Apostila do Seminário de Filosofia

PRIMEIRA AULA

Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 15 de março de 1994.

Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Augusto Madeira
e Kátia Torres Ribeiro

 

1a parte

Nesta primeira aula, serão colocadas as premissas e métodos que vamos desenvolver em seguida. Tudo o que vamos expor aqui é baseado não só nos textos de Aristóteles como nos dos autores de estudos aristotélicos já relacionados no Documento Auxiliar II.

O esquema-padrão das introduções a Aristóteles.

Existem muitas maneiras de fazer uma exposição introdutória da obra de um filósofo. Mas, com relação a Aristóteles, existe uma certa fórmula que é adotada em quase todos os livros: colocar uma introdução biográfica, uma segunda introdução de ordem filológica que dá a composição da bibliografia do autor, e depois a exposição de sua filosofia de acordo com uma ordem que está consagrada há mais de dois mil anos:

1) Obras e doutrinas lógicas.

2) Obras de Física — de um lado a filosofia da natureza de um modo geral, na qual o que hoje chamamos de Física seria apenas uma parte, abrangendo também Geografia, Geologia, Astronomia, Meteorologia etc.; de outro a Biologia, com a Psicologia como uma sua parte ou extensão.

3) Tratado de Metafísica — por ele chamada de Teologia, e também de Ontologia e Filosofia Primeira.

4) Ética e Política.

5) Poética e Retórica.

Muitos livros sobre Aristóteles seguem na sua exposição rigorosamente esta ordem. É a que foi adotada no século I a.C. para a ordenação dos escritos aristotélicos por Andrônico de Rodes.

Desde o momento em que essa ordem se consagrou, foi adotada não só para todas as reedições dos escritos mas também para a maioria das exposições da filosofia aristotélica.

Sempre que um esquema desses se consolida, vira uma espécie de cacoete e nos induz a ver as coisas sempre pelos mesmos lados. Aristóteles estaria completando, se vivo, 2400 anos de idade, tempo mais que suficiente para se consagrarem a seu respeito erros e confusões de toda espécie que, sacramentados pela antiguidade, podem se tornar verdades inabaláveis.

A filosofia, atividade da consciência individual.

À medida que passa o tempo e que as várias tradições vão cristalizando a nossa maneira de ver o filósofo, se torna mais difícil sair de dentro delas para encarar esse filósofo com uma visão pessoal. Ora, em filosofia tudo o que não é visão pessoal não tem valor nenhum. Se há alguma coisa que distingue a filosofia das demais formas de saber, é o caráter radicalmente pessoal, individual das suas especulações. Nisto, ela difere totalmente de todas as demais formas de conhecimento, nas quais o consenso coletivo tem uma importância decisiva. Não concebemos uma ciência, no sentido em que hoje se emprega esta palavra, exceto como um sistema que vai sendo construído aos poucos, com contribuições de várias proveniências, e que vai se fechando numa espécie de edifício, num sistema das verdades científicas admitidas ou consagradas. De modo que, se num determinado momento um indivíduo enuncia uma tese, uma teoria que contrarie flagrantemente o sistema admitido, ele terá de argumentar muito bem, pois estará desafiando o consenso, compartilhado por toda a comunidade científica. É claro que nem todas as teorias científicas admitidas gozam de um consenso assim unânime, mas em geral é assim que as coisa se dão nesse setor.

Se formos para outro setor do conhecimento — a religião —, esta também é uma elaboração coletiva, e toda e qualquer prática religiosa subentende que um certo corpo de crenças é aceito como verdade uniformemente por toda a comunidade dos crentes. Subentende-se que o dogma — católico, judeu, mussulmano etc. — é entendido e admitido de maneira mais ou menos uniforme. O dogma é uma interpretação consensual do sentido das Escrituras.

Sócrates e o protesto da consciência individual ante o consenso social

Comparada ao que hoje chamamos de ciência, ou de religião, a filosofia se destaca por não haver nela a necessidade desse tipo de consenso e por requerer uma participação individual muito mais profunda. Desde o início, vemos que a filosofia nasce como o protesto de um indivíduo contra um consenso estabelecido. Este indivíduo chama-se Sócrates. Ele defronta-se com um conjunto de crenças e hábitos mentais e intelectuais, admitidos como válidos no seu meio e cultivados pelos indivíduos que eram a máxima expressão da cultura do tempo — aqueles que hoje chamamos sofistas. Eram professores de Retórica que iam de cidade em cidade procurando os jovens membros da classe dominante para lhes ensinar a arte da Retórica, com a qual poderiam ingressar na carreira política.

A educação grega consistia fundamentalmente de três coisas: ginástica, música e retórica. O ensino da retórica, prosseguindo durante séculos, tinha consagrado na classe dominante grega uma série de convicções e hábitos mentais. Um indivíduo isolado, que não dispõe de qualquer projeção pública peculiar, não exerce cargo público, não participa da política, que era apenas um soldado aposentado e se dedicava à arte da construção civil, um pequeno empreiteiro — este é Sócrates. Na juventude tinha sido mais ou menos famoso como soldado, algo como um herói de guerra. Mas, na maturidade, era um mero cidadão privado, que não era professor de nada, que não era político e estava rigorosamente fora da vida intelectual da época. É este indivíduo que, falando exclusivamente em seu próprio nome e sem poder alegar nenhuma autoridade, começa a questionar certas convicções estabelecidas, e não só questiona, mas desenvolve um método para interrogar as crenças estabelecidas e mostrar, ou que são contraditórias, ou que não têm base suficiente. O sentido da frase famosa “Só sei que nada sei” é irônico — significa que, se ele nada sabe, os outros sabem menos ainda.

Duas maneiras de dar coerência às nossas crenças.

A filosofia surge desse esforço de um indivíduo em particular para dar coerência às suas crenças. Podemos estabelecer a coerência de um corpo de crenças por duas maneiras contrárias. Uma delas é quando, pela prática repetida e pelo hábito, vamos harmonizando estas crenças com os nossos atos, com nossos hábitos e expectativas, também com as expectativas e hábitos dos outros e sobretudo com a nossa auto-imagem. De modo que, estando habituados a viver dentro dessas crenças, elas se tornam coerentes com o tom geral da nossa vida e por isto nos parecem coerentes em si mesmas e coerentes umas com as outras. Isto é, da unidade da nossa auto-imagem costumeira deduzimos erroneamente a unidade das nossas crenças.

A outra maneira de coerenciar as crenças é a filosófica. Significa confrontá-las teoricamente umas com as outras. Quando começamos a fazer isto, vamos ver que a nossa prática se assenta numa série de pressupostos contraditórios, que se desmentem uns aos outros. Isto, evidentemente, pode nos causar um certo espanto e nos deixar inseguros, derrubando uma auto-imagem tão laboriosamente construída.. De fato, Sócrates deixava as pessoas tão inseguras, que o compararam a uma enguia, um peixe-elétrico. Quem encostava nele levava um choque, pois ele demonstrava que as crenças mais comuns, tidas como coerentes e admitidas por todos, eram contraditórias umas com as outras e frequentemente autocontraditórias, quer dizer, intrinsecamente absurdas. Ele mostrava, por trás de uma ordem prática, uma desordem teorética.

Como a contradição se introduz nas crenças que sustentam a nossa prática? Através da nossa própria vontade. Quando queremos acreditar em determinadas coisas, porque nos interessam ou nos fazem bem psicologicamente, tratamos de forçar as idéias para que convivam umas com as outras, ainda que, pelos seus conteúdos respectivos, sejam de fato incoerentes entre si. Fazemos isto constantemente. Quem já se submeteu a algum tipo de psicanálise tem um idéia de até que ponto podemos mentir a nós mesmos, para sustentar um falso sentimento de coerência e integridade da nossa auto-imagem, justamente nos momentos em que nossa personalidade está mais dividida. Quanto mais incoerentes são nossas crenças, maior é o esforço de nossa vontade no sentido de dar um simulacro de coerência àquilo que não tem. Ora, se um indivíduo consegue fazer isto, quanto não conseguirá a coletividade? Nesta, você recebe o reforço de seus semelhantes e é protegido pela idéia de que, se erra, não erra sozinho, e de que tantos juntos não poderiam errar de maneira alguma. O auto-engano coletivo é mais eficiente do que o individual.

Quando vemos, no decurso do tempo, as mudanças de orientação da mentalidade coletiva, surpreendemo-nos com a sua volubilidade, com a sua leviandade. Como as pessoas mudam rapidamente de crenças sem sequer examinar as anteriores! Quantos ex-comunistas não gerou a queda do muro de Berlim, que, sem se sentirem abalados, giraram o botão da sua máquina de opinar e saíram com um novo discurso, falado com o mesmo tom de certeza do anterior discurso comunista? O sujeito abandona uma crença por outra sem um exame pessoal, mas apoiando-se em um novo consenso público. O consenso também tem suas mudanças, oscila entre a força do hábito e a força da moda, e quando simplesmente nos acomodamos às novas modas temos a impressão de estar nos renovando ou tornando mais autênticos, mas na verdade consenso é consenso, é sempre coletivo e fundado na imitação. Sempre que nos apoiamos no consenso público, velho ou novo, recorremos a uma espécie de reforço psicológico que ajuda a dar uma impressão de coerência àquilo que não tem nenhuma.

É justamente face a esse consenso coletivo — que pode ser político, religioso, ideológico, moral etc. — que se levanta a exigência filosófica. Ela parte de uma necessidade interior, de um impulso de honestidade fundamental no sentido de dar às idéias uma coerência efetiva e uma fundamentação mais sólida. É essa exigência de uma fidelidade mais profunda à nossa consciência de veracidade que é representada por Sócrates.

Este movimento inicial do qual nasce a filosofia é repetido de tempos em tempos, onde quer que surja uma nova filosofia vigorosa e digna de atenção. Cada novo filósofo que seja digno do nome se defronta inicialmente com uma perplexidade que nasce da constatação da incoerência do consenso. Ele vivencia esta insegurança de perceber que talvez todos estejam enganados, e ele também junto com todos. Novamente faz a experiência de saber que não sabe, face a um consenso social que finge que sabe. Entende-se aqui que este consenso não abrange literalmente todos os membros da coletividade, mas apenas a intelectualidade, isto é, aqueles que representam publicamente o papel de porta-vozes do consenso. Isto quer dizer que nem sempre há um acordo explícito entre o consenso —- a ideologia reinante —- e a vida social, as leis e instituições, as formas de organização da economia, etc. As épocas em que existe esse acordo são épocas de conservadorismo, de tradicionalismo; inversamente, as épocas de conflito entre o consenso ideológico e a esfera da vida prática são épocas de renovação, ou de revolução. A renovação do consenso , e a luta para mudar a sociedade em nome do novo consenso, fazem parte da história ideológica da sociedade, e, não devem ser confundidos com o movimento da consciência individual que reage ao consenso para buscar a verdade. O consenso, de fato, é menos limitante e escravizador para a consciência individual nas épocas de tradicionalismo do que nas de renovação, porque o consenso tradicional se apresenta declaradamente como uma força conservadora, fácil de identificar e criticar, ao passo que o consenso renovador ou revolucionário funciona como um Ersatz, um sucedâneo do autêntico pensamento filosófico, oferecendo aos homens, em lugar da vida intelectual, as modas intelectuais que os desviam de todo esforço pessoal. Nossa época é tão canalha que não apenas confunde maliciosamente a busca da verdade com o esforço de renovação social, fazendo da adesão a certas modas políticas a conditio sine qua non da vida intelectual, mas houve até mesmo um sujeito tido como filósofo, Antonio Gramsci, que chegou a propor formalmente a redução de toda vida intelectual à moda intelectual, à produção coletiva da ideologia revolucionária.

Cada época da história tem um corpo de crenças que é admitido pela classe letrada, tal como ela aparece na ocasião. Na Idade Média, essa classe é constituída fundamentalmente de clérigos. Hoje em dia, é a chamada comunidade acadêmica, o pessoal das ciências, somado à turma das comunicações: imprensa, TV, movimento editorial. A comunidade tem sempre um corpo de crenças que não é discutido e que serve como padrão de julgamento das novas idéias que surjam. A filosofia aparece no instante em que algum indivíduo percebe, nesse corpo de crenças, uma incoerência profunda e se sente inseguro e na necessidade de reconstruir aquilo em novas bases. Esta é uma atividade perene do espírito humano, não pára nunca. A filosofia só parará quando chegarmos a um corpo de crenças absolutamente certo a respeito de tudo o que existe. Como isto é evidentemente utópico, só Deus podendo realizar algo assim, continuaremos sempre formando novos corpos de crenças, que terão novos pontos de incoerência que necessitarão de um exame filosófico. Isto quer dizer que o movimento filosófico é inicialmente um movimento crítico, o movimento de uma crítica que deverá servir de base a uma reconstrução de novas crenças. Quando um filósofo faz isto com sucesso, os novos parâmetros que ele estabelece duram algum tempo, mas perdendo o seu teor crítico e tendendo a cristalizar-se em pensamento rotineiro, em mera ideologia. Até que, com o crescimento da humanidade, a ampliação do círculo de informações, as crenças começam a entrar novamente em contradição, e surge a necessidade de uma nova filosofia. Isto quer dizer que, embora a filosofia seja uma atividade interminável, ela não é ininterrupta, mas intermitente. A filosofia aparece e desaparece de tempos em tempos.

Raridade das filosofias autênticas

Se procurarmos na História, veremos que o número de filosofias verdadeiramente criadoras é relativamente pequeno. Colocaremos, evidentemente, o aristotelismo entre elas. Podemos considerar que este movimento que vai de Sócrates até Aristóteles, passando por Platão, é como se fosse uma curva única, o desenvolvimento de uma filosofia única, que se fecha, por assim dizer em Aristóteles e consegue durar um certo tempo. Eu colocaria como outros marcos na história do pensamento, depois de Aristóteles, Sto. Tomás de Aquino, Leibniz, Schelling e Edmund Husserl, fundador da fenomenologia. Se fosse necessário resumir toda a história da filosofia em poucos nomes, eu destacaria estes, onde todos os problemas discutidos por todos os demais estão embutidos. Cada um desses teve uma sombra, ou complementar oposto, cujo contraste ajuda a compreendê-los: o trio Sócrates-Platão-Aristóteles tem Agostinho; Tomás tem Duns Scott; Leibniz tem Kant; Schelling tem Hegel e Husserl tem Heidegger. Nos intervalos entre eles entram os estóicos, Descartes, Locke, Wronski, e isto é rigorosamente tudo: o repertório essencial das idéias. O resto é comentário ( descontando, é claro, as idéias que vêm desde fora da filosofia, por exemplo da tradição religiosa, do pensamento político, da ciência, etc. ).

Isto quer dizer, também, que a filosofia não surge a qualquer momento. Nas horas em que as crenças coletivas estão funcionando perfeitamente bem e onde as contradições internas que possam existir nelas estão ainda latentes e não chegam a causar perplexidade, — nestas horas a filosofia decai, torna-se, por assim dizer, desnecessária. É o que acontece, por exemplo, nos primeiros séculos da era cristã, quando o surgimento de um novo tipo de crença, o Cristianismo, bastou para atender às necessidades intelectuais das pessoas durante alguns séculos. Com o tempo, o próprio Cristianismo começa a perceber suas deficiências internas —- sobretudo lacunas e contradições na interpretação das Escrituras —- e começa a tentar completá-las. Daí surge um movimento filosófico dentro do Cristianismo.

A filosofia e o pensamento coletivo.

Sendo então a filosofia um movimento essencialmente crítico, que nasce da perplexidade, e sendo um movimento que parte de uma consciência individual, poderíamos perguntar: Seria possível uma filosofia coletiva? A resposta é decididamente não. Porque a filosofia parte da tentativa de unificar a totalidade da experiência humana, e isto só pode ser feito dentro do indivíduo que tem em si, juntas e coesas, todas as dimensões da vida humana e que é capaz de imediatamente confrontar, por exemplo, suas idéias com sua conduta — sua conduta com suas crenças estabelecidas — estas com seus sentimentos — estes com suas sensações corporais etc. etc. Ou seja, o movimento de que parte a filosofia supõe que exista, dentro de você, a possibilidade de unificar perante umaconsciência o conjunto das informações acessíveis naquele momento a um ser humano. Não haveria tempo de fazer isto coletivamente. Embora o diálogo, a troca de idéias, possam ser importantes na filosofia, a título de estímulo, de critério de verificação e de correção, o movimento decisivo se dá sempre no âmbito de um só indivíduo. Um dos motivos disto é que a filosofia é coerenciação, é unificação, e só o indivíduo tem em si uma unidade real, a unidade de um organismo vivente, ao passo que toda coletividade é um aglomerado de parcelas bastante separáveis, e algumas delas incomunicáveis. “Consciência coletiva” é uma força de expressão, e não o nome de um ente real. A tendência a hipostasiar a sociedade, a nação, a classe, etc., fazendo delas entes quase que fisicamente reais, nos torna cegos para a importância decisiva da consciência individual, e acabamos esperando passivamente que a “consciência coletiva” faça o serviço em nosso lugar.

A filosofia como instituição e meio social.

Aí temos um outro problema. A filosofia não é só o nome de uma prática intelectual como esta que estou descrevendo, mas é também o nome de uma disciplina escolar, acadêmica, que se registra em textos que vão sendo acumulados, formando uma vasta bibliografia, que por sua vez vai necessitando de uma tradição de interpretação e de um conjuntto de esquemas de transmissão daquilo às novas gerações. Isto faz com que a filosofia também se torne, com o tempo, uma atividade coletiva. As formas socialmente consolidadas dessa atividade influem, então, sobre o próprio conteúdo do pensamento filosófico. Por exemplo, numa faculdade de filosofia hoje, você vai ver a elaboração de uma espécie de pensamento coletivo. Penetrar no universo desta filosofia universitária é mais ou menos como penetrar em qualquer outro meio social: partido político, igreja, grupo de psicoterapia. Logo se vê que as pessoas que estão ali dentro têm certos hábitos mentais, certas reações reflexas, modos de falar, cacoetes que marcam aquela comunidade, distinguindo os de dentro e os de fora. Assim também o meio filosófico universitário. O leigo que vem de fora vai gastar bons anos de sua vida somente para adquirir este conjunto de reações que fará com que ele se sinta um membro da comunidade, e ao fazer isto estará crente de estar aprendendo filosofia, quando está apenas assimilando a casca sociológica necessária a que a filosofia como prática social continue existindo. E o que isto tudo tem a ver com filosofia? Rigorosamente nada, porque embora a filosofia sempre necessite de algum veículo social para existir, a história prova que ela não depende de nenhum deles, que tanto se faz boa e má filosofia numa hierarquia de clérigos como num grupo informal de amigos, numa organização acadêmica como numa sociedade esotérica, e que, enfim, o dinamismo da filosofia independe da sua forma social de organizar-se.

É por influência dessa base social de atuação que se formarão estilos coletivos de pensamento, que aprisionarão as mentes individuais dentro de certos esquemas de que não poderão livrar-se nunca, porque o que deveria livrá-los disto é exatamente a filosofia, ou seja, a reflexão pessoal, a que o império dos meios sobre os fins os impede de chegar. Se a reflexão pessoal é desde o início canalizada por um conjunto de reações mentais quase inconscientes, que equalizam o indivíduo com os demais membros da comunidade, então a reflexão pessoal fica impossibilitada. Por exemplo: saiu recentemente um livro cujo autor é Paulo Arantes, sobre o Departamento de Filosofia da USP. O livro chama-se Um Departamento Francês de Ultramar — título de assombrosa exatidão. Ele mostra que cinco décadas de reflexão filosófica na USP na verdade foram um eco de um conjunto de cacoetes mentais aprendidos com os primeiros professores que por ali passaram, todos de origem francesa. Alguns, aliás, excelentes filósofos, como Etienne Souriau, homem de primeira grandeza. Mas não interessa que o mestre seja grande. Interessa é que na hora em que o ensino se organiza coletivamente, se institucionaliza através de institutos, faculdades etc., corre-se o grande risco de fazer com que o ingresso nesse meio requeira um investimento psicológico demasiado grande, tão grande ou maior do que o necessário para chegar à filosofia mesma. Não é fácil você se integrar num novo meio. Quando este meio é, por sua vez, mais ou menos internacional e a convivência não é direta, é feita mais através de papéis que se trocam —- de artigos de um que são lidos por outro, que escreveu um livro que é lido pelo primeiro —-, a absorção dos cacoetes é mais difícil, porque se trata de cacoetes, por assim dizer, abstratos, e a aquisição disto é muito mais trabalhosa para a psique humana do que a cópia direta do que é visto. Mas evidentemente tudo isto não tem rigorosamente nada a ver com filosofia, assim como a embalagem de pizza não tem nada a ver com pizza.

E Sócrates, quando filosofava, a quem podia copiar? Em que meio ele estava procurando integrar-se? Que hábitos mentais ou cacoetes verbais ele estava procurando aprender para parecer filósofo? Ele simplesmente fazia o melhor que podia, usando a sua cabeça para refletir sobre certos assuntos. Isto não o tornava um indivíduo mais aceitável em determinado meio, e é por isto mesmo que ele podia filosofar livremente.

A partir do momento em que se forma um ensino mais ou menos regular de filosofia — o que acontece nessa época, na Academia Platônica e depois no chamado Liceu de Aristóteles (que na realidade veremos que não existiu efetivamente como entidade autônoma, sendo apenas um novo setor da Academia, dirigido por Aristóteles após a morte de Platão) —-, a filosofia começa a constituir um meio social, e surgem as invejas, as fofocas, a competição mesquinha, etc. Toda uma gordura mental que cerca a carne e o sangue da filosofia, e que passa por filosofia. Estes aspectos geralmente são desdenhados, mas eles nos dão o tom do pensamento do nosso tempo, onde a organização acadêmica da atividade filosófica chegou a um máximo de abrangência, eficácia e poder. Essa organização constitui uma máquina, estreitamente ligada ao meio editorial, que às vezes promove a filosofia, às vezes a sufoca. Em todo caso, a competição no meio profissional não é propícia ao desenvolvimento da filosofia, pois o decisivo nela não são as qualidades que fazem um filósofo, e sim as que fazem um hábil manejador social. Dois jornalistas que fizeram um estudo a respeito do meio acadêmico e editorial parisiense disseram que a organização moderna da vida intelectual criou um novo tipo de intelectual, o intelocrata. É o sujeito que tem poder ou influência sobre o meio acadêmico, a imprensa cultural, a indústria editorial, e que funciona como um guarda de trânsito, abrindo ou fechando o caminho às novas ambições. O intelocrata pode ser também um intelectual de valor, mas isto não é necessário para o exercício da função, que é de natureza política sobretudo. Nesse meio, os melhores saem quase sempre perdendo, pois dedicam suas energias à filosofia em detrimento da carreira. Raymond Aron diz, por exemplo, que no seu tempo só havia dois legítimos espíritos superiores entre os universitários franceses: Alexandre Kojève e Éric Weil. Mas o prestígio deles não se compara ao de um Sartre, de um Merleau-Ponty, ou mesmo ao de cabeças-de-toucinho como Althusser ou Bernard-Henry Lévy. Se isto se passa assim num país de tradição filosófica como a França, imagine então no Brasil.

A Retórica de Aristóteles no ambiente mental grego.

A influência do meio social imediato no destino das filosofias é importante para compreendermos o lugar de Aristóteles no ambiente grego. Veremos que no destino do aristotelismo pesaram muito esses fatores que mencionei.

Quando Aristóteles entrou para a Academia Platônica, com dezoito anos de idade, logo se destacou como um dos melhores alunos e foi incumbido de dar uma parte das aulas, o curso de Retórica. Este sucesso inicial foi recebido como um insulto pessoal por muitos dos seus colegas. Mais ainda; sendo a Retórica — curso que ele dava — a ciência teorética que investiga a arte da persuasão, ele logo dominou esta ciência, muito disseminada na época, e foi um dos primeiros a fazer dela uma especulação teórica. Porque a Retórica até então era apenas transmitida como técnica, como prática, e alguns levavam a vida inteira para dominar esta arte, que era a chave das ambições políticas. Aristóteles domina-a prontamente e começa a especular teoricamente. Isto consiste em perguntar: “Por que o argumento persuasivo é persuasivo?” e mesmo: “Por que um argumento logicamente fraco ou absurdo convence as pessoas, e outro que é razoável não as convence?” Aristóteles começa sua carreira examinando a Retórica, exatamente como Sócrates havia feito. Sócrates via que os oradores, políticos, conseguiam persuadir as pessoas às vezes de coisas perfeitamente absurdas. Sócrates limitou-se a demonstrar que essas idéias eram absurdas, por mais persuasivas que parecessem. Aristóteles já dá, na juventude, um primeiro passo além. Começa a investigar as causas dessa persuasividade, e formula a ciência da Retórica como uma verdadeira Psicologia da Comunicação. O livro de Retórica de Aristóteles é um dos grandes livros livros de Psicologia que a humanidade conheceu. Ora, conhecendo por um lado a técnica, e já tendo, por outro, algumas idéias científicas sobre o fenômeno da persuasividade, Aristóteles não apenas sabia produzir argumentos persuasivos, mas também conhecia os princípios teóricos em que se baseava a persuasividade dos adversários. Isto significa que, com vinte e poucos anos, ele tinha-se tornado uma espécie de terror dos retóricos, que desmontava todos os argumentos deles com a maior facilidade. Aristóteles sintetizou na sua pessoa, muito jovem, os dois papéis que mais tarde seriam denominados retor e retórico: o praticante da arte, o homem que escreve ou fala bem, e o cientista que estuda e formula a teoria da Retórica. Seus escritos de juventude, literários e retóricos na maior parte segundo parece, não chegaram até nós, mas o maior retor e retórico do mundo romano, Marco T. Cícero, os cita como exemplos de elegância e persuasividade. Tudo isso, aliado à mordacidade de certas réplicas de Aristóteles, ajuda a explicar o ambiente de hostilidade que se formou em torno dele desde muito cedo, e não consigo conceber que esta hostilidade não tenha pesado em alguma coisa entre as causas da dissolução do aristotelismo logo após a morte de Aristóteles.

Personalidades de Platão e Aristóteles. O Deus de Aristóteles.

Por outro lado, Aristóteles não tinha ambições políticas, ao contrário de Platão. Este sempre tentou interferir na política, tentou reformar o mundo, inspirou revoluções e golpes de Estado, e na sua famosa Carta Sétima declara que a obra de sua vida seria uma reforma política da Grécia. Mas Aristóteles era um temperamento completamente diferente. Aliás, esta confrontação de temperamentos é uma das coisas mais esclarecedoras quanto a todo o rumo posterior do pensamento ocidental. Porque, como disse um grande historiador da Filosofia, Arthur Lovejoy, “toda a história do pensamento ocidental não é nada mais que um conjunto de notas de rodapé a Platão e Aristóteles”. Sendo assim, desde que o nosso pensamento é sustentado por estas duas grandes colunas, confrontá-los é uma das principais ocupações da mente ocidental há dois mil anos. Nesta confrontação, os traços de personalidade são muitíssimo importantes. Duas personalidades de imensa envergadura que marcarão não apenas dois estilos de pensar, mas dois estilos de ser. Nesta confrontação, vemos que Aristóteles difere de Platão e se aproxima muito de Sócrates, pela sua total falta de ambição de interferir na ordem das coisas deste mundo, e pela sua total dedicação ao saber enquanto tal. Para Aristóteles, não havia ocupação mais digna do homem do que buscar conhecer, buscar compreender. Ele colocava esta atividade teorética —- a palavra “teorético” vem do verbo theorein, que quer dizer olhar, ver, contemplar — tão acima das outras que, no entender dele, era a única atividade do próprio Deus. O Deus aristotélico é um Deus cuja atividade é inteiramente de ordem teorética. Deus olha, vê, contempla, compreende, e nós vivemos dentro desta atmosfera intelectual divina, somos pensamentos divinos, de algum modo. Deus age, mas na forma da pura contemplação, e portanto, a ação de Deus tem aquela rapidez, aquela instantaneidade própria da inteligência — o ato de intelecção é instantâneo, e assim também os atos divinos, pois não supõem a mediação de um instrumento.

Posição social de Aristóteles. Hostilidade do meio ateniense.

Prosseguindo na confrontação, vamos ver que Platão era um filho da nobreza grega, um homem que desde a juventude foi cercado de admiração, não só por sua origem — família riquíssima — mas também pela beleza pessoal. Era um homem grande, atlético, rico, bonito, cheio de ambições. Aristóteles, ao contrário, era de origem estrangeira. A cidade de Estagira, onde nasceu, era uma colônia macedônica. Ele chega a Atenas, por volta dos dezoito anos, depois da morte dos pais. Herdou certa quantidade de dinheiro que lhe permitiu ser independente, sem chegar a ser um milionário. Tinha dinheiro para se sustentar sem precisar trabalhar, podendo se dedicar totalmente ao estudo. Entra na Academia ainda aos dezoito anos e por volta dos 23, 24 já é um sucesso lá dentro. Mas em primeiro lugar, num meio aristocrático o dinheiro, por si, não dá ingresso nas classes superiores. Para piorar, Aristóteles era um estrangeiro. Fica difícil imaginar, num país como o Brasil onde o estrangeiro é tratado como príncipe e o compatriota como um cachorro, a intensidade, a força do preconceito grego contra o estrangeiro. Este, em Atenas não tinha direito a nada. Estava pior do que um turco em Berlim. O simples fato de poder estar ali já era considerado um grandissíssimo favor; mas o estrangeiro não votava, não participava da política, não tinha direito a nada. Além disso, Aristóteles não era membro da nobreza, mas apenas descendente de uma família de médicos. Seu pai tinha sido médico do rei Felipe da Macedônia e se dizia que sua família descendia do próprio deus Esculápio, ou Asclépio — o deus grego fundador da medicina — pelo fato de terem tido muitos médicos no correr de gerações; mas todas as famílias de médicos alegavam a mesma coisa. Os médicos tinham posição de certo prestígio, mas não se comparavam à classe dominante. Eram apenas servidores de luxo. Aristóteles, então, do ponto de vista do meio ateniense, era um homem de origem plebéia, estrangeira, e que tinha entre suas características pessoais um senso de humor particularmente ácido, sarcástico. Também não tinha a beleza física —- era de baixa estatura, magro, e embora andasse muito elegantemente vestido jamais seria confundido com um membro da jeunesse dorée ateniense. Este estrangeiro incômodo, muito jovem se torna o dominador da ciência da retórica e é nomeado para dar os cursos na Academia.

As Artes Liberais na Academia platônica. Lugar da Retórica.

Nesse tempo o ensino já tinha começado grosso modo a se organizar segundo uma fórmula que duraria mais de mil anos, onde as matérias introdutórias consistiam no Trivium e no Quadrivium (conjunto de três disciplinas que lidam com a linguagem —- gramática, lógica ou dialética e retórica —-; e de quatro que lidam com números —- aritmética, geometria, música e astrologia ou astronomia). As matérias elementares eram estas. Quando Aristóteles é nomeado professor de retórica, a importância deste fato não deve ser hipertrofiada, já que a retórica é apenas uma das ciências elementares. O domínio destas sete disciplinas foi considerado desde a fundação da Academia de Platão até quase o ano de 1500, isto é, por quase dois mil anos, como condição básica para o ingresso nos estudos filosóficos. Na Idade Média européia, o sistema adquirirá uma grande estabilidade. Os estudos começavam na adolescência, pelo Trivium e Quadrivium, que duravam mais ou menos dez anos de aprendizado, depois o sujeito entrava numa das três faculdades — Direito, Medicina ou Filosofia. Nesta, o tempo de aprendizado até o aluno chegar a um estado comparável ao que hoje se chama professor pleno era de aproximadamente vinte e cinco anos —- o tempo que um professor universitário brasileiro leva para chegar à aposentadoria. Esse sistema começa a se formalizar no tempo de Platão, e não vejo a menor chance de um sujeito entender a filosofia antiga e medieval se não partir de um estudo das Artes Liberais —- Trivium e Quadrivium —-, que, constituindo a base do ensino, expressavam o fundo comum da cosmovisão mais claramente do que as formas superiores de atividade intelectual. Também não se pode esquecer que, nesse panorama, as sete disciplinas não tinham individualmente os significados que têm hoje, mas eram carregadas de nexos simbólicos e mitológicos que dão o seu verdadeiro sentido na cultura antiga. Por isto é que simplesmente não posso levar a sério um historiador de filosofia antiga ou medieval que, por exemplo, não conheça a fundo o simbolismo astrológico, que constituía então como que uma chave da cosmovisão. E não se trata só de conhecê-lo desde fora, porque o autêntico simbolismo, como a autêntica poesia, não se rende a um estudo meramente exterior, mas requer uma compreensão personalizada. Os melhores historiadores da filosofia antiga e medieval costumam ser, por isto, aqueles que também têm interesses religiosos e estéticos, que facilitam a penetração naquele universo.

Dentro da Academia, a retórica não estava entre as disciplinas mais nobres, pois cedia lugar às disciplinas filosóficas propriamente ditas. Aliás, considerando-se que a filosofia nasce de um movimento de oposição aos sofistas —- professores de retórica —-, esta tendia a ser, dentro da Academia, um pouco desprezada. Ela é a arte de persuadir, não a de encontrar a verdade; o que torna o argumento persuasivo não é ele ser verídico, mas é ele encontrar uma ressonância no público. A ressonância ou persuasividade do argumento depende exclusivamente de fatores psicológicos e sociológicos que predispõem o público a aceitá-lo, e depende também de que o retórico conheça minuciosamente esta predisposição e saiba usá-la. A persuasão retórica nada tem a ver com a veracidade. Mas Aristóteles não se limita a dominar a retórica, e faz as primeiras especulações científicas a respeito. A especulação científica sobre uma técnica é ao mesmo tempo uma defesa contra esta técnica. Uma coisa é dominar uma técnica. Outra é ter a noção teorética de como ela funciona, de por que funciona. Com isto você fica sabendo também quais são os limites da técnica. Esta especulação que Aristóteles começa muito cedo e que o leva depois a constituir o primeiro tratado científico de retórica, o torna também um grande retor, um escritor elegante e persuasivo. Isto estabelece uma distinção que será mais tarde consagrada. Retor é aquele que domina a técnica da retórica, que sabe fazer um discurso e ser persuasivo. Retórico é aquele que estuda cientificamente a técnica do retor, podendo ele próprio ser um retor ou não. Mas é evidente que o estudo teorético desta técnica e a sua aplicação têm resultados completamente diferentes. Seria mais ou menos como dominar, hoje em dia, a arte da propaganda e fazer um estudo científico de por quê a propaganda penetra e é aceita nas consciências. Evidentemente o estudo teorético levaria a ver esta técnica “pelas costas” e a compreendê-la melhor do que o mero praticante, e a saber também, portanto, neutralizá-la. Suponho que, na linha de uma investigação iniciada por Sócrates, o próprio Platão tenha determinado a Aristóteles o estudo científico dos procedimentos retóricos, de modo a completar a superação da retórica na dialética, dando uma forma acabada ao que Sócrates tinha feito informalmente. De modo que há, na Academia, um esforço de dar mais rigor à demonstração, a ir da persuasão à certeza apodíctica, e, neste movimento, Aristóteles representará o ponto culminante.

Platão e Aristóteles ante a opinião pública ateniense.

Como resultado, então, em parte por seu sucesso, em parte por esta orientação que está imprimindo a seus estudos, em parte por ser um estrangeiro metido onde não devia, e ainda por motivo de intrigas e invejas entre os discípulos de Platão, Aristóteles viverá maus bocados em Atenas. Platão também enfrentou dificuldades, mas no Exterior, onde se meteu em conspirações, sendo preso, vendido como escravo e resgatado por seus discípulos. Mas em Atenas ele sempre gozou de grande prestígio e, ao morrer, era como que um herói nacional, uma celebridade cercada de honras, e que praticamente não tinha inimigos. Aristóteles, ao contrário, enfrenta inimizades, oposição, desde o início de sua vida, jamais chega a formar um círculo de discípulos capaz de prosseguir sua obra num sentido fiel ao seu intuito e digno do seu nível, exceto um único, que é Teofrasto. Nunca encontra em Atenas senão um ambiente de relativa hostilidade, morre no exílio e nunca encontra uma repercussão pública muito grande. Claro que ele não dava importância, a isto pelo seu próprio temperamento, alheio à atividade política. O ideal dele seria viver relativamente isolado, podendo prosseguir seus estudos sem ter que se defrontar com a política do dia. No entanto, os conflitos políticos o perseguem ao longo de toda a sua vida. Principalmente porquê, originário de uma colônia macedônica, sendo filho do médico do rei da Macedônia e tendo-se tornado preceptor de Alexandre, filho de Felipe, imperador macedônico, quando se instala mais tarde uma guerra entre Atenas e a Macedônia, Aristóteles, embora já não tivesse nenhuma ligação com a Macedônia há algum tempo, fica evidentemente numa posição suspeita; é perseguido e tem de fugir para o exílio. De modo que não foi uma vida fácil, e um elemento constante desta vida é o contraste entre o interesse puramente intelectual deste homem e a hostilidade política e social que o cerca durante mais ou menos toda a vida, e contra a qual ele não deixa uma única palavra de lamentação ou de recriminação. Não porque fosse insensível às injustiças, já que muitas vezes protestou contra perseguições sofridas por amigos seus. as talvez ele fosse muito discreto para lamentar em público suas desventuras pessoais.

A intuição básica de Aristóteles: totalidade e organicidade.

O espírito mais reflexivo e científico de Aristóteles faz com que ele imprima ao seu ensinamento, desde o início, um sentido de pesquisa que torna o seu Liceu um depósito de conhecimentos sobre todas as disciplinas possíveis e imagináveis e o torna o primeiro centro organizado de pesquisa que conhecemos na história do ocidente. Após ter sido preceptor de Alexandre, Aristóteles recebe dele um dinheiro considerável, que lhe permite contratar um exército de pessoas para que viajem e tragam para ele as informações de que necessita: sobre geografia, geologia, vida dos animais, política e leis dos demais países, etc. etc.. Nesse sentido, Aristóteles pôde materializar o intuito que é central em toda a sua obra — o de organizar o conhecimento e fazer com que o conjunto das ciências se torne um sistema das ciências. Busca, assim, desde o princípio, um padrão de coerência na organização dos conhecimentos, infinitamente mais rigoroso do que o que tinha sido exigido por Platão. Quando estudamos a obra de Platão, vemos que tudo que ele escreveu vem de inspirações que teve na juventude e que lhe foram, por assim dizer, inoculadas por Sócrates bem pela herança pitagórica. A intuição básica de Platão, como a de Sócrates e dos pitagóricos, é a do contraste entre dois tipos de objeto do conhecimento: 1) os objetos dos sentidos que estão em permanente mutação e se fazem e desfazem diante de nós, dia a dia, como de resto, nós mesmos mudamos, nos fazemos e desfazemos, nosso corpo cresce, muda, envelhece e morre; 2) os objetos da geometria, das matemáticas, que tinham a característica da perenidade, estabilidade, constância, obediência à regularidade de leis que determinam implacavelmente, e imutavelmente, as duas relações. Uma vez estabelecida uma relação matemática, constataram esses filósofos, ela se reproduzia infinitamente sem que nada pudesse alterá-la ou abalá-la. Este contraste, uma da primeiras noções transmitidas por Sócrates, desperta em Platão a noção de que o mundo físico estaria envolvido numa rede de leis e proporções matemáticas que constituiriam o verdadeiro segredo da realidade, a estrutura invisível, mas rígida, do inconstante mundo visível. Esta é a intuição básica em Platão. As relações matemáticas constituem a parte superior do que ele chama de mundo das idéias. Esta idéia platônica penetrará tão fundo na consciência humana que dois mil anos depois, quando surgia a física moderna — Newton, Galileu, Descartes, Kepler — é novamente a mesma idéia de encontrar o fundo matemático no qual se apóia a realidade sensível que inspirará os cientistas. Por mais rico que seja o universo platônico, vemos que todo ele não passa de uma vasta especulação em torno desta idéia que é, no fundo, de origem pitagórica: de que os números e relações matemáticas são a verdadeira essência da realidade. De que o mundo, tal como se apresenta a nós, é de certo modo ilusório ou falso — não totalmente, mas apenas uma expressão parcial de um segredo que, na sua essência, é matemático. Toda a obra de Platão é uma construção feita em torno desta idéia básica.

A obra de Aristóteles obedece desde o início a outro intuito. Ele percebe que não é possível existirem apenas dois mundos — um mais ou menos ilusório, e outro um pouco mais real — mas que existem muitas faixas de realidade, formando um tecido enormemente complexo mas dotado, sempre, de unidade e coesão. E será esta complexidade do real, ao mesmo tempo múltiplo nos seus nos seus planos, aspectos, níveis etc. e constituindo um todo coeso, será esta idéia da unidade na variedade que orientará todos os esforços de Aristóteles desde o início. Daí sua idéia de um sistema do conhecimento. O conhecimento tem de ser um sistema, ou até, mais propriamente um organismo. Um organismo é um conjunto de órgãos diferentes entre si mas que são todos coordenados para uma certa função. Separados desta função do organismo total, não fazem sentido algum. Também Aristóteles concebe a idéia de que esta totalidade orgânica, que é o mundo, deveria por outro lado ser refletida no sistema das ciências, de modo que o conhecimento formasse uma unidade que, como um organismo vivente, pode crescer e transformar-se sem perder sua unidade. E com isto, inventa outra idéia que penetrará muito fundo na mente humana — talvez mais que a idéia dos padrões matemáticos de Platão — que é o que podemos chamar de evolução orgânica, complementar à de totalidade orgânica. Tão fundo como a idéia platônica penetrou no setor da astronomia e da física, a idéia de Aristóteles penetrará fundo nas ciências da natureza terrestre, na biologia, na História, na Estética e mais tarde no que hoje chamamos de ciências humanas ou ciências sociais. Praticamente todos os esforços das ciências humanas, desde que existem, é no sentido de conseguirem se organizar como totalidade orgânica, mais ou menos no sentido em que Aristóteles organizou o conjunto das ciências no seu tempo. A idéia platônica dos padrões matemáticos rende o seu máximo, alcança o seu pleno rendimento na física clássica e na nova astronomia de Kepler. Kepler, Galileu, Newton representam o auge da matematização da realidade. Mas a idéia aristotélica da totalidade orgânica, se bem que exerça grande influência, até hoje ainda não rendeu todos os seus frutos. Hoje em dia, o holismo é uma nova tentativa de organizar o sistema das ciências segundo a idéia da totalidade orgânica. Esta idéia não está realizada ainda. Por isto este curso se chama “Pensamento e Atualidade de Aristóteles”. Quando vemos hoje um esforço gigantesco no sentido de emendar as ciências humanas com as naturais, como se vê, por exemplo, na obra deste grande antropólogo Edgar Morin, todo o esforço dele e de toda a corrente que representa não é nada mais que a tentativa de devolver ao sistema das ciências aquela organicidade sistêmica que Aristóteles tinha lhes imprimido no começo, e que para nós se perdeu de crise em crise. Sendo assim, vemos que a obra de Aristóteles ainda está rendendo frutos e este é o motivo principal por que temos de estudá-la. Praticamente tudo o que está acontecendo no mundo das ciências hoje só pode ser compreendido como eco distante desta inspiração aristotélica do sistema das ciências, de dar às ciências uma organicidade enciclopédica ( kyklos = círculo, que representa totalidade, e paidos = educação, cultura, formação da mente humana ), todas concorrendo para um mesmo fim, como ocorre com os órgãos do nosso corpo.

Mas tudo isso não quer dizer que o legado aristotélico seja por toda parte bem recebido com afetuosa gratidão. Esse legado parece que não pode ser adquirido senão através do conflito —- dialeticamente, no sentido hegeliano do termo. Do mesmo modo que Aristóteles foi muito combatido em vida, vamos ver que uma discussão com Aristóteles, muitas vezes amarga e cheia de recriminações tem acompanhado a história do pensamento ocidental há dois mil anos. Mas nem todas as discussões foram construtivas. As tentativas de destruir Aristóteles, de suprimir o seu legado da memória humana também foram muitas, ao longo da história. Aí já não se trata da legítima contestação científica, que Aristóteles apreciava tanto que fez dela uma técnica ( a dialética ), e sim de manifestações de ódio irracional à inteligência mesma. Mas quando crêem tê-lo matado de um lado, ele ressurge de outro. De certo modo, Aristóteles tem constituído para a civilização ocidental um fantasma, como o de Merlin, “um sonho para alguns e um pesadelo para outros” , do qual ninguém se livra completamente e que, mais dia menos dia, cruzará o caminho de quem busca a verdade, para ajudá-lo mas também para testá-lo. Daí o sentimento ambíguo, de amor-ódio, que ele inspira a muitos. Na verdade, isso não acontece só no Ocidente, mas também no Oriente. No mundo islâmico há escolas de espiritualidade que vêem Aristóteles como um profeta, um enviado de Deus, e outras que o consideram um tentador diabólico. A Igreja ortodoxa russa chegou a proibir a sua leitura, enquanto Sto. Tomás o considerava o príncipe dos filósofos. Após dois mil anos, é melhor tentar achar com ele um modus vivendi. Para mim, a questão está resolvida: considero-o o melhor dos mestres, o mais honesto, o mais sincero, o mais sensato, o mais humano, inclusive em seus defeitos mais óbvios.

Aula I – Parte II

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