um pouco mais perto da filosofia. Estudar e compreender os escritos dos grandes filósofos já é, de algum modo, tomar parte numa atividade filosófica. Tanto que aqueles que a praticam se consideram filósofos. Alguns até acreditam que nisso e somente nisso consiste a filosofia. O prof. José Arthur Gianotti declarou peremptoriamente ser a filosofia, em essência, “um trabalho com textos”. Não lembro se a expressão foi bem essa, mas essa era a idéia.

Essa idéia tem o mérito de demarcar precisamente a diferença entre a filosofia e o que dela se transmite, na melhor das hipóteses, aos estudantes das universidades brasileiras. Estes ocupam-se de textos (quando se ocupam de alguma coisa). Os grandes filósofos, ao contrário, não se dedicavam eminentemente ao estudo de seus próprios textos, nem mesmo ao dos seus antecessores, contemporâneos e concorrentes, mas ao estudo de objetos que existiam antes, fora e independentemente da filosofia: Deus, a vida após a morte, a constituição dos Estados e governos, a sociedade e os costumes, a conduta moral ou imoral dos seres humanos, os sonhos e emoções, a ordem do universo material, a estrutura da realidade. Nenhum desses objetos foi inventado pelos filósofos. Estes os encontraram prontos na experiência da vida (que inclui, é claro, uma parcela de herança filosófica), e fizeram um gigantesco esforço de compreendê-los. Desse esforço sempre fez parte, é claro, a meditação do que os filósofos anteriores – ou os homens cultos em geral – haviam dito a respeito. Aristóteles diz mesmo que o exame das opiniões inteligentes é bom começo de investigação filosófica; e esse começo, decerto, exige a leitura dos textos. A diferença é que Aristóteles os lia para encontrar, justamente, o que não estava neles: o objeto enquanto tal, que só muito parcialmente, e não raro impropriamente, transparecia nas opiniões estudadas. Dito de outro modo, ele usava os textos como perspectivas auxiliares para enriquecer, às vezes por contraste, a sua própria experiência direta dos objetos. Foi nesse sentido que Eric Voegelin aconselhava a seus alunos: “Não estudem a filosofia de Eric Voegelin. Estudem a realidade.”

A transmutação da realidade em conceito filosófico requer uma técnica apropriada, a técnica filosófica, elaborada ao longo de milênios de experiência, que descrevi breve e toscamente no livro A Filosofia e seu Inverso. Essa técnica é especificamente diversa da lógica e da filologia e não pode ser adquirida pelo estudo exaustivo, ou mesmo maníaco, dessas duas disciplinas.

Visão curta e visão mais curta

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de setembro de 2012

O livro dos Trinta e Seis Estratagemas chineses ensina: “Todo fenômeno é no começo um germe, depois termina por se tornar uma realidade que todo mundo pode constatar. O sábio pensa no longo prazo. Eis por que ele presta muita atenção aos germes. A maioria dos homens tem a visão curta. Espera que o problema se torne evidente, para só então atacá-lo.”

As duas perguntas que  o trecho sugere são:

1) Onde estão os germes?

2) Quando os problemas ficam evidentes, aparecem claros para todo mundo
ao mesmo tempo?

 A resposta à primeira pergunta nem é muito difícil. Todas as situações histórico-políticas nascem da ação humana, e a ação nasce da especulação de possibilidades. Quem especula possibilidades são os intelectuais, numa gama que vai desde os estudantes tagarelas, passando pelos ideólogos de partidos, até os assessores e conselheiros de potentados da políticae das finanças, culminando nos círculos discretos ou até semi-secretos de inteligências privilegiadas (como por exemplo a Fabian Society de 1883, o núcleo fundador da Escola de Frankfurt, o grupo de Stefan George ou a tariqah de Frithjof Schuon). Das idéias que aí circulam, algumas são esquecidas, algumas se modificam até tornar-se irreconhecíveis, outras acabam por se transmutar em forças políticas num prazo mínimo de trinta anos.

 Não há um só partido, campanha ou movimento que não tenha começado assim, bem “low profile”. O analista que quer saber para onde a política está indo, ou de onde ela veio, tem pois de se interessar por uma vasta rede de discussões que, para a mídia usual, é de todo invisível: só aparece em livros de poucos leitores, revistas acadêmicas, publicações nanicas, sites especializados, conversações pessoais, documentos reservados.

 Quando as opiniões dos intelectuais brilham nos jornais ou na TV, é porque já não são germes: são aspectos e sintomas do fato consumado, às  vezes empenhados, precisamente, em camuflar-lhe as origens.

É por isso que o comentário jornalístico usual, simples reciclagem estilística do noticiário da véspera, quase nunca acerta em prever mesmo os desenvolvimentos mais inevitáveis da situação.

A inda nos anos 50 o ressurgimento do Islã como força política decisiva, inevitável para meia dúzia de estudiosos, parecia hipótese mítica aos olhos dos luminares da mídia.

A queda da URSS pegou os jornalistas de calças na mão, assim como, dez anos depois, o renascimento mundial de uma esquerda que eles imaginavam defunta.

Até hoje há quem se recuse a perceber a mão da KGB na premeditação da perestroika, ou a fonte globalista de movimentos como o gayzismo e as cotas raciais. E não preciso lembrar aos leitores que o Foro de S. Paulo só apareceu no Globo e na Veja quando já dominava metade da América Latina, tendo portanto saltado repentinamente, miraculosamente, da inexistência para a glória, sem escalas intermediárias.

As ideias, é claro, não surgem como propostas políticas prontas, mas como interpretações da realidade, das quais pode-se deduzir  propostas políticas diversas, e às vezes nenhuma.

A transformação de uma coisa na outra é um processo lento, sutil e complicado. A própria disciplina chamada “história das ideias” está mal equipada para rastreá-lo.

Exemplos de estudos bem sucedidos na área são Fire in The Minds of Men, de James Billington, e Libido Dominandi, de E. Michael Jones, mas mesmo esses “morceaux de bravoure” não exorcisam do meu cérebro aquele sentimento de frustração que Ortega y Gasset assim resumia: “Nunca se escreveu um livro que explicasse satisfatoriamente por que alguém fez alguma coisa.”

 A análise política, mesmo praticada com os maiores escrúpulos de método, está longe de ser uma ciência: é no máximo um empirismo organizado.

Asegunda pergunta baseia-se na observação de que os fatos patentes não se tornam patentes para todo mundo ao mesmo tempo.  Governantes, comandantes militares, chefes de serviços secretos, “big shots” das finanças,  por mais lentos que sejam os seus cérebros, tomam conhecimento das coisas antes da população geral, porque têm assessores bem pagos incumbidos de informá-los. Têm o tempo e os meios, portanto, de desacelerar a divulgação dos fatos, ou de mandar remoldá-los para que pareçam outra coisa.

Quando, após anos, o escândalo explode aos olhos da  população, é  porque já é tarde demais para fazer o que quer que seja a respeito. E mesmo então as partes mais importantes da história permanecem ocultas, esquecidas ou incompreendidas.

Em 1993, quando por obrigações profissionais  eu estudava dia e noite a epidemia de CPIs, duas coisas já haviam se tornado claras para mim:

1) escorado num eficiente serviço particular de inteligência, o PT preparava a tomada do aparelho de Estado e 2) já se guarnecia antecipadamente contra investigações. Usava as leis como escada para elevar-se acima delas. O futuro Mensalão estava ali em germe. Não havia como negar. Mas a diferença entre o que eu lia nos documentos de fonte primária e o que saía na grande mídia era tal, que o partido do Zé Dirceu acabava parecendo mesmo o último bastião da moralidade no meio da roubalheira geral.

Quase duas décadas se passaram antes que a decepcionante realidade das coisas se tornasse patente aos olhos da multidão. A visão curta de que falam os estratagemas chineses torna-se mais curta à medida que se desce das altas esferas para o mundo ilusório do eleitor comum.

O que está acontecendo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 29 de agosto de 2012

A mitologia infantil que a população consome sob o nome de “jornalismo” ensina que o Leitmotiv da história mundial desde o começo do século XX foi o conflito entre “socialismo” e “capitalismo”; conflito que teria chegado a um desenlace em 1990 com a queda da URSS. Desde então, reza a lenda, vivemos no “império do livre mercado” sob a hegemonia de um “poder unipolar”, a maldita civilização judaico-cristã personificada na aliança EUA-Israel, contra a qual se levantam todos os amantes da liberdade: Vladimir Putin, Fidel Castro, Hugo Chávez, Mahmud Ahmadinejad, a Fraternidade Muçulmana, o Partido dos Trabalhadores, a Marcha das Vadias e o Grupo Gay da Bahia.

            A dose de burrice necessária para acreditar nessa coisa não é mensurável por nenhum padrão humano. No entanto, não conheço um só jornal, noticiário de TV ou curso universitario, no Brasil, que transmita ao seu público alguma versão diferente. A história da carochinha tornou-se obrigatória não só como expressão da verdade dos fatos mas como medida de aferição da sanidade mental: contrariá-la é ser diagnosticado, no ato, como louco paranóico e “teórico da conspiração”.

            Como já me acostumei com esses rótulos e começo até a gostar deles, tomo a liberdade de passar ao leitor, em versão horrivelmente compacta, algumas informações básicas e arquiprovadas, mas, reconheço, difíceis de acomodar num cérebro preguiçoso:

            A suprema elite capitalista do Ocidente – os Morgans, os Rockefellers, gente desse calibre – jamais moveu uma palha em favor do “capitalismo liberal”. Ao contrário: tudo fez para promover três tipos de socialismo: o socialismo fabiano na Europa Ocidental e nos EUA, o socialismo marxista na URSS, na Europa Oriental e na China e o nacional-socialismo na Europa central. Gastou, nisso, rios de dinheiro. Criou o parque industrial soviético no tempo de Stálin, a indústria bélica do Führer e, mais recentemente, a potência econômico-militar da China. Nos conflitos entre os três socialismos, o fabiano saiu sempre ganhando, porque é o único que tem a seu serviço a tecnologia mais avançada, uma estratégia flexível para todas as situações e, melhor ainda, todo o tempo do mundo (o símbolo do fabianismo é uma tartaruga). O nazismo, cumprida sua missão de liquidar as potências européias e dividir o mundo entre a elite ocidental e o movimento comunista (precisamente segundo o plano de Stálin), foi jogado na lata do lixo da História; do fim da II Guerra até o término da década de 80, só subsistiu sob a forma evanescente de “neonazismo”, um fantasma acionado pelos governos comunistas para assustar criancinhas e desviar atenções.

O fabianismo nunca foi inimigo do socialismo marxista: adora-o e cultiva-o, porque a economia marxista, incapaz de progresso tecnológico, lhe garante mercados cativos, e também porque sempre considerou o comunismo um instrumento da sua estratégia global. Os comunistas, é claro, respondem na mesma moeda, tentando usar o socialismo fabiano para seus próprios fins e infiltrando-se em todos os partidos socialistas democráticos do Ocidente. Os pontos de atrito inevitáveis são debitados na conta da “cobiça capitalista”, fortalecendo a autoridade moral dos comunistas ante os idiotas do Teceiro Mundo e, ao mesmo tempo, ajudando os fabianos a apertar os controles estatais sobre as economias do Ocidente, estrangulando o capitalismo a pretexto de salvá-lo. Os “verdadeiros crentes” do liberalismo econômico é que pagam o pato: sem poder suficiente para interferir nas grandes decisões mundiais, tornaram-se mera força auxiliar do socialismo fabiano e, em geral, nem mesmo o percebem, tão horrível é essa perspectiva para as suas almas sinceras.

Mas às vezes a concorrência fraterna entre fabianos e comunistas desanda: com a queda da URSS, aqueles acharam que tinha chegado a hora de colher os lucros da sua longa colaboração com o comunismo, e caíram sobre a Rússia como abutres, comprando tudo a preço vil, inclusive as consciências dos velhos comunistas. O núcleo da elite soviética, porém, a KGB, não consentiu em amoldar-se ao papel secundário que agora lhe era destinado na nova etapa da revolução mundial. Admitiu a derrota do comunismo, mas não a sua própria. Levantou a cabeça, reagiu e criou do nada uma nova estratégia independente, o eurasianismo, mais hostil a todo o Ocidente do que o comunismo jamais foi. O fabianismo, que nunca foi de brigar com ninguém e sempre resolveu tudo na base da sedução e da acomodação (inclusive com Stálin e Mao), finalmente encontrou um oponente que não aceita negociar. A “Guerra Fria” foi, em grande parte, puro fingimento: a elite Ocidental concorria com o comunismo sem nada fazer para destruí-lo. Ao contrário, ajudava-o substancialmente. Putin não é um concorrente: é um inimigo de verdade, cheio de rancor e sonhos de vingança. A verdadeira “Guerra Fria” só agora está começando, e aliás já veio quente. A concorrência entre “capitalismo” e “socialismo” foi um véu ideológico para uso das multidões, mas a luta entre Oriente e Ocidente é para valer. Não por coincidência, o fiel da balança é o Oriente Médio, a meio caminho entre os dois blocos. Ali as nações muçulmanas terão de decidir se continuam servindo de instrumento dócil nas mãos dos russos, se aceitam a acomodação com a elite fabiana ou se querem mesmo fazer do mundo um vasto Califado. A elite Ocidental, que fala pela boca do sr. Barack Hussein Obama, parece decidida a fazê-las pender nesta última direção, por motivos que, de tão malignos e imbecis, escapam ao meu desejo de compreendê-los. Isso, caros leitores, é o que está acontecendo, e nada disso você lerá na Folha nem no Globo.

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