Olavo de Carvalho


Zero Hora, 16 de outubro de 2005

Quando a mídia brasileira assume o lado do bem e da decência, vocês podem ter certeza: ela o faz com atraso, faz pela metade e faz misturando à causa nobre tardiamente subscrita algum novo elemento de calhordice.

A Folha de S. Paulo do dia 13 tornou-se o primeiro jornal nacional a noticiar com algum destaque o genocídio sistemático da população do Sudão pela Frente Islâmica Nacional que domina o país.

A matéria, traduzida do jornal inglês Independent , diz: “O governo da Frente Islâmica já exterminou mais de 400 mil [negros] e expulsou outros 2 milhões de suas casas.”

Para o padrão jornalístico vigente, já é demais. Romper uma década de silêncio, admitir de repente que um governo islâmico, em tempo de paz, matou dez vezes mais gente do que a guerra do Iraque, é mais que coragem: é uma gafe, uma inconfidência, um ato falho freudiano, uma traição imperdoável aos altos princípios da vigarice obrigatória.

Se todos os morticínios praticados nos últimos anos pelos governos do Sudão, da Coréia do Norte, do Vietnã, da China e de Cuba fossem noticiados, as comparações se tornariam inevitáveis, e George W. Bush, se não assumisse as feições de Madre Teresa de Calcutá, passaria ao menos a ser visto como aquilo que é: um político como os outros, nem muito bom nem muito mau. Mas com isso a demonização prioritária da política exterior americana se tornaria impossível, frustrando a missão número um da classe jornalística brasileira.

Para evitar esse risco temível, os fatos mais importantes e brutais da década tiveram de ser suprimidos. Nenhum leitor ou telespectador brasileiro ficou sabendo da liquidação da tribo montagnard no Vietnã, dos “Aquários de Pionguiangue” (o Gulag norte-coreano), do extermínio de um milhão de tibetanos pelas tropas chinesas de ocupação, do “Livro Negro da Revolução Cubana” que calcula em cem mil o número de vítimas do regime de Fidel Castro.

Anos atrás, em sucessivos e-mails que enviei ao diretor da Folha , Otávio Frias Filho, cobrei dele o oceano de notícias faltantes. Ele disse que ia pensar no caso. Vejo que pensou. O resultado está no jornal do dia 13. Mas a verdade veio profundamente alterada.

Desde logo, o genocídio aparece transfigurado em efeito de perseguição racista, e não religiosa, quando ninguém no mundo civilizado ignora que não é uma guerra de brancos contra negros e sim de muçulmanos – eles próprios negros na maioria – contra as duas comunidades religiosas minoritárias: animistas e cristãos. Principalmente contra estes últimos.

Para encobrir a motivação religiosa da violência, o repórter distorce até a palavra “arabização”, que no contexto sudanês designa a imposição da língua litúrgica do Islam como idioma nacional, e lhe dá sentido genético, incompatível com a composição étnica do Islam em geral, onde os árabes são minoria.

Mas o detalhe mais maravilhoso é a questão das culpas internacionais.

Numa visão objetiva, o país mais culpado é a China, por ser, fora do círculo islâmico, o principal fornecedor de armas para os genocidas. Em contrapartida, o mundo inteiro sabe que as maiores pressões contra a violência sudanesa partiram dos EUA, a primeira nação, aliás, a usar o termo “genocídio” para descrever o caso. Quando a ONU tirou os EUA da Comissão de Direitos Humanos, colocando em seu lugar precisamente o Sudão, o sentido cínico da mensagem foi bastante claro.

O repórter do Independent consegue inverter a realidade, fazendo dos EUA o cúmplice essencial do genocídio – sem alegar para isso outra razão exceto a de que Bush aceitou do governo sudanês informações sobre o paradeiro de bin Laden (como se ele tivesse a obrigação de recusá-las de Satanás em pessoa) –, e mencionando a China apenas de passagem, entre outros países, como se fosse um personagem menor na história.

Por fim, ele acusa pesadamente as empresas capitalistas ocidentais presentes no Sudão do crime hediondo de pagar impostos… como se imposto fosse adesão voluntária.

Agora entendo por que a Folha esperou dez anos e de repente deu a notícia atrasada. A verdade longamente suprimida foi liberada para publicação tão logo remodelada para adequar-se à mentira usual.

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