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A desvantagem de ver

Olavo de Carvalho


Época, 13 de outubro de 2001

Onde ninguém sabe nada, quem sabe fala sozinho

A mídia não influencia a opinião pública só por esta ou aquela notícia em particular, por esta ou aquela opinião em particular. É a seleção repetida, a reiteração prolongada das menções e omissões que vai forjando aos poucos o molde mental que, uma vez consolidado, só um trauma coletivo pode quebrar. Um terremoto, uma guerra, uma epidemia têm a virtude de sacudir hábitos longamente sedimentados. Mas mesmo essas hecatombes têm de ser noticiadas, e seu efeito despertador pode então ser controlado e reduzido a proporções inofensivas. A eficácia desse controle depende menos de alguma ação de emergência que da solidez acumulada dos muros de arrimo convencionais.

No Brasil, esses muros são talvez o caso de máxima durabilidade já constatado fora da Cortina de Ferro.

Os atentados de 11 de setembro poderiam, de um só golpe, mudar a visão que os brasileiros têm do mundo, como mudaram a dos americanos. Depois desses acontecimentos, não sobra muita gente nos Estados Unidos que não ponha em dúvida tudo o que ouviu contra seu país desde a década de 60. Diante da queda do WTC, é difícil um americano adulto não se perguntar se seus ídolos de juventude, Jane Fonda, Susan Sontag ou Noam Chomsky, não foram apenas traidores que ajudaram a condenar o Vietnã à tirania e à miséria, enquanto os países vencidos pelos EUA cresciam em riqueza e liberdade.

Mas o impacto dessa descoberta não chegou até nós. Foi amortecido no caminho. Neste país, a mitologia antiamericana dos anos 60 resiste bravamente, revigorada não somente pela vociferação repetitiva de lugares-comuns da época, vendidos como explicações cabais dos fatos de hoje, mas pela completa exclusão das informações que poderiam mudar o pano de fundo, o quadro básico de referência desde o qual são interpretadas as novidades do dia.

Nunca, nunca saiu num jornal ou revista deste país qualquer notícia, por mais mínima que fosse, sobre a oposição feroz, geral e obstinada que os conservadores americanos movem ao FMI, à ONU e, enfim, às políticas globalistas. Há mais de uma década nosso povo é diariamente enganado quando os jornalistas o levam a acreditar que globalismo, americanismo e conservadorismo estão de mãos dadas para oprimir o pobre Terceiro Mundo.

Metade do eleitorado dos EUA vê a Nova Ordem Mundial como um projeto socialista, anticristão e antiamericano. Foi essa gente que, mal ou bem, escolheu George W. Bush. A turma do globalismo, dos organismos internacionais, das ONGs que comem territórios e poderes soberanos dos Estados nacionais, essa votou em peso em Al Gore, um homem cuja família deveu sua prosperidade ao patrocínio de Armand Hammer, megaempresário que a abertura dos Arquivos de Moscou revelou ser um agente financeiro do Comintern.

Assim como essas, milhares de outras informações básicas, de domínio público nos EUA e na Europa, não têm chegado até nós. Mas bastariam essas, talvez, para mudar de um relance toda a perspectiva com que o brasileiro vê o mundo. Bastariam essas notícias, talvez, para estourar a barragem de clichês com que ele é mantido longe da realidade.

Por isso essas notícias não saem. Por isso quem as conhece tem uma enorme dificuldade quando tenta mostrar à luz delas os novos acontecimentos. Para persuadir o público, ele precisaria remover todo um corpo de premissas e pressupostos sedimentado por décadas de repetição na imprensa, nas cátedras, nas rodas de intelectuais bem-pensantes. Ele precisaria vencer todo um conjunto de hábitos e reflexos coletivos, toda uma cultura do engano construída por duas gerações de mentirosos esforçados e macaqueadores preguiçosos. Não há argumentação isolada, por mais poderosa que seja, que consiga fazer essa mágica.

Dizem que em terra de cego quem tem um olho é rei. Pode ser. Mas uma coisa é certa: quem tem os dois passa por louco.

007, Debi e Lóide

Olavo de Carvalho

O Globo, 13 de outubro de 2001

Nada como a ignorância para tornar um povo dócil à propaganda. Privado de informações substanciais sobre o movimento comunista, o leitor brasileiro de hoje aceita como jornalismo de alto nível toda a tagarelice esquerdista grosseira que antigamente só sairia em “Voz Operária” ou “Novos Rumos”.

Depois da farsa articulada por promotores públicos e jornalistas para usurpar das Forças Armadas o controle de seus serviços de inteligência, agora vem uma artificiosa operação destinada a fomentar entre os brasileiros a onda de antiamericanismo tão ardentemente sonhada pelos Bin Ladens de todos os continentes.

A coisa começou no “Jornal do Brasil” de 7 de outubro, com uma entrevista por telefone com um tal sr. Robert Muller Hayes, apresentado como ex-agente da CIA lotado no Brasil durante o regime militar. Segundo os dois repórteres que o entrevistaram, esse cidadão, em depoimento secreto ao Senado americano em 1987, “revelou um plano, elaborado em 1976 por colaboradores da CIA, para realizar um atentado que seria atribuído às organizações de esquerda”.

Não ocorreu aos entrevistadores perguntar ao sr. Hayes por que o governo americano arriscaria seus agentes num golpe de teatro destinado a fazer de conta que a esquerda brasileira jogava bombas, num momento em que ela de fato as jogava em profusão. Só até 1968 — antes do endurecimento político que veio a servir de pretexto retroativo para legitimar a violência esquerdista — 84 delas já tinham explodido. Com tantas provas autênticas na mão, nenhum serviço de inteligência pensaria em inventar uma falsa. Só um serviço de burrice.

O conhecimento, dizia Aristóteles, começa com o espanto. Quando um repórter aceita prima facie uma esquisitice dessas, sem reação, sem uma pergunta sequer, então das duas uma: ou ele não quer conhecimento nenhum, ou é por sua vez agente secreto de um serviço de burrice.

Mas a estranheza do sr. Hayes não pára aí. Há o tal depoimento secreto. Dizem que houve um, mas não revelam se foi divulgado ou se continua secreto. Na primeira hipótese, por que ele não aparece? Na segunda, ele só é conhecido pelas declarações do sr. Hayes ao JB e a prova da sua existência repousa inteiramente na confiabilidade do entrevistado. Mas testar essa confiabilidade nem foi preciso, pois o próprio sr. Hayes se incumbiu de reduzi-la a zero ao confessar que trabalhou tanto para a CIA quanto para a Alemanha Oriental (comunista). Como é possível que dois repórteres maiores de idade ouçam um sujeito confessar que era agente duplo, e nem lhes ocorra perguntar se suas ações no Brasil não eram também duplas? Pois, se o tipinho servia aos americanos e aos comunistas, como saber se sua tarefa era a de montar atentados para inculpar os comunistas ou a de simular malvadezas da CIA para inculpar os americanos?

Mas o mais lindo está para vir. Os repórteres enaltecem o “currículo” de missões cumpridas pelo sr. Hayes para os serviços secretos dos EUA, com passagens pela Agência de Segurança do Exército (ASA), pela Agência Nacional de Segurança (NSA), pelos Boinas Verdes e pelo FBI. Só depois dessa longa e insólita experiência profissional o sr. Hayes teria entrado na faculdade, sendo então designado para espionar agitações acadêmicas, tarefa que ele cumpriu com o seguinte critério: “Se um professor me desse uma nota ruim, eu dizia que ele era comunista.” Ou seja: primeiro o sujeito adquire uma requintada formação nos serviços de inteligência e depois o governo não exige dele senão uma tarefa vulgar de delator estudantil, aceitando que a cumpra com o rigor técnico do Agente 86.

Mal publicada essa idiotice, deputados esquerdistas já se mobilizam, no Congresso, para cobrar explicações oficiais do governo americano, precipitando uma crise favorável ao terrorismo internacional, assim como para extraditar o tal ex-agente da CIA. Aí a comédia ultrapassa os limites do humor humano e assume o tom de uma piada demoníaca. Pois que autoridade teria para apoiar o pedido de extradição um partido presidido por um ex-espião cubano? Sim, se o sr. Hayes é apenas um 007 hipotético com uma história absurda, a bela carreira do dr. José Dirceu como agente da inteligência militar cubana é coisa certa e de domínio público.

Para piorar, o JB, na edição do dia 10, procura legitimar sua história mediante a aprovação que lhe dá o sr. Philip Agee, exibido como autoridade no assunto. No fim, bem no fim da matéria, discretamente, o jornal reconhece que Agee “foi acusado de ter oferecido informações para a KGB”. Isso é que é eufemismo. Agee foi de fato acusado em 1997. Mas hoje há mais que acusações: há a prova documental, saída diretamente dos arquivos da KGB e exposta em “The Sword and The Shield: The Mitrokhin Archives”, de Christopher Andrew, publicado em 1999. Agee era, sim, homem da KGB, e é ainda um agente da desinformação comunista. Agora ele mora em Cuba, onde ganha para embelezar a imagem do regime de Fidel Castro, e continua sonhando com sua velha “campanha mundial para desestabilizar a CIA”. Essa campanha, iniciada com grande alarde em 1975, pifou na década de 80. Quem diria que, justamente num momento em que os terroristas em apuros tanto precisam dela, a defunta viria a renascer nesta parte do Terceiro Mundo pelas mãos de Debi e Lóide do jornalismo nacional?

***

PS — Colaborador e executor do Plano de Metas do governo JK, criador do BNDES e do Estatuto da Terra, inventor do plano de reestruturação econômica que possibilitou tirar da faixa de pobreza mais de 30 por cento da nossa população, Roberto Campos fez mais por este país do que qualquer outro intelectual brasileiro da sua geração. Mesmo que sua lição tivesse vindo somente pelo exemplo e não por milhares e milhares de páginas de luminosa graça e potente erudição, ele já teria sido um autêntico instrutor e guia da sua pátria: Magister patriae . Em retribuição, foi também o mais caluniado, desprezado e aviltado personagem em meio século de História do Brasil. E não são coisas de jornais velhos. Ainda circulam livros didáticos que o mostram às crianças com as feições de um Drácula da economia. Mas, com todos esses quilômetros de papel sujo, seus detratores jamais conseguiram intimidá-lo, perturbá-lo ou extinguir seu bom humor. Conseguiram apenas fazer de si mesmos, coletivamente, um monumento à impotência da calúnia e à glória do caluniado.

O dr. Roberto não estava somente fora do alcance das palavras dessa gente: estava além do seu círculo de visão. Ele foi, num ambiente de crianças perversas, um dos raros exemplares brasileiros do spoudaios — o “homem maduro” da ética de Aristóteles — que, tendo feito da objetividade o seu estado de ânimo natural, encarna a autoridade da razão e por isto está apto a fazer o bem ao seu país. O nome disso é humildade. Pois a humildade, dizia Frithjof Schuon, no fundo é apenas senso do real.

Crítica social e História

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 11 de outubro de 2001

Toda crítica social tem por fundamento uma idéia do melhor. É só em comparação com essa idéia que a sociedade existente pode parecer boa, sofrível, má ou insuportável. Mas a idéia do melhor não surge do nada: é pensada por homens concretos, membros da mesma sociedade que criticam. Se considerarmos que a mentalidade desses homens é inteiramente um “produto” da sociedade, então, das duas uma: ou eles próprios incorrem nos males que denunciam, ou a sociedade, tendo dado a esses homens a idéia do melhor, não pode ser tão má quanto eles dizem.

Logo, toda crítica social que pretenda ter algum fundamento só pode ser baseada na premissa de que haja na consciência do homem uma dimensão que transcende de algum modo a sociedade presente e na qual ele possa instalar-se em pensamento para julgar essa sociedade desde fora ou desde cima.

É evidente, no entanto, que o simples apelo verbal à instância legitimadora não basta para dar validade à crítica. É preciso que esta não somente alegue, mas prove sua filiação lógica à autoridade superior.

As críticas sociais, portanto, podem ser hierarquizadas numa escala de validade estritamente objetiva, conforme (a) a legitimidade intrínseca da autoridade convocada a legitimá-las; (b) a maior ou menor consistência lógica do nexo entre a autoridade legitimadora e o conteúdo da crítica. Dito de outro modo: (a) A autoridade da instância superior convocada a legitimar a crítica pode ser falsa ou deficiente em si, como no caso do crítico que condena a sociedade com base num puro modelo utópico de sua própria invenção. (b) Se a autoridade alegada é válida em si, há ainda o risco de que a dedução que dela extrai o crítico para validar a crítica determinada de uma sociedade determinada não seja uma dedução válida logicamente.

Uma história das críticas sociais desde a Antiguidade até nossos dias demonstraria facilmente que, ao longo dos tempos, as críticas sociais formuladas no mundo ocidental vieram progressivamente perdendo validade ao mesmo tempo que cresciam em virulência e em número de seguidores. Dito de outro modo: à medida que passam os tempos, os críticos sociais perdem em autoridade intrínseca o que ganham em pretensão e audiência.

Sei que esta observação é lamentável e que alguns, sem ter jamais estudado o assunto ou sequer conscientizado minimamente a sua existência antes de ler este artigo, a recusarão “in limine” e buscarão abrigo contra ela em toda sorte de subterfúgios. Só o que tenho a dizer a esses é que não me amolem e vão estudar. Aos demais, isto é, àqueles nos quais o enunciado de uma hipótese suscite curiosidade em vez de indignação ou lágrimas, sugiro que comparem, por exemplo, a crítica socrática à marxista. Esta última tem muito mais adeptos e é muito mais feroz que a primeira, mas, ao declarar que a consciência dos homens é “produto” da História, já não pode alegar outra instância legitimadora senão a História mesma; mas, como a História não traz modelos para o seu próprio julgamento e sim apenas o relato dos fatos consumados, não resta alternativa ao crítico marxista senão deduzir da História transcorrida uma hipótese de desenvolvimento futuro e tomá-la desde já como instância legitimadora da crítica do presente. Nada prova que o desenvolvimento previsto seja necessário nem que o estado de coisas dele resultante tenha de ser melhor do que o presente estado de coisas; tudo isso é apenas hipótese e não tem portanto autoridade legitimadora senão hipotética. Já a crítica de Sócrates, que não angariou adeptos senão num círculo muito limitado, tinha um fundamento muito mais sólido, pois as instâncias legitimadoras a que apelava eram a certeza da morte e a autoridade intrínseca da razão, que nenhum homem pode rejeitar.

Em desvantagem maior ainda fica o marxismo quando comparado à crítica social dos profetas hebraicos, que extraíam sua autoridade do cumprimento das profecias. A crítica de Moisés ao estado de coisas no Egito fundava-se no seu preconhecimento dos meios concretos de levar o povo judeu a uma situação melhor; e o sucesso do empreendimento deu plena comprovação às suas pretensões. Esse é um argumento que nenhum marxista pode alegar em apoio de suas críticas ao capitalismo. Bem ao contrário, as realizações históricas do modelo socialista na URSS e na China foram de tal modo decepcionantes, que os marxistas, após tê-las proclamado e defendido como as mais puras e típicas expressões da superação marxista do capitalismo, hoje se empenham “ex post facto” em explicá-las como desvios acidentais e em limpar o marxismo de qualquer comprometimento com fracassos tão óbvios.

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