Olavo de Carvalho


 O Globo, 19 de janeiro de 2002

A teoria marxista da “ideologia” leva, em última análise, a reduzir todo pensamento, todo conhecimento, toda ciência a expressões mais ou menos indiretas, mais ou menos disfarçadas, da luta pelo poder. Ao longo da História, não houve talvez idéia mais falsa, perniciosa e corruptora. É claro que Marx não a inventou sozinho. Nietzsche, com a tal “vontade de poder”, ajudou um bocado. Os pragmatistas, ao decretar que os conceitos não eram descrições da realidade e sim instrumentos para manipulá-la segundo nossos interesses, fizeram o resto, secundados ainda por Freud, para quem todo o universo intelectual humano não era senão a projeção um tanto ilusória dos instintos e desejos infantis.

Nenhuma dessas teorias resiste ao mais elementar dos testes, que consiste em examiná-las segundo seus próprios princípios. Desse exame, que por bons motivos seus adeptos evitam como o diabo foge da cruz, resultam algumas revelações ao mesmo tempo decepcionantes e libertadoras: o marxismo não é senão o véu ideológico em torno dos interesses de classe de Karl Marx — o delírio de poder da intelectualidade ativista –, o nietszcheanismo não passa da fantasia de onipotência de um tímido ressentido, o pragmatismo é pura manipulação utilitarista do conceito de “conceito” e a psicanálise é apenas a extrapolação pseudoteorética dos conflitos libidinais da pessoa de Sigmund Freud.

Nenhuma teoria incapaz de passar incólume por esse teste merece atenção por mais tempo do que o estritamente necessário para atirá-la ao cesto de lixo.

Não obstante, foram essas precisamente as doutrinas mais influentes e populares dos últimos 150 anos. O fato explica-se como efeito colateral indesejado da democratização do ensino universitário, que, em compensação de seus inegáveis benefícios, tornou a condição de “intelectual” facilmente acessível a massas de classe média e baixa para as quais a aquisição de conhecimento não é por si um objetivo satisfatório, mas apenas o trampolim para a ascensão social e a busca de gratificações menores. Marxismo, pragmatismo, nietzscheanismo e freudismo nada nos dizem a respeito da realidade, mas tudo a respeito da mentalidade de seus adeptos. São os quatro pilares do barbarismo contemporâneo. Que a disseminação da sua influência resultasse enfim na supressão dos próprios pretextos intelectuais falsamente elegantes que as justificavam, nada mais lógico: passado um século e meio, as idéias dominantes nos meios acadêmicos já se assumem ostensivamente como afirmações diretas de interesses grosseiros — raciais, sexuais, grupais — e confessam que não têm o mínimo desejo de discutir com seus contestadores, mas apenas de destruí-los socialmente, se não fisicamente.

Uma das manifestações mais brutais e ao mesmo tempo cômicas desse barbarismo é a naturalidade com que as pessoas afetadas dessa obsessão ideologizante explicam qualquer idéia ou opinião que apareça na sua frente como expressão dos interesses financeiros ou políticos de algum grupo ou empresa. À luz desse dogma, o que quer que alguém pense, alguém lhe pagou para que pensasse. Para apreender o sentido íntimo das idéias de um filósofo, de um escritor, de um ensaísta, já não é preciso nenhum esforço hermenêutico: basta ler a assinatura do seu contracheque.
O segredo do sucesso desse método é que ele às vezes funciona com os seus praticantes, os quais por isto crêem que ele explica o resto da humanidade. Se para isto for necessário desmentir ostensivamente a letra dos escritos em exame, atribuindo à vítima idéias e crenças precisamente contrárias àquelas que ela defende, pouco importa: a fonte última das idéias é o guichê do banco. O que quer que você diga fora do que possa enriquecer a sua fonte pagadora, ficará o dito por não dito.

Aplicando esse método à interpretação de minhas idéias, a “Executive Intelligence Review”, do sr. Lyndon LaRouche, num editorial em língua espanhola, acessível na internet pelo endereço www.larouchepub.com/spanish/lhl_articles/2001/comentario_olavo.html, chega à conclusão de que sou um adepto e apóstolo do ecologismo globalista — uma política que até então eu estava ingenuamente persuadido de haver combatido com todas as minhas forças.

As razões alegadas para respaldo dessa surpreendente interpretação são duas. Primeiro: escrevi coisas contra os apologistas do atentado de 11 de setembro e em defesa do direito elementar de os EUA revidarem ao ataque; logo (no entender da EIR) sou um agente do imperialismo global. Segunda: escrevo em um jornal chamado “O Globo”; logo, mais que um globalista, sou mesmo um “oglobalista” (sic). Diante dessas considerações, a revista, com lógica implacável, conclui que estou necessitado do “tratamento de Pasteur para a raiva”.

Desconto, no editorial, as citações entre alteradas e totalmente fictícias que o autor me atribui. Fico com as duas razões essenciais.

A primeira reflete a total incapacidade que os portadores de um cérebro ideologicamente constituído têm de admitir que alguém não produza idéias por simples dedução automática de premissas sectárias. Pouco importa, aí, que a ideologia do crítico seja de “esquerda” ou de “direita”, no sentido em que ele assim se autodefina (pois nada mais típico da “direita” do que seu vício abjeto de deixar-se definir segundo a ótica marxista e, como se diz, vestir a camisa). O que aí se entende por “coerência” não é a fidelidade a princípios gerais, de ordem filosófica ou religiosa — sempre universais o bastante para dar margem à mais ampla flexibilidade no exame dos detalhes concretos –, mas a obediência mecânica a um programa estereotipado, segundo as linhas de ação de algum interesse político definido e imediato. Nuances, distinções, uma ética de respeito à complexidade do real, a simples busca pessoal da verdade e da justiça por cima das “linhas” predeterminadas, nada disso existe. O que quer que escape da fidelidade ideológica que o intérprete atribua ao interpretado deve ser suprimido em nome da coerência da interpretação.

Quanto à segunda razão, os editores da EIR naturalmente não admitem no seu quadro de redatores ninguém que não siga estritamente as doutrinas do sr. Lyndon LaRouche — e por isto imaginam que norma similar vigore neste jornal, “mutatis mutandis”. Que possa haver aqui algum respeito pela diversidade de opiniões, que a diretoria de “O Globo” admita alguma distinção entre jornalismo e publicidade, é algo que nem passa pela cabeça desses senhores: se escrevo para “O Globo”, devo portanto ser um redator de anúncios.

Fernando Alves Cristóvão, o grande crítico literário português, resumiu brilhantemente a norma imperante na atmosfera contemporânea: “Cultura é o novo nome da publicidade.” Sim: e o que quer que não seja publicidade será, “volens nolens”, interpretado como tal. O que importa não é o que você pensa: é o que o interesse publicitário que se atribui a você desejaria que você dissesse, segundo a interpretação que dele faça o analista ideológico de plantão. As contradições resultantes dessa leitura serão resolvidas pelo método simples e prático da amputação dos fatos. E, como diria Hegel, tanto pior para os fatos.

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