Ser e Conhecer - Introdução geral

 § 1. Formulação do problema

Aula do Seminário de Filosofia, São Paulo, 10 de março de 2001

Toda a tradição moderna em filosofia toma como fundamento e ponto de partida o reconhecimento dos limites da consciência cognitiva individual. É verdade que ela começa com a tentativa cartesiana de romper esses limites pela afirmação da certeza absoluta que o eu pensante tem de si mesmo enquanto pensante. Mas também é verdade que essa afirmação permanece subordinada ao reconhecimento daqueles limites, e isto sob três aspectos: (1) eles são o dado inicial do qual ela será apenas a conclusão parcial que não chega a impugnar a validade da dúvida baseada neles; (2) o cogito que se afirma tem a impotência congênita do eu solipsista, que não pode escapar de seus próprios limites senão pelo apelo a “Deus” – um Deus que, não tendo aí nenhuma função orgânica, não sendo nem mesmo o fundamento do eu como o era no cogitoagostiniano, entra no sistema como puro agregado externo e expediente lógico in extremis, para salvar a  construção vacilante; (3) impotente para lançar uma ponte para o mundo exterior, o cogito cartesiano não o é menos para lançá-la entre ele próprio enquanto pensante e… enquanto existente.

Quando Péguy, num texto célebre, festeja Descartes como “ce chevalier qui partit d’un si bon pas”, ele expressa da maneira mais eloqüente o fato de que a tradição moderna valorizou em Descartes antes o seu ponto de partida (a dúvida) do que o seu ponto de chegada (a certeza do cogito). Mas isto é o mesmo que celebrar o fracasso do empreendimento cartesiano, louvando apenas as intenções que o inspiraram e que ele terminou por frustrar. Certeza vazia, incapaz de fundar a ciência, o cogitocartesiano deixou menos marcas na origem da tradição moderna do que as deixou o método mesmo da dúvida, a idéia de repor tudo em questão e, como se diria depois, “raciocinar sem pressupostos”. Essa idéia, que pervade todo o ciclo moderno em filosofia, expressa, no mínimo, o sentimento dos limites da consciência individual, sentimento que constitui assim o terreno psicológico sobre o qual floresce o pensamento moderno.

A variedade de suas expressões não deve nos fazer perder de vista a unidade desse sentimento básico. É preciso enxergá-lo não só nas suas manifestações diretas e patentes, como também nas indiretas e esquivas: não só no ceticismo de Hume ou na crítica kantiana, mas também nas tentativas de transferir para a alçada de algum outro sujeito – seja ele o Espírito objetivo, a volonté génerale, o Volkgeist, a consciência de classe, o Id, o inconsciente coletivo, as estruturas da linguagem, o consenso da comunidade científica, o gênio da espécie – a responsabilidade pela garantia da veracidade e eficácia do conhecimento. A simples enumeração casual de algumas dessas tentativas já evidencia que a afirmação dos limites ou da impotência cognitiva da consciência individual, quando não é princípio claramente afirmado, é pressuposto implícito; e, quando não ocupa o centro do sistema, circunscreve e delimita o seu horizonte.

Por trás da variedade e discordância das escolas, delineia-se assim um fundo de unanimidade – a unidade negativa daquilo que, para simplificar (e por outros motivos que se tornarão claros mais adiante), denominarei negação da consciência.

O que é curioso nesse fenômeno não é apenas a sua generalidade, sua quase onipresença no panorama heterogêneo do pensamento moderno; é que essa quase onipresença tenha sido apenas displicentemente reconhecida, como se se tratasse de obviedade sem maior importância, indigna de atrair qualquer curiosidade especial ou de suscitar ao menos a pergunta: Por que?

Sim, tudo aquilo que embora reconhecido não se afirma de maneira clara e explícita continua oculto entre névoas, protegido de todo olhar iluminante capaz de ressaltar o que nele há de estranho, de portentoso, de supremamente incomum e problemático.

De repente, a pergunta que não se fez pode se revelar como a mais relevante de todas. E a pergunta, no caso, é: como foi possível que toda uma tradição filosófica de quatro séculos, digamos mesmo toda uma civilização, tomasse como fundamento óbvio e inquestionável do conhecimento as limitações e deficiências do poder cognitivo da consciência individual, e raciocinasse sempre a partir delas, sem que, precisamente, essas limitações mesmas  viessem jamais a ser questionadas e sem que jamais à negação se opusesse qualquer tentativa de afirmação?

Como foi possível que uma pretensão cognitiva tivesse tantos impugnadores, sem que houvesse defensores?

Pois mesmo aqueles que, nesse período, afirmam resolutamente o poder do conhecimento, como Spinoza ou Hegel, celebram apenas a virtude cognitiva da razão, considerada de maneira universal e abstrata, e não da consciência individual concreta, cujos limites e cuja fragilidade eram assim implicitamente afirmados na medida mesma e no momento mesmo em que, enaltecendo “a razão”, se dava por pressuposto que era mediante sua absorção nela e sua conversão despersonalizante em faculdade abstrata que a consciência individual concreta poderia ter a esperança de conhecer o que quer que fosse.

Ora, se cada um desses filósofos era apenas indivíduo humano concreto, sem poder alegar-se a priori detentor de meios de conhecimento superiores aos da individualidade humana, a pergunta é: desde onde eles impugnam a eficácia desses meios, os únicos de que dispõem?

Se o filósofo moderno não pudesse colocar-se, de algum modo, numa posição superior à da sua mera individualidade empírica, sua negação do poder cognitivo desta última equivaleria apenas à autoparalisação de uma consciência individual e à imediata desmobilização de todo esforço filosófico. Em vez disso, vemos o movimento filosófico alimentar-se dessa negação, progredir graças a ela, revigorar-se nela.

À negação da consciência individual parece corresponder, ipso facto, a afirmação de um poder cognitivo supra-individual que o filósofo incorpora e personifica a partir do instante mesmo da negação e por mérito dela.

Que poder seria esse? Quais as suas possibilidades e limites? Que títulos justificam a pretensão filosófica de representá-lo? E, sobretudo: seria ele efetivamente uma instância superior à consciência individual ou apenas a parte superior da própria consciência individual, separada das partes inferiores e hipostasiada como entidade independente?

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