Apostila do Seminário de Filosofia

SEGUNDA AULA

Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 22 de março de 1994.

Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Carlos Madeira
e Kátia Torres Ribeiro

2a parte

Aristóteles não aconteceu na Grécia

Vamos começar por ver a imagem de Aristóteles no tempo dele mesmo. Quase todo o seu trabalho foi desenvolvido ou na Academia ou na escola que ele fundou num lugar chamado Liceu, nome que depois se torna a designação de escola mesma. Somente uma parte das idéias dele circulou fora da Academia e do Liceu. Na Academia ele dava cursos de retórica e chegou a ser famoso nesse campo durante algum tempo. Mais tarde, funda uma nova escola de retórica, ainda antes de fundar o Liceu. (ver Cronologia, em Documentos Auxiliares I).

Aristóteles permaneceu vinte anos na Academia, dos dezenove aos 38, quando se dirige a este lugar chamado Atarna, governado por um amigo seu chamado Hermias, com cuja sobrinha ou irmã – não se sabe ao certo -, chamada Pítias, virá a se casar.

O ensino propriamente dito começa aos 49 anos. Isto dá o que pensar. Decorreram trinta anos de estudos e preparações antes de ele fundar sua própria escola. Dentro da Academia, ele se incumbia de algumas matérias, mas menores – retórica e dialética. Depois funda uma escola, mas ainda de retórica, não uma escola filosófica. Portanto, Aristóteles sentiu-se firme para fazer a transmissão sistemática de suas idéias só trinta anos depois de ter começado seu aprendizado filosófico. Esta duração permanecerá como uma instituição até a Renascença. Um professor universitário, na Idade Média começava a ensinar mais ou menos aos 49 ou cinqüenta anos. O período de formação era de trinta anos.

Não só o trabalho filosófico de Aristóteles teve pouca difusão, ao contrário de suas obras literárias ou retóricas, mas também Aristóteles, ao contrário de Platão, teve muito azar com os discípulos. Nunca teve discípulos à sua altura. A Academia platônica continua atuando séculos além da morte do mestre, até depois da era cristã, quando surge o neoplatonismo. O Liceu morre praticamente com Aristóteles. Continua existindo institucionalmente, a escola funciona por mais dez ou quinze gerações de diretores que se chamavam escoliarcas, porém nenhum deles tinha o menor talento para manter o nível de ensino e de pesquisa do mestre. Além do fato de Aristóteles ser estrangeiro, é preciso levar em conta que ele teve algumas atitudes consideradas desagradáveis por seus colegas. Ele é rodeado desde o início por uma hostilidade que se expressa seja através do silêncio, seja através do ataque direto, seja através da calúnia e da intriga. Estas vêm sobretudo com a escola epicúrea. Epicuro era um contemporâneo de Aristóteles e hoje, pela reconstituição dos textos, vemos que da obra aristotélica só conhecia a parte publicada, não filosófica. Todas as opiniões que Epicuro emite sobre Aristóteles não são, pois, sobre o Aristóteles que conhecemos. Vemos Epicuro discutindo certas idéias aristotélicas que nós não conhecemos pelos textos. Que Aristóteles era este que Epicuro discutia? Era o platônico. Os primeiros escritos de Aristóteles, literários, eram pura divulgação da Academia. Neles exortava as pessoas ao estudo da filosofia e louvava a atividade da Academia platônica. Ou seja, o Aristóteles dos contemporâneos era um platônico que, sendo professor de retórica, tendia a assumir na defesa da escola uma atitude polêmica e um pouco incômoda.

O aristotelismo como movimento filosófico é tardio. Começa a se formar timidamente nos séculos III e IV da era cristã, isto é, sete séculos depois da morte de Aristóteles (já tive aliás um arranca-rabo com um cretino da SBPC que afirmava que nesses séculos ninguém tinha lido nada de Aristóteles, quando ele é que não tinha lido nada) . É um fenômmeno mais ou menos como o que ocorreu com Leibniz, filósofo do século XVIII cuja obra só começa a se tornar mesmo conhecida a partir do século XX. Ele também tinha escritos de ordem mais popular e outros mais técnicos. Na sua época foram publicados os primeiros, formou-se uma imagem de um determinado Leibniz, justamente o que é caricaturado por Voltaire no personagem do Dr. Pangloss, em “Candide”. Quando Leibniz já estava mais ou menos esquecido e enterrado sob a figura do Dr. Pangloss, abrem-se as gavetas e começam a surgir manuscritos. Esta descoberta propicia uma série de avanços sobretudo na filosofia da matemática, na metodologia da física etc. Leibniz provoca uma revolução dois séculos depois de falecido.

Com Aristóteles esta revolução póstuma não acontece antes de sete séculos. Aí está a primeira retificação que devemos fazer da sua imagem histórica. Aristóteles não é um fenômeno grego. Na Grécia não aconteceu nenhum Aristóteles. Aconteceu um fato insignificante: havia uma escola de retórica chefiada por um estrangeiro meio incômodo que fazia propaganda do guru dele, Platão, e que acabou indo embora da cidade. Isto é praticamente o que se sabia de Aristóteles na Grécia nos séculos que se seguiram à sua morte. Se compararmos a influência decisiva de Aristóteles na civilização cristã da Idade Média até hoje com aquela que ele exerceu na Grécia, não é errado concluir que, na Grécia, praticamente não existiu nenhum Aristóteles, e um aristotelismo não existiu de maneira alguma.

Se hoje podemos dizer como Émile Boutroux (autor da pequena biografia que anexamos aos textos deste curso) que Aristóteles é a máxima expressão do gênio grego, seremos obrigados a concluir que o gênio grego, desconhecendo Aristóteles, se desconheceu a si mesmo. Aristóteles não é propriamente uma expressão do gênio grego, é uma semente do gênio grego que não frutificou na Grécia. Aristóteles não faz parte da autoconsciência grega. Faz parte do subconsciente grego. Era uma riqueza latente que foi desconhecida na própria Grécia e desenterrada depois, já na Idade Média, primeiro no mundo islâmico, depois na Europa. Este detalhe é de uma importância extraordinária e ninguém leva isso em conta. Todo mundo imagina Platão e Aristóteles como sendo as colunas mestras da civilização grega. Ora, Aristóteles na civilização grega não desempenhou função alguma. Não serviu para nada. Começou a servir muito tempo depois numa outra civilização, ou antes, em duas outras civilizações que ele fecundou com a herança do seu gênio e que aproveitaram essa contribuição cada qual segundo sua inclinação peculiar, gerando dois aristotelismos (e dois anti-aristotelismos) bem diferentes entre si. Se você disser que o platonismo foi um pilar na civilização grega nos seus últimos quatro séculos, isto é verdade. Mas o aristotelismo não. Só funcionou ali como uma pequena extensão da escola platônica, sem projeção própria e quase sem fisionomia própria.

O legado grego de confusões sobre Aristóteles

Isto é origem de muitas confusões. Porque, quando um filósofo é muito lido, muito discutido por pessoas inteligentes e discípulos hábeis, em vida, ele tem ocasião de se explicar muito bem sobre pontos obscuros. Como aconteceu com Platão. Já nas primeiras obras de Aristóteles vemos certas objeções que ele tinha à famosa teoria das idéias de Platão. E no último livro de Platão – o diálogo Das Leis, que não é bem um diálogo mas um tratado – já existe um princípio de reformulação da teoria das idéias, que Platão faz levando em conta as objeções de Aristóteles. Portanto podemos entender que o pensamento platônico, recebido e trabalhado por um discípulo particularmente brilhante, pôde se reformar e ser melhorado em vida do próprio mestre. Isto se deu tardiamente, pois Platão tinha mais de 80 anos quando escreveu as Leis, motivo pelo qual é um livro que já não tem o brilho literário e teatral das primeiras obras, mas é algo seco, árido e muitíssimo profundo. É o livro mais importante de Platão, a meu ver. A República foi escrita quando ele tinha cinqüenta e poucos anos e é uma exposição provisória. É no livro das Leis que vemos a potência do platonismo como filosofia capaz de evoluir e ir-se completando. Ora, esta potência surge justamente porque Platão mais jovem tinha encontrado um discípulo capaz de discutir as idéias e apontar as partes faltantes e eventualmente as contradições, de modo a estimular a continuação da investigação.

Isto nunca aconteceu com Aristóteles. Podemos dizer que suas idéias não foram discutidas, pelo menos com profundidade, nem mesmo dentro do Liceu. Dentre seus discípulos, o mais inteligente e brilhante parecia ser Teofrasto, que escreveu uma exposição da Metafísica de Aristóteles que mostra um suficiente domínio do assunto. Escreveu também um livro que depois ficou clássico, Os Caracteres, série de perfis psicológicos de tipos humanos, que poderia ser considerado parte da retórica, que é uma psicologia da comunicação entre grupos e tipos sociais. Porém quando dizemos que o melhor dos discípulos, o mais inteligente, não fez mais que uma reexposição e não um aprofundamento, temos de entender que entre os discípulos de Aristóteles não havia um pensador mais enérgico, mais criador. Aristóteles não teve esta sorte de encontrar discípulos capazes de ter uma reação criativa ao pensamento dele, pois a recepção passiva é apenas o começo de um aprendizado. Um aprofundamento sugere uma discussão de modo que aquele estilo de pensar permaneça em movimento e possa ser prosseguido dialeticamente, como fez Aristóteles com Platão.

Resultado: morto Aristóteles e morto Teofrasto, o Liceu afunda. Os escritos internos do Liceu que eram os mais interessantes e que são os que hoje conhecemos desaparecem inteiramente de circulação e os escritos populares continuam ainda a ser lidos, mas acabam desaparecendo também.

No século I a.C. ocorre uma reversão. Os escritos populares estavam quase totalmente desaparecidos, e ressurgem as apostilas e escritos internos do Liceu que são então editados por Andrônico de Rodes. Existe toda uma história mirabolante segundo a qual quando houve a perseguição aos aliados macedônicos entre os quais estava Aristóteles (Atenas estava em guerra com a Macedônia), uma coleção completa dos seus escritos teria sido escondida numa caverna onde permaneceu por três séculos, tendo sido depois levada a Roma, onde alguém começou a fazer uma edição. Mas tendo morrido este editor, a edição ficou para depois e no fim é Andrônico de Rodes – que era o décimo diretor do Liceu depois de Aristóteles – quem retoma os escritos e forma uma edição de conjunto. É claro que Aristóteles só poderia exercer uma influência no mundo a partir de uma edição dos textos. Mas isto também demorou algum tempo. Neste período, a escola epicurista, mesmo depois da morte de Epicuro, continuava crescendo e fazendo muitos discípulos. Esta não é bem uma escola filosófica, é um sistema de disciplinas psicológicas baseado nos seguintes princípios: nós vamos mesmo morrer, não existe nada após a morte, nada a esperar, os deuses também são materiais, eles também morrem; então o máximo que podemos fazer é nos fechar na escola filosófica e ficar meditando de modo a apagar os momentos maus e lembrar só os bons, e, se não houver momentos bons, você os inventa. Era uma técnica de evasão, uma espécie de cocaína filosófica. Ademais a escola epicúrea não fazia nenhuma exigência para a admissão dos alunos, aceitava qualquer um. Havia de tudo: ricaços, senhoras da sociedade, prostitutas, qualquer um. A escola prometia um alívio às pessoas. Mas no fundo ela confessa seu caráter mórbido porque o que é chamado de meditação filosófica é exclusivamente a tal história de apagar os momentos maus e se concentrar nos bons. Quando você é obrigado a viver de imaginação é porque está tudo perdido mesmo. Mas o fato é que uma oferta de alívio, falsa ou verdadeira, sempre faz sucesso. Com este sucesso, o velho desentendimento entre a escola epicúrea e a platônica, da qual Aristóteles era um porta-voz, fez com que a difamação contra a sua pessoa – não contra as idéias – prosseguisse até dentro da era cristã.

Uma coisa que nos surpreende até hoje é a capacidade de produção escrita dos autores antigos e medievais, realmente assombrosa. O próprio Aristóteles, se considerarmos que o que temos é aproximadamente um terço do que ele produziu – e a sua não foi uma vida longa -, seu volume de escrita é monstruoso.

Por esta situação toda, vê-se que esta obra está mais sujeita a más interpretações que a uma interpretação correta. Antes de ela ser publicada, já havia equívocos circulando, porque as pessoas já tinham uma imagem de Aristóteles feita a partir dos escritos literários, que mostravam idéias da Academia platônica. Idéias que ele veio depois a retificar ou abandonar. Quando os textos aparecem à luz, já é tarde: a confusão está formada, os equívocos estão consolidados.

A primeira desgraça que acontece com a filosofia de Aristóteles é que um de seus principais continuadores – Estratão de Lampsaco, um escoliarca, e que funciona durante algum tempo como porta-voz do Liceu aristotélico, já apresenta uma filosofia aristotélica alterada tal como ele a compreendia. Segundo ele, era uma filosofia empirista (aquela na qual somente a experiência que entra pelos cinco sentidos é fonte de conhecimento). Estratão, neste sentido, pode ser dito fundador do empirismo, que mais tarde será uma escola, em 1600. A filosofia de Aristóteles, portanto, já apareceu cortada pela metade.

Aristóteles, fundador do holismo.

Uma das características principais de Aristóteles é o desejo de organicidade, de totalidade sistêmica; o demasiado abstrato é para ele meia verdade. A realidade aparece para ele sempre como um todo coeso e organizado e que existe no tempo – exatamente como o corpo humano. Aristóteles não apenas era médico de formação, mas pertencia a uma família de médicos, dez gerações de médicos. Consta que quando pequeno já estudava anatomia, com o pai. A visão constante do corpo humano no aspecto anatômico e fisiológico vai desenvolvendo nele muito profundamente esta distinção entre o vivo e o não vivo. No fundo, o corpo do ser vivente é para Aristóteles o supremo modelo da realidade. Este é um aspecto que parece não ter sido suficientemente ressaltado pelos intérpretes até hoje.

O que hoje chamamos de holismo foi inventado por Aristóteles. É a busca de uma visão da realidade que corresponda às características de um organismo total e vivente. O holismo se opõe ao mecanicismo, que vê a realidade como uma organização do tipo mecânico, ao dualismo, que divide o real em dois setores separados (a divisão, para o organismo, é a morte), ao transcendentalismo, que é um dualismo hierárquico, e a toda forma de redutivismo, que é a explicação da realidade com base no predomínio exclusivo de um só de seus elementos ou fatores. Não espanta que a rejeição da física aristotélica tenha produzido, no Renascimento, o advento do reino do mecanicismo, com Newton e Descartes. A característica da organização mecânica é a completa separação entre as partes, de maneira que, em princípio, qualquer uma delas pode ser trocada por uma outra similar. No organismo isto não é possível. No corpo humano algumas partes podem ser trocadas, mas outras não. Podemos supor um transplante de coração, mas como seria um transplante de cabeça? Resultaria não em curar uma pessoa, mas em transformá-la em outra. Uma vez feito o transplante, o indivíduo poderia com igual razão dizer: “Fiz a cirurgia e estou curado” e “Fiz a cirurgia e estou morto”. O tipo de sistema que chamamos orgânico tem uma espécie de coesão por afinidade ou familiaridade entre as partes.

A teoria das distinções e a da potência e do ato, princípios básicos do método.

O organismo não é totalmente separável em partes, embora suas partes sejam distinguíveis. A teoria das distinções, que é um legado importantíssimo de Aristóteles que será aprofundado pelos escolásticos, é um resultado direto do treinamento médico e da experiência biológica do mestre.

Estudando anatomia, aprende-se a distinguir rigorosamente todos os órgãos e partes do corpo, e a ver que, por um lado, eles são efetivamente distintos, com formas e funções diferentes que não são trocáveis (o cérebro não poderia fazer o trabalho do pulmão, e assim por diante),e, por outro lado, não são separáveis. Esta é a característica fundamental do que denominamos organismo: unidade na distinção.

A constatação deste traço do organismo vivente deixa um profundo impacto na mente de Aristóteles que, em todas as questões que tratar, mesmo fora do âmbito fisiológico ou biológico, procurará sempre este tipo de conexão distintiva entre as partes. Procurará distinguir as partes com a máxima clareza possível e captar o princípio de coesão que dá unidade ao fenômeno e que permite que ele exista. Daí também vai sair o conceito de evolução orgânica, pelo qual a forma de um ser já não é apenas o seu esquema estático, mas é a fórmula das transformações que ele sofrerá no tempo. Quando você nasce, seu corpo não tem só uma forma determinada, com um peso determinado, uma figura determinada, mas tem a fórmula de um crescimento, mediante o qual ele poderá absorver elementos de fora que serão integrados dentro de seu organismo e que, aumentando o seu tamanho, farão com que ele sofra transformações nas quais no entanto ele não perderá sua forma e sua identidade, mas ao contrário, a manifestará. Aristóteles chama isso de passagem da potência (virtualidade, potencialidade) ao ato (efetividade, atualidade, manifestação). Esta é uma das idéias mais profundas de toda a história humana e é de fato, se não a principal idéia do método em Aristóteles, uma das primeiras que lhe ocorrem, creio eu, por causa dos estudos de fisiologia. A evolução orgânica é para Aristóteles um princípio explicativo, mas não apenas uma regra do método. Ela é um fato real da natureza, não um preceito metodológico. Em Aristóteles, como não poderia deixar de ser, há distinção mas não separação entre o método e o conteúdo efetivo do conhecimento: assim, os fatos da biologia são eles mesmos expressões da totalidade, da evolução orgânica ou passagem da potência ao ato, da distinção-união entre matéria e forma, ao mesmo tempo que estes princípios são também regras do método que vai estudar esses mesmos fatos. Assim também as leis da lógica aristotélica não serão puras leis formais do pensamento, mas uma expressão das leis ontológicas que governam a realidade mesma, sem deixarem de ser também leis formais do pensamento.

O essencialismo, forma platônica do redutivismo

Uma das principais intuições de Aristóteles é esta da unidade vivente do real. Vida e unidade são conceitos básicos para a compreensão da filosofia de Aristóteles. Por causa deste traço organicista e sistêmico, que é ao mesmo tempo uma propensão do seu estilo intelectual e um traço da sua personalidade, ele revelará uma extrema ojeriza a tudo o que se chama abstratismo (conceber por pura lógica o conceito de alguma coisa, e em seguida tratar este conceito como se fosse ele mesmo uma coisa real). O abstratismo consiste em tomar meras distinções lógicas como se fossem separações reais. Por exemplo, de tudo aquilo que compõe um ser real, abstraímos, separamos pelo intelecto um determinado traço de fato distinguível. Olhando vocês aqui posso distinguir entre a sua forma e a sua cor – elas não são a mesma coisa. Posso compreender que uma pessoa que está aqui pode ir à praia amanhã e voltar com outra cor sem que isto tenha alterado a sua forma. Ou a pessoa pode emagrecer ou engordar sem perder a cor. Se estes dois aspectos têm histórias distintas, eles são distintos em si mesmos. Porém, posso tomar uma destas características e perguntar qual é mais importante, qual a mais básica entre as duas. Posso chegar à conclusão de que a cor é simplesmente um efeito da forma. Assim, peguei uma das qualidades e a transformei numa qualidade básica da qual a outra é apenas um fenômeno secundário. Aí tomei a forma e a cor como efetivamente separadas. É precisamente esta separação abstrativa que constituía a causa dos exageros da escola platônica. Sócrates já havia distinguido nos entes dois aspectos: seu conceito — ou essência — e a sua existência. Se fazemos um conceito de cachorro, este é aplicável a todos os cachorros da existência, mas o conceito permanece o mesmo, enquanto os cachorros nascem, crescem e morrem. E a escola platônica optou pela hipótese de que o aspecto conceitual das coisas – o aspecto que se referia à semelhança entre o indivíduo e os outros da mesma espécie – era o básico da realidade, e de que a diferença de indivíduo para indivíduo e os vários traços adquiridos no decorrer da existência eram apenas um véu de aparências. Resultado: o mundo da experiência, tal como aparece para nós, seria apenas uma tela que mostra as aparências de um processo que no fundo somente se refere aos conceitos das espécies. Se você pegar o conceito de cachorro, por exemplo, verá que ele já implica os limites daquilo que pode vir a acontecer a um cachorro. O conceito de cachorro não permite que o cachorro voe – portanto, o cachorro não vai voar. Mas não há nada que contradiga, no conceito de cachorro, que ele seja branco ou marrom. Portanto o conceito aparece como um quadro dentro do qual estão todas as possibilidades que o ser pode manifestar no decurso da existência.

O conceito se refere à essência, àquilo que os entes são, independentemente de existirem ou não. Cachorro é cachorro antes de existir, quando existe e depois que parou de existir. Um cachorro morto não se transforma em outra coisa. É um cachorro. Desta constatação, porém, a escola platônica conclui que o aspecto existencial é secundário e que o principal é o aspecto essencial que se expressa no conceito. Este tipo de separação que hierarquiza a realidade e tampa uma parte dela, sob o pretexto de que é a manifestação de uma outra esfera mais profunda, é o que desagrada a Aristóteles. Porque , como fisiologista, médico de uma família de médicos, está acostumado a observar o corpo dos seres viventes e a idéia de que a realidade possa ser constituída de dois estratos mais ou menos separados não lhe agrada de maneira alguma, porque ele nunca viu nada na esfera dos seres vivos que seja composto de dois pedaços. Tudo tem unidade, organicidade.

Uma das primeiras preocupações de Aristóteles é ver se consegue restaurar o sentido da ligação entre estas duas faixas da realidade que o platonismo havia separado. Ele percebe, e admite com os platônicos, que existem o aspecto existencial e o conceptual. Mas qual o nexo entre um e outro? Por exemplo, se sabemos qual é a essência da espécie “cachorro”, isto não nos explica porque existem cachorros. Compreendemos que se não existisse absolutamente nada no mundo, as essências continuariam as mesmas, porque seriam, como mais tarde diria Leibniz, esquemas de possibilidades, e estes esquemas permaneceriam logicamente distintos. Se não existissem cachorros nem camelos, ainda assim cada uma destas espécies corresponderia a um determinado esquema de possibilidades que lhe é próprio e não se confunde com outros de maneira alguma. Podemos aqui e agora inventar os conceitos de espécies que não existem mas que sejam logicamente distintas. Aristóteles percebe que a grande operação da escola platônica, que é a de subir da existência dos seres múltiplos até o conceito das suas espécies tinha resolvido o problema pela metade. Quando, porém, partindo da multiplicidade dos seres, eu apreendo por abstração a comunidade de traços que perfila estes seres em várias espécies distintas, só fiz um saber do tipo classificatório. Ora, saber classificar os entes é uma coisa, saber explica-los é outra muito diferente.

Aristóteles percebia – não sei se ele fez esta imagem , mas a mim me ocorre – que o platonismo é uma espécie de anatomia do mundo, que separava o mundo nos seus pedaços , mas faltava a fisiologia. O platonismo tinha distinguido os órgãos ou estratos exatamente como numa dissecação você vai separando tecidos. Platão, basicamente , tinha separado o mundo em três grandes estratos – mundo sensível, mundo das idéias e o terceiro estrato supremo dos princípios ou leis. Tudo isto – dizia Aristóteles – existe inegavelmente , mas entre ter classificado a hierarquia e saber como funciona existe a mesma distância que há entre anatomia e fisiologia. A ciência da anatomia desenvolveu-se muitíssimo cedo na história do mundo e a fisiologia muito mais tarde . Uma coisa é dividir algo em pedaços, outra saber como funciona. Quem quer que tenha tentado consertar um carro perceberá que isto é assim mesmo na esfera mecânica. Desmontar o carro e classificá-lo peça por peça é relativamente fácil. Mas remonta-lo e fazê-lo funcionar de novo é outra coisa.

O platonismo era uma anatomia abstrata do mundo. Aristóteles, que tinha uma formação pessoal totalmente diferente da dos outros membros da Academia platônica, os quais eram todos, por suas origens, matemáticos e geômetras, enquanto ele era médico e fisiologista, percebe que o platonismo tinha seguido um modo de pensar típico do geômetra ou do matemático , que é o de formar os conceitos separados e encadeá-los numa ordem lógica. E percebeu claramente que isto não basta, que além de expor a hierarquia lógica do mundo, é preciso explicar como as coisas vêm à existência, como o mundo funciona efetivamente.

Desta visão cosmológica do platonismo decorre uma gnoseologia ou teoria do conhecimento. A gnoseologia platônica , vendo que existem dois estratos separados, um, o da experiência, outro, o estrato essencial ou conceptual, e não conseguindo estabelecer nenhuma passagem entre eles, só podia explicar o conhecimento pelo famoso expediente da recordação ou rememoração (anamnesis). A pergunta é a seguinte: Se estes estratos estão rigidamente separados, como é possível o conhecimento? Se vivemos num mundo de aparências ilusórias, que aparecem e desaparecem no tempo , mas por outro lado a nossa mente é capaz de, partindo das aparências ilusórias, chegar até o conceito, que é a imagem estável e permanente da verdadeira realidade, parece que esta nossa habilidade é contraditória com o próprio conteúdo da teoria. Se estamos vivendo no mundo das aparências, como a partir delas chegamos às essências? A aparência só nos revela a aparência. Se captamos algo por trás dela não pode ser pelos mesmos meios através dos quais nós captamos a aparência. Portanto, o fato mesmo de que nós consigamos fazer conceitos das coisas é um mistério inexplicável desde o ponto de vista platônico. Platão propõe então a teoria da recordação, a anamnese. Diz ele que antes de nascermos, nossas almas já existem no mundo eterno das idéias, onde vemos os conceitos puros ou as essências de todas as coisas. Daí, quando entramos no fio do tempo, passando a existir neste mundo de aparências , esquecemos uma boa parte mas um pouquinho sobra. Então, um acaso feliz ou um interrogatório bem conduzido, como numa espécie de psicanálise, pode nos fazer recordar este conhecimento que jaz no fundo de nós. Ora, se é assim e já está lá desde que nascemos, a experiência real não é muito útil. Só serve para suscitar em nós o desejo de conhecer os conceitos puros. Por isto, Platão é chamado um racionalista (o fundamental do conhecimento sendo obtido pela razão e não pela experiência). Em Platão, a percepção real, que nos entrega somente aparências, só serve para despertar o apetite do conhecimento, mas o fundamental deste é obtido por um modo puramente intelectual ou racional, que é o interrogatório ou a discussão dialética que vai fazendo você recordar as idéias centrais. Platão expõe por um lado esta cosmologia onde o mundo é feito de estratos totalmente separados e por outro, a gnoseologia do tipo racionalista, onde a experiência não desempenha nenhum papel.

Perante a gnoseologia de Platão, Aristóteles fará a mesma objeção que fez à cosmologia. Dirá que não é possível que estas duas formas de conhecimento – a que obtenho pelos sentidos e a que obtenho pela razão – estejam completamente separadas. Porque vejo que o indivíduo que apreende os dados dos sentidos é o mesmo que intelige pela razão os conceitos puros. Vejo claramente que existe uma caminhada, uma ascensão contínua e gradativa, desde a experiência até o conceito, não um salto absoluto como no caso platônico. Tanto que vai ser difícil encontrar (esta é uma observação fundamental de Aristóteles) algum dado dos sentidos que esteja completamente livre de interferências da razão. Sempre existe um princípio de organização racional até na percepção sensível. Por outro lado, vai ser muito difícil achar algum conceito racional totalmente puro, que não deva nada à experiência. Se nunca tivéssemos visto um cavalo, de onde iríamos extrair o conceito de cavalo? Aristóteles vê que entre o conhecimento por experiência e o conhecimento pela razão, entre o conhecimento do mundo das aparências e o do mundo das essências, não existe um salto, nem mesmo um salto retroativo como pretendia o platonismo, mas existe uma ascensão progressiva e muito problemática. Às vezes conseguimos obter os conceitos puros, às vezes não. Se fosse tão natural saltarmos da experiência para os conceitos, seria muitíssimo fácil apreender em quaisquer fenômenos as devidas separações e classificações de gêneros e espécies e freqüentemente isto é muito difícil. Aristóteles sabe disso porque ele tentava classificar os animais, enquanto na escola platônica só se classificavam idéias puras ou idéias geométricas. Aristóteles punha a mão na massa, e via que classificar fenômenos reais (por exemplo, as famílias de espécies animais) não era o mesmo que classificar conceitos puros ou geométricos. Hoje sabemos que os elefantes são parentes dos cavalos, que formam uma mesma família; logicamente pertencem à mesma espécie. Mas como por métodos platônicos ou dialéticos se chegaria a uma coisa dessas? Portanto, as distinções de gêneros, espécies e as classificações dos seres não podem ser feitas exclusivamente por método lógico. Têm de ter base na experiência e na separação e classificação das próprias aparências, antes de partir para a classificação dos conceitos. Tudo isto, que é uma descoberta de Aristóteles, se torna a base do método científico para sempre.

Muitas coisas que foram matéria de discussão filosófica 2400 anos atrás, hoje são matéria de pesquisa experimental. A inseparabilidade do sensível e do racional, afirmada por Aristóteles, foi inteiramente demonstrada por Jean Piaget na esfera experimental. Piaget demonstra por meios experimentais que não existe sensação pura, na qual não entre um elemento organizativo prévio. A sensação totalmente informe não seria notada por nós. A sensação pura não poderia ser distinguida de outra sensação, não poderia ser sentida; se ela é distinguida, é porquê já existe um princípio de classificação e organização imanente. Mas a organização não é sensitiva, é racional. A idéia de sensação pura hoje em dia é considerada uma quimera e a idéia da pura razão igualmente. Podemos conceber estas coisas, mas apenas como possibilidades lógicas, não como coisas reais.

O organismo humano é um organismo, portanto organizado. Já recebe as sensações ordenadas segundo a forma do corpo e isto é um princípio da razão, já que, diz Aristóteles, a alma é a forma do corpo e a alma do homem é intrinsecamente racional. Você tem sensações visuais e auditivas distintas, não vê os sons nem ouve as cores. Este é um princípio de distinção inerente à própria forma do corpo. Toda sensação já é classificatória. Sentir uma coisa já é distingui-la das outras. Portanto, o aspecto sensível e o racional não são separáveis realmente, são apenas distinguíveis.

A chave da teoria do conhecimento aristotélica é a seguinte: distinto é uma coisa e separado é outra. A audição é distinta da visão, mas não posso ouvir às segundas quartas e sábados e ver às terças, quintas e sextas. Elas não são separáveis realmente. Do mesmo modo, o aspecto racional, organizativo, não é separável da experiência sensível que nos dá a matéria do conhecimento. Isto significa que a distinção entre o experimental e o racional é uma distinção mental, apenas uma distinção e não uma separação, — uma crítica fundamental à gnoseologia platônica, que trata como separação o que é apenas distinção. São dois modos de ver. Como nome e sobrenome. Você tanto pode ser encarado como indivíduo, como pode sê-lo como membro da família. Dois aspectos distintos, mas inseparáveis. Ou a distinção entre camelo e fisiologia do camelo. Um não é o outro – mas existe algum camelo sem fisiologia do camelo, ou fisiologia de camelo sem camelo?

A distinção entre o racional e o experimental é uma distinção de nomes — ou de pontos-de-vista — e não de coisas reais. A distinção entre distinção e separação é outra conquista imorredoura de Aristóteles. Muitos debates hoje entre o que é holista ou cientificista seriam resolvidos na hora mediante a simples aplicação desta distinção.

Outra questão: entre conhecimento sensível e conhecimento racional, qual a ordem dos fatores, qual é primeiro e qual é segundo? Aristóteles responderá que vamos dos sentidos para o pensamento. Porém este sentir é puro, sem qualquer contaminação do pensamento? A resposta é não. Para que o sentir fizesse pensar seria necessário que houvesse um elemento de pensamento dentro dele. Senão, teríamos o milagre de uma coisa que não existe mais produzindo outra que não existe ainda. Para que a experiência sensível possa gerar um raciocínio, é preciso que haja dentro dela uma semente de raciocínio. É mais ou menos o que vai dizer 2400 anos depois o Piaget. É claro que o sentir e o pensar representam etapas do conhecimento, e não formas de conhecimento radicalmente distintas. Se você tem de um lado o sentir, do outro o pensar – o que diz Aristóteles? Não é uma distinção de lados, mas de etapas. É como a distinção que existe entre uma criança e um adulto. O adulto que você será, a forma do adulto, já não está na criança? E este adulto que está aí, não é aquela mesma criança? É uma distinção mais nominal entre etapas que uma distinção entre seres separados ou aspectos separados e simultâneos.

É este senso da organicidade que é a coisa central para compreender o pensamento de Aristóteles, e talvez a maior contribuição dele. Isto corresponde, de fato, ao modo de sentir quotidiano, do senso comum. O sujeito são pensa de maneira orgânica. Todo mundo pensa organicamente em todas as questões reais da vida.

Platão foi chamado “o divino Platão”, uma espécie de profeta ou anjo, alguém que tem uma visão do outro mundo. A coisa mais característica de Aristóteles é sua profunda e total humanidade – pensar tudo na escala do ser humano realmente existente. Dessa diferença decorre uma diferença moral profunda. A moral platônica é moral de perfeições celestes. A moral aristotélica é uma tentativa de melhorar o homem aos poucos, partindo de suas limitações e aceitando-as, em vez de condená-las em nome de um padrão moral abstrato. Não há fundamental contradição entre as duas morais, no entanto. Poderíamos comparar as relações entre platonismo e aristotelismo à trindade cristã: existe um Deus Pai incognoscível, inatingível, mas é preciso existir o Deus que desce até você e vem viver o destino humano na sua plenitude. Entre os dois, você tem o Espírito Santo que é a relação de amor. O eterno e o temporal, o divino e o humano estão unidos por uma aliança indissolúvel. Jogar um destes aspectos contra o outro é ir contra o ser humano. Não podemos jogar platonismo contra aristotelismo, que na esfera filosófica correspondem a estes dois aspectos. Ir por um destes caminhos ou pelo outro é quase uma questão de temperamento, mas um deles não nega o outro, na medida em que o prolonga e o realiza.

Todas as críticas de Aristóteles ao platonismo só visam a trazê-lo do céu para a Terra, para realizá-lo. Aristóteles poderia dizer de Platão o mesmo que Cristo disse do Velho Testamento: “Não vim revogá-lo, vim realizá-lo.” A ordem de realização de uma coisa é o inverso da sua ordem de concepção – outra descoberta aristotélica. Para conceber o plano de uma casa, você concebe a casa no todo e depois no detalhe. E para construir? Pedaço por pedaço até chegar ao todo. A ordem do conhecer e a ordem do ser são inversas e complementares. Portanto, a realização do platonismo é a inversão das suas prioridades teóricas.

Aula III – Parte I

 

Comments

comments