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Malícia demais é ingenuidade

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde
, 14 de fevereiro de 2002

Os líderes da esquerda brasileira já ultrapassaram, em malícia, hipocrisia e mendacidade, tudo o que se pode tolerar em cidadãos que se pretendam dignos de respeito.

Diante de certos casos de homicídio e seqüestro, puseram-se a trombetear aos quatro ventos que se tratava de crimes políticos “da direita”, embora não se conheça neste país nenhuma organização direitista armada e embora a própria direita desarmada não exista politicamente, estando diluída, enfraquecida e inibida ao ponto de não ser sequer capaz de se defender verbalmente quando acusada das piores coisas.

Uma bela cama-de-gato já vinha sendo montada no Ministério da Justiça contra a isolada e inerme TFP (Tradição, Família e Propriedade), sob a alegação grotesca de que os guardas profissionais contratados por alguns fazendeiros, membros dessa entidade, para a proteção de suas terras contra invasores do MST, eram na verdade guerrilheiros direitistas, prontos para uma investida fatal contra as instituições democráticas.

Ao mesmo tempo, os serviços de inteligência militar, ao manter sob observação discreta brasileiros ligados de algum modo à narcoguerrilha colombiana, foram denunciados na imprensa por espionagem ilegal, sem que os denunciantes sequer reparassem que, ao alardear uma coisa dessas, confessavam automaticamente seu próprio crime de espionagem ilegal cometido contra as Forças Armadas. Novamente, a tal “direita”, débil e amedrontada, preferiu suportar calada a pecha de criminosa atirada em seu rosto por aqueles que no mesmo ato delinqüiam contra ela. Provou, com isto, que nada se lhe pode imputar de criminoso, exceto a criminosíssima omissão dos que se deixam matar por medo de apanhar.

Os assassinatos dos prefeitos de Campinas e Santo André, embora não envolvessem nem de longe o nome de qualquer direitista conhecido, desconhecido ou inventado, mas só os de amigos e correligionários desses políticos, foram também, contra toda evidência, explicados como atentados políticos “da direita”.

Sob as desculpas mais esfarrapadas e pueris que algum cara-de-pau já ousou conceber, tudo estava enfim preparado para uma caça às bruxas da inexistente direita armada, quando, repentinamente, a expressão “crime político” se tornou perigosa para a própria esquerda e foi banida às pressas do vocabulário decente.

Ao revelar-se que Maurício Hernandez, seqüestrador de Washington Olivetto, era um dos chefes da “Frente Patriótica Manuel Rodriguez”, braço armado do Partido Comunista Chileno, a esquerda nacional em peso, da senadora Heloísa Helena ao ministro da Justiça, e incluindo no côro o próprio seqüestrado, que preferiria perder a vida a dizer uma só palavra prejudicial ao esquerdismo, se ergueu para proclamar a uma só voz: “Não é crime político! Não é crime político!”

Propalada como certeza absoluta e apriorística, essa assertiva vinha com a finalidade mais que evidente de reprimir como conspiração direitista qualquer veleidade de investigar mais em detalhe as notórias ligações do sr. Hernandez com o QG cubano da revolução continental (v. a excelente matéria de Cláudio Camargo na revista “Isto É” de 13 de fevereiro, pp. 32-33). Alguns, para dar-lhe mais credibilidade, chegaram a apregoar seu desprezo a um cidadão que seqüestrava e torturava por dinheiro em vez de fazê-lo, como é próprio dos homens de bem, por ódio político e desejo de poder.

Mais torpemente ainda: contrastando com o benefício que um dia se concedeu aos seqüestradores de Abílio Diniz por exigência unânime do “beautiful people” esquerdista, a recusa do Ministério da Justiça de extraditar o criminoso é exibida como prova de rigor justiceiro e superior imparcialidade, sem que uma única alma falante se lembre de observar que, em 1989, a extradição era vantajosa para os acusados, que em seus países seriam logo postos em liberdade, como de fato o foram, ao passo que o sr. Hernandez, com uma condenação transitada em julgado no Chile, tem tudo para desejar permanecer no Brasil e certamente agradece, comovido, a afetação de intransigência do nosso ministro da Justiça.

Todo o falatório esquerdista das últimas semanas é tão obviamente maldoso, tão obviamente fingido, tão obviamente posado, que até eu, que não morro de amores pela esquerda, estou surpreso com essas manifestações infladas e hipertróficas de hipocrisia maquiavélica. Pois até a mais refinada malícia, quando passa de certos limites, se torna uma forma de ingenuidade patológica.

Uma lei e suas conseqüências

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 29 de dezembro de 2002

A notícia de que a Assembléia gaúcha aprovou uma lei contra “o preconceito e a discriminação” dos homossexuais merece algum exame.

A Constituição e o Código Penal já contêm garantias suficientes contra qualquer tipo de discriminação que venha a ser sofrida por cidadão brasileiro. Especificar essas garantias para uma classe em especial ou é uma redundância, ou tem uma intenção embutida que vai além da mera salvaguarda de direitos óbvios. Neste último caso, ela confere a determinado grupo um privilégio que os outros não têm. A conseqüência é óbvia: o homossexual, protegido de críticas à sua conduta erótica, está livre para criticar à vontade o religioso cujas escrituras sagradas condenem explicitamente essa conduta. A especificação nada acrescenta à proteção do homossexual, mas legitima a discriminação do religioso. É claro que isso não estava na intenção dos deputados gaúchos. Eles simplesmente seguiram a moda e a mídia, sem examinar as fontes intelectuais da idéia que absorveram e, portanto, as conseqüências de mais vasto alcance que serão geradas pela sua conversão em lei.

Os pretensos “direitos dos gays” são parte de um vasto front cultural aberto por intelectuais ativistas numa nova estratégia de combate inspirada na Escola de Frankfurt, no filósofo marxista húngaro Gyorgy Lukacs e em Antonio Gramsci. O fundamento da estratégia é a máxima de Lukacs de que a destruição da democracia capitalista requer, antes, a demolição das bases morais e intelectuais da civilização ocidental. A principal dessas bases é a ética judaico-cristã, bombardeada de todos os lados e sob uma impressionante variedade de pretextos, de modo que a opinião pública, cada vez mais alerta para pequenos arranhões no orgulho gay, lésbico, feminista, etc., está completamente dessensibilizada para o fato brutal das perseguições religiosas, hoje mais intensas do que nunca. Michael Horowitz, historiador judeu, o mais informado pesquisador na área, informa que pelo menos 150.000 cristãos são assassinados anualmente pelas ditaduras comunistas e muçulmanas — enquanto, indiferente a isso, o Ocidente se ocupa de dar força de lei a caprichos e pretensões grupais concebidos para criar hostilidade à religião e anestesiar a sensibilidade do público ante a gravidade do genocídio continuado.

A bibliografia existente sobre o assunto é vasta, mas permanece fora do alcance do nosso público. Vale consultar, no mínimo, Judith Reisman (Kinsey: Crimes and Consequences), E. Michael Jones (Libido Dominandi: Sexual Liberation and Political Control) e Daniel Flynn (Why The Left Hates America), bem como o número especial da revista Whistleblower dedicado a “The Gay Rights’ Secret Agenda”.

A estratégia é implementada por uma tática, também bastante conhecida.

Primeiro: Algum subintelectual a serviço de partido, grupo de interesse ou ONG levanta uma hipótese pseudo-científica rebuscada e caluniosa que, mal termina de ser formulada, já se alardeia na mídia como verdade provada e moralmente obrigatória.

Segundo: Qualquer tentativa de discuti-la é recebida com tamanhas manifestações de escândalo que o possível contestador perde o embalo de continuar pensando no assunto, por medo de ser chamado nazista, racista, homofóbico, etc.

Terceiro: Com base na hipótese, tiram-se conclusões e aplicações para vários domínios do conhecimento e da ação, começando pelo estabelecimento de novos critérios para o julgamento de questões morais, históricas, políticas, etc., e terminando pela promulgação de novos códigos que dão a esses critérios o estatuto de obrigações legais.

Quarto: Você mal acabou de tomar conhecimento do assunto e pensa em dizer algo a respeito, quando de repente percebe que ao fazê-lo não estará enfrentando um debate acadêmico ou jornalístico, e sim uma queixa policial.

A fórmula é: escamotear o debate. Não dar tempo para ninguém pensar. Esmagar os contestadores, não com argumentos, mas com insultos, com reações histéricas de indignação e, se possível, com processos judiciais. Saltar direto da expressão de uma vontade à ação que a impõe como fato consumado. A tática é denunciada com impiedoso realismo por uma líder feminista, lésbica, apenas sincera demais para ser cúmplice de tanta perfídia: leiam The New Thought Police, da linda e corajosa Tammy Bruce.

Tal é, em essência, o sentido da “ação afirmativa”. Você não encontrará essa definição em nenhum panfleto gay, neo-racista, lésbico, indigenista ou ecológico. Dirão apenas que se trata de políticas piedosas destinadas a compensar os danos que a sociedade infligiu a grupos minoritários ou à pobre Mãe Natureza. Mas, em boa lógica, a definição que descreve uma política tão-somente pelos seus elevados objetivos professos, fazendo abstração do modo de agir concreto destinado a atingi-los, não é definição: é propaganda. Substantivamente, a ação afirmativa é esquema de transformação social adaptado da tática de “ação direta” preconizada por Georges Sorel, teórico da violência no socialismo e no fascismo. Seus inventores bem sabem disso, mas a massa dos militantes contenta-se com a definição eufemística, condenando como odiosa manobra reacionária qualquer tentativa de exame das ações concretas. O apelo à camuflagem, a recusa de submeter-se a critérios objetivos de veracidade e moralidade, já comprovam que os altos propósitos alegados por esses movimentos são mentirosos até à raiz.

No fundo, o que está em jogo não é a proteção dos negros, nem dos gays, nem das mulheres, nem da Mãe-Terra nem de quem quer que seja. Tudo isso é apenas pretexto de ocasião para promover o anti-americanismo, o ódio à civilização judaico-cristã e o embelezamento de regimes ditatoriais e genocidas.

A prova mais eloqüente da total insinceridade desses movimentos é a pressa indecente com que abdicam de suas metas e aderem às políticas contrárias sempre que isso convenha à estratégia maior do esquerdismo internacional. O movimento gay norte-americano, que vive ciscando casos reais e imaginários de discriminação em toda parte, fez o diabo para proibir a exibição de filmes sobre a perseguição anti-gay em Cuba, país onde a repressão oficial aos homossexuais chega a requintes que nem Stálin teria imaginado. Com igual descaramento, na passeata anti-EUA e anti-Israel de 20 de abril de 2002 em Nova York, líderes feministas enragées manifestaram seu apoio irrestrito às ditaduras muçulmanas, os regimes mais machistas que já existiram no universo.

Tudo isso sugere uma pergunta dolorida: Terá valido a pena o Rio Grande livrar-se do governo petista, se for para ceder tão docilmente, por inocência intelectual, ante as exigências mais gerais da ideologia que o inspirava?

Mais paralaxe

Olavo de Carvalho

O Globo, 28 de dezembro de 2002

Alguns leitores pedem-me mais explicações sobre a tal “paralaxe conceitual” que mencionei outro dia. Vou tentar.

Toda afirmação filosófica sobre a realidade em geral, a humanidade em geral ou o conhecimento em geral inclui necessariamente, entre os objetos a que se aplica, a pessoa real do emissor e a situação de discurso na qual a afirmação é feita.

O que quer que um homem diga sobre esses assuntos ele diz também sobre si mesmo. Ninguém tem o direito de constituir-se, sem mais nem menos, em exceção a uma teoria que pretenda versar sobre o gênero ou espécie a que ele próprio pertence.

Essa elementar precaução metodológica foi negligenciada por praticamente todos os filósofos mais importantes do ciclo dito “moderno”, assim como por muitas das escolas de pensamento que dominam o universo intelectual contemporâneo.

Em resultado, temos uma imponente galeria de doutrinas que nada nos dizem sobre o mundo em que foram produzidas, nem muito menos sobre as pessoas reais que as criaram, mas tudo sobre um mundo inventado que não as inclui e que elas se limitam a observar desde fora, desde um imaginário posto de observação privilegiado. Esse posto de observação corresponde, estrutural e funcionalmente, ao do “narrador onisciente” nas obras de ficção, o qual não é afetado pelo curso dos acontecimentos narrados. Construídas com uma técnica ficcional, mas totalmente inconscientes do expediente que empregam, essas filosofias são obras de ficção que não ousam se apresentar como tais.

Alguns exemplos:

1) Descartes diz que vai examinar seriamente os seus próprios pensamentos, e começa a fazê-lo sob forma de introspecção autobiográfica. No meio do caminho, perde o fio do seu eu pessoal e concreto, do seu eu biográfico, e começa a falar de um eu genérico e abstrato, o “eu filosófico”. Ele nem se dá conta do salto, e acredita continuar fazendo autobiografia quando está fazendo apenas construção lógica. Ele acaba acreditando que é realmente esse eu filosófico, sob cuja sombra o eu real desaparece por completo. Resultado: sua auto-observação cai nos erros mais grosseiros, como por exemplo o de esquecer que a continuidade temporal do eu é um pressuposto do cogito e não uma conclusão obtida dele.

2) David Hume diz que nossas idéias gerais não têm valor cognitivo nenhum, porque são apenas aglomerados fortuitos de sensações corporais. Em nenhum instante ele se dá conta de que a filosofia de David Hume, compondo-se ela própria de idéias gerais assim formadas, também não pode valer grande coisa. O estado de alienação do filósofo ao criar sua filosofia não poderia ser mais completo.

3) Maquiavel ensina que o Príncipe deve conquistar o poder absoluto e em seguida livrar-se dos que o ajudaram a subir. Ora, quem pode ter ajudado mais ao Príncipe do que o filósofo que lhe ensinou a fórmula da conquista do poder absoluto? Se o Príncipe o levasse a sério, ele próprio, Nicolau Maquiavel, seria o primeiro a ser jogado no lixo junto com o seu livro, prova do crime. Contrariando o louvor geral que consagra Maquiavel como o primeiro observador “realista” da política, o Príncipe é um modelo idealizado que só pode ser descrito em literatura precisamente na medida em que nenhum contemporâneo logre encarná-lo na realidade. A alienação chega ao cúmulo quando Maquiavel diz que todos os males do Estado vêm dos intelectuais contemplativos que, não podendo atuar na política, teorizam sobre ela — o que é precisamente o que ele está fazendo. Aliás, Otto Maria Carpeaux já havia assinalado que a visão que Maquiavel tem da política não é política: é estética.

4) Karl Marx assegura que só o proletariado, por ser a última e extrema vítima da alienação, pode apreender realisticamente o curso inteiro do processo alienante e, por isso, libertar-se dele. Só o proletariado, em suma, tem adequada consciência histórica. Mas não é mesmo uma coisa extraordinária que o primeiro, logo o primeiro a personificar essa consciência proletária seja um burguês? Não digo que isso seja impossível, mas, à luz da teoria marxista, é uma exceção notabilíssima e improvável. Karl Marx passa sobre ela com a maior inocência, sem nem de longe notar um desvio de foco, uma paralaxe entre o personagem que representa e o conteúdo das suas falas. No mundo de Karl Marx, não existe Karl Marx.

E por aí vai. Ao exame meticuloso desses e de muitos outros casos similares tenho dedicado meus cursos desde há alguns anos. O lado mais interessante é a crítica ficcional da filosofia ficcional. De fato, os melhores observadores críticos da alienação filosófica foram os escritores de ficção, principalmente Dostoiévski, Kafka, Pirandello, Ionesco e Camus. Os Demônios, O Processo, Henrique IV, O Rinoceronte e O Estrangeiro são peças de um imenso requisitório literário contra as pretensões da filosofia moderna. Vale aí o contraste delineado por Saul Bellow entre o “intelectual” e o “escritor”: de um lado, o construtor de alienações elegantes; de outro, o porta-voz das “impressões autênticas”, verdades às vezes simplórias que estouram o balão intelectual. Já viram, né? Quando eu crescer, quero ser “escritor”.

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Falando em alienação: nosso presidente eleito parece não ter idéia da encrenca em que se meteu ao adotar uma linha de ação que subentende a conciliação do inconciliável: de um lado, a aliança Lula-Bush; de outro, Lula-Chávez. Talvez ele esteja feliz demais com sua ascensão social para poder pensar nessas coisas horríveis.

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Quando Constantine C. Menges previu a iminente criação de uma aliança Lula-Chávez, a mídia tupiniquim em peso se reuniu para fazer-lhe a caveira. Bem, agora a aliança está aí. Foi feita mediante ostensiva tomada de partido do futuro governo brasileiro numa disputa interna venezuelana, e os jornalistas que participaram da campanha anti-Menges não têm sequer a hombridade de reconhecer: “Erramos.”

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