Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 15 de Março de 2001

Quando os megacapitalistas, a burocracia planetária e a mídia internacional, após apoiar com verbas e publicidade a organização do Fórum Social Mundial, aceitam alegremente algumas das conclusões do encontro e passam a declarar que, de fato, como já dizia o doutíssimo Olívio Dutra, a globalização não foi igualmente boa para todos, a conclusão que se deve tirar disso é, para mim, a mais óbvia possível. O circo esquerdista de Porto Alegre foi apenas um útil contraponto dialético de detalhe, programado pelos próprios engenheiros do mundialismo para se encaixar na sua estratégia geral, a qual não exclui nem mesmo, no vasto painel de um mundo cada vez mais capitalista, a possibilidade de umas experiências socialistas, aqui e ali, em países que sejam idiotas o bastante para desejá-las e irrelevantes o suficiente para que seu suicídio não prejudique em grande coisa o universo em torno: tal parece ser o caso, precisamente, do Brasil.

Mas o Brasil não seria tão bom para o desempenho dessa parte vexaminosa do “script” maior se, precisamente, a nossa intelectualidade não fosse cretina o bastante para não perceber o funcionamento da máquina mundial de desinformação da qual ela própria é, no local, a peça decisiva. Assim, as declarações espantosamente sincrônicas do FMI, do Banco Mundial, da ONU e de George Soros em discreto apoio às conclusões do Fórum gaúcho não despertarão a menor suspeita e, em vez de ser interpretadas à luz dos preceitos mais elementares da ciência das informações estratégicas, serão unanimemente aceitas e repassadas em seu puro valor retórico nominal, como homenagens casuais do globalismo à argumentação de seus adversários. “Sancta simplicitas!”

Ninguém, aqui, parece capaz de fazer o seguinte raciocínio: premissa maior – o poder global expande-se igualmente por meio da livre iniciativa capitalista ou da burocracia mundial socializante. Premissa menor – em virtude das próprias dimensões totalizantes do empreendimento, esses meios têm de ser alternados para a coisa dar certo. Conclusão: frear o liberalismo e pisar no acelerador do estatismo não diminui em nada a velocidade de ascensão da Nova Ordem Mundial nem a da liquidação das autonomias nacionais.

Mas, no Brasil, só as palavras contam. Como o nome “liberalismo” está associado a “globalismo”, e o nome “estatismo” a “independência nacional”, embora as quatro coisas aí significadas não tenham nada a ver com isso, só o que importa é reforçar os mesmos discursos de sempre, porque, afinal, o show tem de continuar.

Assim, comentando um relatório da FAO (a única organização internacional que, por descuido da produção talvez, não fez coro às unanimidades antiliberais da quinzena passada), segundo o qual o mundo está hoje menos miserável do que 15 anos atrás, o editorialista de um grande jornal de São Paulo diz que isso não pode ser, porque, como informam outras tantas e ainda mais abalizadas autoridades globais, o número de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia subiu de 1,2 bilhão de meados da década de 80 para 1,5 bilhão hoje. São portanto 300 milhões de miseráveis a mais, “quod erat demonstrandum”.

Acontece que, no mesmo período, a população mundial passou de 4,5 bilhões para 6 bilhões. Aumentou, portanto, de um terço, enquanto o exército de miseráveis teve seu contingente acrescido de apenas um quarto. A prosperidade está obviamente ganhando a corrida. Não importa: na atmosfera geral de histrionismo antiliberal, qualquer indício de que a miséria diminuiu vale como prova de que a miséria cresceu. E como o que conta é mesmo o teatro, o articulista completa sua “performance” proclamando que, apesar do que diz a FAO, “definir a linha de indigência é um problema complexo de estatística social” porque “os métodos são variados e a acurácia dos dados é precária”. Diante de tanta sabença, já ninguém mais ousa perguntar: que pode entender da “acurácia” dos métodos estatísticos um sujeito que não consegue sequer aplicar uma regra de três?

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