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O novo nome do suicídio

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 18 de outubro de 2007

Já citei mil vezes a fórmula de Antonio Gramsci segundo a qual o partido revolucionário deve aspirar à “autoridade onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino” — mas quanto mais penso nela mais vejo razões para repeti-la. Ela é a expressão mais exata da essência mesma do movimento revolucionário, que nasce como usurpação paródica da autoridade divina, tomando em suas próprias mãos a incumbência de castigar todos os pecados e instaurar à força a justiça universal. A motivação profunda de cada revolucionário corresponde com exatidão milimétrica à definição agostiniana do orgulho: “Todos os vícios se apegam ao mal, para que se realize; só o orgulho se apega ao bem, para extingui-lo.” Não há nada de estranho em que o movimento nascido de uma inspiração tão ostensivamente satânica termine por admitir que só pode prosperar macaqueando as qualidades divinas da onipresença e da invisibilidade. Nem me espanta que, nele, essas duas qualidades se fomentem e se fortaleçam uma à outra: quanto mais onipresente, mais invisível — e vice-versa.

Umas décadas atrás, seria inconcebível que a vaga de candidato à presidência dos EUA pelo Partido Democrata tivesse como ocupantes virtuais duas pessoas tão claramente comprometidas com a causa comunista quanto Al Gore e Hillary Clinton. Esta última, declaradamente a candidata predileta de Fidel Castro e de Ahmadinejad, jamais renegou a formação marxista adquirida na militância universitária e é notória pela ajuda que presta a movimentos subversivos e terroristas em várias partes do mundo. Gore, tal como seu pai, deveu toda a sua carreira aos bons préstimos de Armand Hammer, que durante algum tempo se imaginou ser apenas um capitalista casualmente enriquecido por negócios com a URSS, mas que a abertura dos Arquivos de Moscou provou ser de fato um dos dirigentes financeiros do Comintern. Na época da Guerra Fria, as chances de qualquer desses dois na política americana seriam mínimas. Hoje, hipnotizados pela lenda do “fim do comunismo”, os EUA correm o risco de se entregar, alegremente, nas mãos do seu mais antigo e odiento adversário.

É claro também que essa situação só se tornou possível graças a quatro décadas de sabotagem cultural, ao longo das quais as propostas marxistas, laboriosamente adaptadas à linguagem tradicional da política americana, acabaram por se impregnar no “senso comum” de metade do eleitorado, incapaz de reconhecê-las sob a densa camuflagem.

Mas uma ajuda suplementar ao crescimento desse poder onipresente veio da doutrina “realista” de Hans Morgenthau, que, descrevendo a política internacional essencialmente como uma concorrência entre poderes estatais, cobriu com o manto da invisibilidade os esquemas transnacionais, que desde então, e graças sobretudo à nova fórmula de organização em “redes”, vem transcendendo cada vez mais o horizonte de visão dos governos e sobrepujando formidavelmente a sua capacidade de ação. Quando a secretária de Estado Condoleezza Rice, inspirada nessa doutrina, declara que os EUA “não cobram um preço ideológico dos seus parceiros”, isso quer dizer, no fim das contas, que o governo de Washington deixará o comunismo florescer livremente na América Latina contanto que os acordos comerciais e diplomáticos sejam mantidos até o fim do atual mandato presidencial. Toda a esperteza dessa política consiste em salvar provisoriamente as aparências e deixar para o sucessor de George W. Bush uma bomba de efeito retardado. “Realismo” tornou-se o novo nome do suicídio.

Ambiciosos e pusilânimes

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 17 de outubro de 2007

O encontro entre George W. Bush e o Dalai Lama está sendo alardeado (v., http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u337239.shtml) como “um acontecimento histórico” por marcar a posição americana em favor do Tibete e contra a dominação chinesa. É tudo perfumaria. Só o que o governo americano tem feito em relação à China é enchê-la de dinheiro, não só para que ela aumente seus estoques de armas atômicas enquanto os EUA limitam severamente os seus próprios, mas para que ela possa um dia descarregar no mercado os dólares acumulados ao longo das décadas, produzindo uma inflação mastodôntica da qual a economia americana só se recuperará a duras penas. Enquanto isso, as tropas de ocupação chinesas já mataram um milhão de tibetanos e não sofreram outra represália senão a gentil declaração do Dalai Lama de que o comunismo, no fim das contas, se baseia em altos ideais. Uma reunião entre o líder religioso budista e o presidente dos EUA causa menos preocupações aos generais de Pequim do que o novo desenho da Disney, “Os Dez Mandamentos”, que arrisca engrossar a onda avassaladora de conversões de chineses ao cristianismo (se bem que a produtora proibiu o nome “Deus” nos cartazes do filme).

As expectativas otimistas quanto ao apoio que Washington pode dar ao Tibete são da mesma ordem daquelas previsões que, uma década e meia atrás, juravam que a abertura à economia de mercado acabaria por democratizar o regime chinês. O 17º. Congresso do Partido Comunista da China, antecedido da tradicional e infalível onda de prisões de dissidentes, está aí para mostrar que as relações entre economia e poder político não obedecem à lógica linear dos administradores de empresas, mas a um jogo dialético sutil no qual os comunistas ainda são os maiores experts.

Por falar em 17º. Congresso, é bom lembrar que partidos comunistas de linha chinesa existem e atuam livremente em todas as democracias ocidentais, sem que jamais ocorra a seus adversários liberais e conservadores a idéia óbvia — e moralmente obrigatória — de responsabilizá-los judicialmente pela cumplicidade com os maiores crimes contra a humanidade já cometidos por algum governo deste mundo.

No Brasil, o PC do B continua a derramar lágrimas de crocodilo por conta de umas dúzias de terroristas mortos pela ditadura, ao mesmo tempo que cospe na memória dos milhões de vítimas civis de Stalin e Mao Dzedong, celebrando estes dois ogros como heróis, libertadores e quase santos.

O culto lamuriento aos “nossos mortos”, coexistindo com o soberbo e indisfarçado desprezo aos cadáveres do outro lado, é um dos traços mais salientes da mentalidade comunista e a prova cabal de que ela desconhece por inteiro a compaixão e o amor ao próximo, embora saiba usar seus sinais exteriores para efeito de propaganda quando lhe convém.

A tolerância obscena de tantos liberais e conservadores para com essa conduta sociopática faz com que eles compartilhem da sua abjeção e percam o restinho de dignidade que poderia diferenciá-los dos comunistas.

Pois os nossos senadores, xingados de servos do imperialismo por Hugo Chávez, não se apressaram em aplacar a ira do ditador venezuelano, mostrando subserviência ao comunismo internacional mediante uma homenagem imoral e descabida a Che Guevara, talvez por se identificarem, no fundo, com esse príncipe dos covardes?

No Brasil como no mundo, a mistura da ambição ilimitada de uns com a cumplicidade pusilânime de outros é a fórmula infalível de todas as desgraças.

Incomparáveis

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 15 de outubro de 2007

Trinta anos atrás, em 12 de outubro de 1977, uma grave crise no meio militar levou à demissão do ministro do Exército, general Sylvio Frota, pelo presidente Ernesto Geisel. As causas foram muitas, e o próprio Frota as descreve com abundância de detalhes em seu livro de memórias, Ideais Traídos (Rio, Zahar, 2006), mas no fundo de tudo havia uma divergência ideológica insanável. Frota permanecia rigidamente fiel ao objetivo do movimento de 31 de março de 1964, que era livrar o país do comunismo. Geisel abriu o caminho para que os comunistas tomassem o país de volta, deu dinheiro dos nossos impostos para ajudar Cuba a matar uns dez mil angolanos e instalar uma ditadura socialista na antiga colônia portuguesa, inchou a burocracia estatal o quanto pôde e diluiu a velha aliança entre o Brasil e os EUA, mesmo ao preço de assinar um desastroso acordo de energia nuclear com a Alemanha. Dizem que fez tudo isso inspirado pelo grão-estrategista do regime, general Golbery do Couto e Silva. Não sei. O que sei é que, das duas uma: ou ambos eram, em segredo, cúmplices da esquerda, ou eram totalmente cegos para os resultados previsíveis de suas ações. Qualquer que fosse o caso, quem examinasse objetivamente a política de Geisel naquela época, com um pouco de compreensão do processo histórico, poderia prever que seu desenlace a médio ou longo prazo seria precisamente o que foi: os comunistas no poder, a obra do movimento de 1964 destruída, as Forças Armadas sucateadas e humilhadas, o triunfo geral da desordem e do crime em estreita parceria com a revolução continental. Pelo pecado de ter compreendido a realidade, o general Sylvio Frota perdeu o cargo e ainda foi carimbado como um linha-dura grosseirão, incapaz de ombrear-se ao superior tirocínio dos iluminados Geisel e Golbery.

Não, não estou lamentando o fim da ditadura. Não gostei do regime militar enquanto durou, nem lhe perdôo agora seus inumeráveis pecados, a começar pela ruptura da promessa de eleições livres em seis meses, pela destruição da maior liderança civil anticomunista que este país já teve — Carlos Lacerda –, e pela fuga ao dever do combate cultural, que, se empreendido em tempo, não só teria frustrado de antemão as ambições belicosas mais imediatas da esquerda, livrando as Forças Armadas de comprometer-se na subseqüente “guerra suja”, mas teria também estrangulado no nascedouro o projeto gramscista que, protegido sob a atenção exclusiva dada pelo governo militar às ações da esquerda armada, teve tempo de crescer em silêncio e transformar-se no que é hoje.

O que quero dizer é simplesmente que não há comparação possível entre os males da ditadura nacional e o caos ignóbil e sangrento que a esquerda prometia ao país. Prometia e, decorridas quatro décadas, está realizando. Cinqüenta mil homicídios por ano, a corrupção endêmica e incontrolável, a juventude intoxicada e imbecilizada pelas drogas enquanto o governo afaga a cabeça das Farc, o Estado transformado em apêndice do PT e agência de empregos para militantes, a educação nacional reduzida à pregação comunista mais estupefaciente, a Amazônia desnacionalizada desde dentro pela subversão descarada das “nações indígenas” e de fora pelo intervencionismo galopante das ONGs e da ONU – é preciso ser muito sonso para imaginar que tudo isso é mero acúmulo casual de incompetências e não a realização metódica de uma gigantesca engenharia da destruição.

Também não há comparação possível, na esfera moral, entre os oficiais militares brasileiros – a última categoria de pessoas nas quais o povo ainda deposita alguma confiança – e os comunistas que hoje se fazem de seus juízes, preparando-se velozmente para tornar-se seus carrascos.

Basta examinar um só aspecto da psicologia comparada, entre os dois grupos, para notar a diferença medonha.

Ninguém, nas nossas Forças Armadas, enaltece os excessos e brutalidades cometidos em nome do movimento de 1964. Seja entre os remanescentes da época, seja entre os oficiais mais jovens, todos entendem que uma coisa é combater guerrilheiros em campo aberto, outra completamente diversa é torturar, estrangular ou matar à míngua prisioneiros desarmados.

Mas quem, na esquerda, admite que esses crimes não são piores do que matar inocentes com atentados a bomba, seqüestrar e matar representantes de outros países, assaltar bancos e, last not least, esmigalhar a coronhadas a cabeça de um prisioneiro amarrado?

Quem, na esquerda, admite que, se estes delitos foram anistiados, aqueles também o foram de uma vez para sempre? Quem, na esquerda, entende que não há crimes bons e crimes ruins, que tudo o que é feito contra a lei e contra a moral é mau em proporções iguais?

Não, não há nada que os apóstolos da igualdade abominem mais do que a igualdade de valor entre as vidas humanas. As deles valem o infinito. As dos outros, nada.

Eles cobram tão caro os seus trezentos militantes mortos pela ditadura brasileira, e ao mesmo tempo barateiam de tal modo os cem milhões de vítimas civis do comunismo internacional, que nenhum observador em seu juízo perfeito, vendo tão patente e brutal desproporção, pode deixar de saber que está diante de sociopatas perigosos, desprovidos dos mais elementares sentimentos humanos de eqüidade e justiça.

Não é admissível que uma pessoa adulta, supostamente razoável, pese vidas humanas numa balança tão obviamente viciada, concedendo a umas a dignidade intocável do sagrado e atirando distraídamente as outras ao lixo como detritos ocasionais do processo histórico (isso quando não lança sobre elas mesmas a culpa do acontecido, por sua obstinação pecaminosa de rejeitar a oferta do paraíso comunista), e depois ainda queira posar de bem intencionada, generosa e carregadinha de virtudes evangélicas.

O comunismo, como o nazismo ou qualquer outra ideologia revolucionária, é uma hedionda tara moral, e nenhum indivíduo que tenha sua mente deformada por ela, no grau mais modesto que seja, deve ser considerado um interlocutor confiável nem mesmo em puros debates de idéias, quanto mais na politica prática, com todas as conseqüências que desencadeia sobre a vida das multidões.

Nenhum conservador, por mais que odeie o comunismo, aceitará jamais a proposta de erradicá-lo do mundo mediante a liquidação de cem milhões de comunistas. Ser conservador é precisamente recusar, com todas as forças, a idéia insana de que alguém tenha o direito à prática da violência generalizada em nome da promessa de um futuro vago e hipotético, a ser cumprida em data incerta e por um preço incalculável. Para os comunistas, ao contrário, essa idéia não só é natural como obrigatória, pois é ela que os transforma naquilo que Che Guevara chamava de “o escalão mais alto da espécie humana”. A expressão está aliás reproduzida na breve coletânea de frases memoráveis do ex-ministro cubano da Economia, que o dr. Emir Sader reuniu e fez preceder de considerações apologéticas tão enfáticas que raiam a hagiografia pura e simples. Leiam e verão: é difícil saber quem é mais psicótico, o culto do Che ou o próprio Che. Aquela mistura de ódio sanguinário, auto-admiração desmedida e sentimentalismo kitsch é por si um mostruário de psicopatologia, e o fato de que nem o antologista nem seus leitores percebam o grotesto da coisa é mais sintomático ainda.

Exemplo: “Nosso sacrifício é consciente. É a cota que temos de pagar pela liberdade que construímos.” O sujeitinho mata milhares de civis desarmados, e diz que quem faz o sacrifício é ele.

Quem pode esperar resolver suas divergências com um celerado desses mediante a convivência democrática, tapinhas nas costas e argumentos racionais? Sylvio Frota tinha razão: a “abertura” do general Geisel abriu mesmo foi as portas do inferno.

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