O deus dos palpiteiros

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de março de 2009

Se há um Deus onipotente, onisciente e onipresente, é óbvio que não podemos conhecê-Lo como objeto, ou mesmo como sujeito externo, mas apenas como fundamento ativo da nossa própria autoconsciência, maximamente presente como tal no instante mesmo em que esta, tomando posse de si, se pergunta por Ele. Tal é o método de quem entende do assunto, como Platão, Aristóteles, Sto. Agostinho, S. Francisco de Sales, os místicos da Filocalia, Frei Lourenço da Encarnação ou Louis Lavelle.

Quando um Richard Dawkins ou um Daniel Dennett examinam a questão de um “Ser Supremo” que teria “criado o mundo” e chegam naturalmente à conclusão de que esse Ser não existe, eles raciocinam como se estivessem presentes à criação enquanto observadores externos e, pior ainda, observadores externos de cuja constituição íntima o Deus onipresente tivesse tido a amabilidade de ausentar-se por instantes para que pudessem observá-Lo de fora e testemunhar Sua existência ou inexistência. Esse Deus objetivado não existe nem pode existir, pois é logicamente autocontraditório. Dawkins, Dennett e tutti quanti têm toda a razão em declará-lo inexistente, pois foram eles próprios que o inventaram. E ainda, por uma espécie de astúcia inconsciente, tiveram o cuidado de concebê-lo de tal modo que as provas empíricas da sua inexistência são, a rigor, infinitas, podendo encontrar-se não somente neste universo mas em todos os universos possíveis, de vez que a impossibilidade do autocontraditório é universal em medida máxima e em sentido eminente, não dependendo da constituição física deste ou de qualquer outro universo.

Se você não “acredita” no Deus da Bíblia, isso não faz a mínima diferença lógica ou metodológica na sua tentativa de investigar a existência ou inexistência d’Ele, quando essa tentativa é honesta. Qualquer que seja o caso, você só pode discutir a existência de um objeto previamente definido se o discute conforme a definição dada de início e não mudando a definição no decorrer da conversa, o que equivale a trocar de objeto e discutir outra coisa. Se Deus é definido como onipotente, onisciente e onipresente, é desse Deus que você tem de demonstrar a inexistência, e não de um outro deus qualquer que você mesmo inventou conforme as conveniências do que pretende provar.

O método dos Dawkins e Dennetts baseia-se num erro lógico tão primário, tão grotesco, que basta não só para desqualificá-los intelectualmente nesse domínio em particular, mas para lançar uma sombra de suspeita sobre o conjunto do que escreveram sobre outros assuntos quaisquer, embora seja possível que pessoas incompetentes numa questão que julgam fundamental para toda a humanidade revelem alguma capacidade no trato de problemas secundários, onde sua sobrecarga emocional é menor.

Longe de poder ser investigado como objeto do mundo exterior, Deus também é definido na Bíblia como uma pessoa, e como uma pessoa sui generis que mantém um diálogo íntimo e secreto com cada ser humano e lhe indica um caminho interior para conhecê-La. Só se você procurar indícios dessa pessoa no íntimo da sua alma e não os encontrar de maneira alguma, mesmo seguindo precisamente as indicações dadas na definição, será lícito você declarar que Deus não existe. Caso contrário você estará proclamando a inexistência de um outro deus, no que a Bíblia concordará com você integralmente, com a única diferença de que você imagina, ou finge imaginar, que esse deus é o da Bíblia.

Quando o inimigo da fé faz um esforço para ater-se à definição bíblica, ele o faz sempre de maneira parcial e caricata, com resultados ainda piores do que no argumento da “criação”. Dawkins argumenta contra a onisciência, perguntando como Deus poderia estar consciente de todos os pensamentos de todos os seres humanos o tempo todo. A pergunta é aí formulada de maneira absurda, tomando as autoconsciências como objetos que existissem de per si e questionando a possibilidade de conhecer todos ao mesmo tempo ex post facto. Mas a autoconsciência não é um objeto. É um poder vacilante, que se constitui e se conquista a si mesmo na medida em que se pergunta pelo seu próprio fundamento e, não o encontrando dentro de seus próprios limites, é levado a abrir-se para mais e mais consciência, até desembocar numa fonte que transcende o universo da sua experiência e notar que dessa fonte, inatingível em si mesma, provém, de maneira repetidamente comprovável, a sua força de intensificar-se a si próprio. Dez linhas de Louis Lavelle sobre este assunto, ou o parágrafo em que Aristóteles define Deus como noesis noeseos, a autoconsciência da autoconsciência, valem mais do que todas as obras que Dawkins e Dennett poderiam escrever ao longo de infinitas existências terrestres. Um Deus que desde fora “observasse” todas as consciências é um personagem de história da carochinha, especialmente inventado para provar sua própria inexistência. Em vez de perguntar como esse deus seria possível, sabendo de antemão que é impossível, o filósofo habilitado parte da pergunta contrária: como é possível a autoconsciência? Deus não conhece a autoconsciência como observador externo, mas como fundamento transcendente da sua possibilidade de existência. Mas você só percebe isso se, em vez de brincar de lógica com conceitos inventados, investiga a coisa seriamente desde a sua própria experiência interior, com a maturidade de um filósofo bem formado e um extenso conhecimento do status quaestionis.

O que mata a filosofia no mundo de hoje é o amadorismo, a intromissão de palpiteiros que, ignorando a formulação mesma das questões que discutem, se deleitam num achismo inconseqüente e pueril, ainda mais ridículo quando se adorna de um verniz de “ciência”.

A consciência sem consciência

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de março de 2009

Todos nós, em momentos difíceis da vida, já tentamos nos explicar a alguém que não quer ou não pode nos compreender. O olhar do sujeito desliza de um lado para outro por trás de um véu opaco, sem atingir o foco do que pretendemos lhe mostrar; e, como não tem foco, não consegue articular num quadro coerente o que lhe dizemos. Ele apreende as palavras e até frases inteiras, mas as esvazia de sentido ou lhes atribui um sentido impróprio, deslocado da situação. É uma coisa irritante, às vezes desesperadora.

Também todos já vimos pessoas que, envolvidas elas próprias em dificuldades, não atinam com a encrenca em que se meteram. Ou permanecem alienadas, numa despreocupação suicida, ou se enervam e atemorizam, mas por motivos inventados que não têm nada a ver com o problema real.

Esses dois tipos de pessoas estão “conscientes”, no sentido da neurofisiologia e da ciência cognitiva, mas não no sentido que a palavra “consciência” tem na vida real. A “consciência” que essas ciências estudam é a simples capacidade de notar estímulos. Elas não podem ir além desse ponto. Não podem distinguir entre o idiota que sente frio na pele e o homem sensível a quem a visão da neve sugere, num relance, o contraste entre a beleza da paisagem e o perigo a que o inverno expõe os pobres desabrigados.

Essa diferença, guardadas as proporções, é a mesma que existe entre os indivíduos dotados de sensibilidade musical e o doente de tune deafness. Esta expressão, para a qual não achei uma tradução unanimemente aceita em português (pode ser “privação melódica”), designa a pessoa que, embora sem sofrer de nenhuma deficiência auditiva, simplesmente não consegue captar uma melodia. Ouve as notas separadas, mas não atina com a frase musical que compõem. Se o cantor desafina, ou o pianista toca um ré onde deveria entrar um fá, ela não nota a mínima diferença. Nos casos mais graves, o doente não consegue nem mesmo entender o que é música: não nota a mínima diferença entre os Concertos de Brandemburgo e o som das buzinas no tráfego congestionado. A doença é esquisita, mas não rara: segundo dados recentes, dois por cento das pessoas têm algum grau de tune deafness.

Victor Zuckerkandl, em Sound and Symbol (1956) – um livro esplêndido –, diz que essa diferença assinala a distinção específica da música, separando-a de todos os demais fenômenos acústicos. A música, em suma, tem não apenas ordem – o ruído de um motor também tem. Ela tem significado: aponta para algo que vai além dos elementos sonoros que a compõem. A distância entre ouvir sons e apreender uma melodia é a mesma que há entre ouvir palavras e compreender o que dizem – ou, pior ainda, entre compreender o mero sentido verbal das frases e reconhecer a que elas se referem na vida real.

Para complicar ainda mais as coisas, um estudo recente, que pretendia encontrar alguma explicação neurocerebral para a tune deafness, descobriu, para grande espanto dos pesquisadores, que, embora as pessoas afetadas por essa deficiência não percebam uma nota errada, seus cérebros registram a diferença com a mesma acuidade com que o faria o cérebro de Mozart. Elas ouvem a música perfeitamente bem, mas a ouvem – dizem os autores da pesquisa – “inconscientemente”. Seus cérebros percebem a melodia: quem não a percebe são elas (v. Allen Braun et al., “Tune Deafness: Processing Melodic Errors Outside of Conscious Awareness as Reflected by Components of the Auditory ERP”, em http://www.plosone.org/article/info:doi/10.1371/journal.pone.0002349).

Zuckerkandl, que morreu em 1965, não poderia esperar que sua teoria recebesse, meio século depois de publicada, uma confirmação tão eloqüente. O que não lhe escapou foi a importância filosófica da sua descoberta, que, por ir na contramão das modas científicas, permaneceu quase desconhecida das classes letradas por muitas décadas (antes dos anos 90 só a vi citada em Henry Corbin, que a usava para explicar os estados místicos no esoterismo iraniano do século XIII – assunto que não é propriamente um sucesso de público).

A percepção da música, no fim das contas, requer o mesmo tipo de compreensão necessário para você apreender uma situação dramática complexa, seja a sua própria, a de um interlocutor ou a que você lê em Hamlet, Crime e Castigo, A Montanha Mágica e assim por diante. Ora, para explicar o fato de que o cérebro registre uma sensação de frio, os cientistas são obrigados a decompor esse fenômeno banal numa série de processos neurobiológicos incrivelmente complexos. Nem esses processos estão ainda bem explicados, mas, como o sonho da ciência materialista é poder reduzir a eles a consciência inteira, explicando-a como “produto” do cérebro, muitos adeptos do materialismo agem como se já tivessem operado a redução e fornecido para ela as provas mais cabais e irretorquíveis, daí concluindo que a consciência, como tal, nem mesmo existe: é apenas uma função cerebral entre outras. Isso é charlatanismo, evidentemente, mas as fontes que o inspiram vem ainda de mais baixo do que o charlatanismo puro e simples.

Notem bem: além daquela diferença assinalada pelo fato da tune deafness, a consciência tem ainda um segundo traço distintivo, que a separa de qualquer outro fenômeno conhecido no universo. Não importa do que você esteja falando, o milagre da linguagem abstrata permite que você se refira aos objetos não só sem necessidade de que eles estejam presentes fisicamente, mas sem necessidade de que você pense neles como coisas reais. Você pode até substituir o mero conceito abstrato deles por um sinal algébrico e continuar raciocinando a respeito sem nem se lembrar dos seus correspondentes reais, seguro de que, no fim do raciocínio, se formalmente correto, você encontrará conclusões que se aplicarão tim-tim-por-tim-tim a esses correspondentes. Se não fosse isso, não poderiam existir computadores. No entanto, nada de parecido se dá com a consciência. Você não pode falar dela sem que ela esteja presente e em ação naquele mesmo instante. O verdadeiro discurso sobre a consciência tem, ao contrário, o dom de intensificar a consciência no instante mesmo em que você raciocina a respeito dela, como uma luz que, tão logo acesa, acende uma série de outras automaticamente e ilumina o recinto inteiro. Esse é o sentido em que se fala de “consciência” na vida real. Esse discurso exige a presença do falante consciente e responsável que se assume como presente no ato mesmo em que discorre. Se, em contrapartida, você reduz a consciência a um fenômeno genérico, do qual possa falar como coisa externa, o objeto escapa instantaneamente do seu horizonte de consciência, e eis que você já não está falando sobre a consciência efetivamente existente, mas só sobre algum mecanismo ou aspecto dela em particular, perfeitamente inexistente em si mesmo. Consciência, no sentido forte da palavra, é autoconsciência atual, responsável – é algo que só pode existir no indivíduo real, presente, atuante. Consciência genérica, abstrata, é um puro fetiche lógico. Se algum dia descobrirem como o cérebro produz esse fetiche, a consciência continuará inexplicada. O esforço redutivista, no caso, não tem o mínimo alcance científico real. É apenas um engodo hipnótico, um instrumento de controle totalitário da sociedade. Num artigo vindouro explicarei melhor a função política desse artifício.

Olavo e Newton – Parte I

Prezado Hélio,

Nunca esperei que minhas coisas fossem lidas no Brasil com a atenção e seriedade com que você as lê. Parecia-me que isso só viria a acontecer por volta de 2070, caso ainda existissem brasileiros. Sinceramente, estou impressionado. O simples fato de você perceber que alguns dos meus escritos jornalísticos são compactados de demonstrações implícitas já faz de você um leitor muito especial, daqueles para os quais um autor se alegra de escrever.
Se você continuar assim, logo alcançará a maior glória que um filósofo pode alcançar no Brasil, que é ser chamado de filósofo entre aspas pelas pessoas que não sabem o que é filosofia sem aspas. Abração e vá em frente.

Olavo de Carvalho

Olavo e Newton – Parte I

Hélio Rodrigues Pereira

13 de março de 2009

ÍNDICE

Prefácio

1- Introdução

2- Porque Olavo é filósofo?

2.1- Olavo sobre os princípios elementares, de Chesterton a Lukasiewicz

2.1.1. A concepção de Chesterton
2.1.2. A concepção histórica: dos antigos filósofos a Hilbert
2.1.3. A concepção de Lukasiewicz
2.1.4. A concepção de Olavo de Carvalho

2.2- Olavo e a Teoria do Sujeito-Objeto

2.3- Olavo e a filosofia aristotélica

2.4- Olavo e a Teoria dos Quatro Discursos

3- Resumindo o artigo

4- A filosofia e a ciência no newtonismo

5 – Os problemas da intuição na ciência

Prefácio

Os defensores de Olavo de Carvalho têm sofrido uma injusta acusação. Acusam-nos de simpatizarem com ele somente por causa de afinidades ideológicas, como se aceitassem indiscriminadamente qualquer coisa que ele escreva em função de alguma forma de fanatismo que faz seus admiradores agirem como uma torcida organizada. Embora eu não possa negar que existem aqueles que agem assim, afinal isso faz parte da natureza humana, a verdade é que eu quero defender aqueles que apreciam seus textos por outros motivos além daqueles que seus acusadores estão habituados a supor. Meu propósito é tentar mostrar o quanto tal acusação pode ser injusta. Para atingir este objetivo, primeiro vou apresentar as razões que justifiquem o porquê dele merecer ser lido e ser considerado um filósofo. Em seguida vou apresentar algumas objeções ao texto http://www.olavodecarvalho.org/semana/060615jb.html mas não sem antes mostrar também que muito do que foi afirmado pelo seu autor de fato procede, e para este fim, será apresentado uma versão daquilo que penso ter entendido de seus argumentos. Que isso sirva para esclarecer que o fato de alguém apreciar seus artigos, não significa que o esteja fazendo sem espírito crítico, e para tanto, busquei fazer um trabalho digno e honroso a todos os lados desta questão.

INTRODUÇÃO

O artigo do filósofo Olavo de Carvalho:
http://www.olavodecarvalho.org/semana/060615jb.html é muito mal compreendido. Seus críticos, ou não entendem exatamente o que o texto quer dizer, ou desconhecem muito daquilo que é tomado como base para a tese defendida, pois suas reações são dominadas pela indignação diante dos ataques aos méritos de Newton e sua mecânica. Por outro lado, as idéias deste texto são apresentadas de modo problemático, pois assumem uma série de pressupostos. É difícil não receber com estranheza uma tal exposição sem estar informado das considerações e análises que o precederam. Possivelmente muitos dos argumentos que poderiam explicar o que parece ser uma especulação sem justificativa, não pôde estar presente no texto devido às restrições de espaço impostas pelos rigores editoriais. Trata-se de fato, de uma reflexão filosófica hermética, mas é de um hermetismo atípico, pois não se caracteriza pela profusão de um vocabulário que exige estudos prévios, mas pela quantidade de observações cujo significado só pode ser absorvido após leituras anteriores, e familiaridade com o pensamento de seu autor. Muitos daqueles que percebem de imediato o que está sendo dito, talvez discordem disso, alegando inclusive que se trata de uma visão intuitiva que é inteligível a qualquer pessoa inteligente. Para estes, o que posso dizer é que concordo que existem muitos juízos intuitivos neste texto, mas por outro lado, penso que existem aspectos que não foram abordados nem pelo autor e nem pelos críticos, e que precisam sê-lo para que se possa resgatar o que está oculto, completar o que falta e reconstituir o fio de Ariadne. É com este propósito que justifico o porquê deste post ser escrito.

Contudo, antes de prosseguir, sabendo que muitos dos que irão ler são seus detratores contumazes, sinto que precisarei seguir uma metodologia especial, para potencializar ao máximo a capacidade de que o que eu venha escrever seja lido com um mínimo de respeito necessário a um julgamento imparcial das idéias aqui envolvidas. Em obediência a esta metodologia, antes de apresentar o texto analisado na forma como eu entendi, buscarei divulgar os méritos filosóficos de seu autor para justificar o porquê dele merecer ser lido, tentando expor isso de um modo ainda não tentado.

Após isso, será apresentado aqui o meu ponto de vista sobre o tema, que se resume em dois pontos: a) As críticas contra e a favor de Newton se dirigem a um objeto de discurso que não corresponde aquilo que se supõe ser debatido. b) O fenômeno cultural apontado no artigo de Olavo, de fato existe, mas será proposta aqui uma outra origem.

2- PORQUE OLAVO É FILÓSOFO ?

Para que se possa ter alguma expectativa razoável de que eu vá conseguir apresentar razões convincentes de que Olavo é um autor que merece respeito e que no mínimo os seus textos filosóficos deveriam ser lidos, a minha estratégia será apresentar de que modo os insights do filósofo acrescentam informações adicionais à um debate em processo.
Irei mostrar alguns exemplos em que o progresso em determinadas discussões filosóficas recebeu uma contribuição original capaz de responderem muitas das questões em aberto, a partir de concepções apresentadas em suas apostilas da Internet. É com essa forma de exposição que será possível dar uma idéia mais acurada do valor filosófico de suas idéias, na medida em que forem identificadas como um ganho de informação nas investigações pendentes.

2.1- Olavo sobre os princípios elementares, de Chesterton a Lukasiewicz.

Um destes ganhos de informação que posso ressaltar é a participação do filósofo Olavo de Carvalho na evolução do entendimento a respeito das propriedades dos princípios elementares. Os princípios elementares, os postulados, os axiomas, são os conhecimentos primeiros, ou as afirmações primeiras, dependendo da postura que se tem em relação a elas. São os primeiros passos para erigir um discurso ordenado, uma teoria, que faz das conseqüências destas primeiras afirmações, um sistema gerador de afirmações segundas e terceiras. Este sistema gerador é reconhecido no mundo lógico e matemático como uma atividade dedutiva, e possui a utilidade do sistema dedutivo, que na economia do conhecimento pode ser compreendido assim: como toda argumentação teórica provém da validade destas afirmações primeiras, tudo que com é preciso se preocupar é que as tais afirmações sejam válidas que o resto das afirmações o será automaticamente.
Existem vários exemplos de teorias e filosofias escritas seguindo este princípio explicitamente. A geometria euclidiana se baseia nos conceitos primitivos de reta, ponto e ângulo e algumas propriedades elementares. A mecânica newtoniana se fundamenta nas três primeiras leis. A análise matemática é uma dedução das propriedades elementares da teoria dos conjuntos e dos princípios que caracterizam os números, e assim em diante.

Para atingir a meta estabelecida neste capítulo, começarei com o artigo escrito por Chesterton em 22 de junho de 1907, que fornece uma idéia de como estes princípios costumam serem compreendidos:

2.1.1 – A concepção de Chesterton


http://www.chesterton.org/gkc/philosopher/v1n6.gkcessay.hm

“What modern people want to be made to understand is simply that all argument begins with an assumption; that is, with something that you do not doubt. You can, of course, if you like, doubt the assumption at the beginning of your argument, but in that case you are beginning a different argument with another assumption at the beginning of it. Every argument begins with an infallible dogma, and that infallible dogma can only be disputed by falling back on some other infallible dogma; you can never prove your first statement or it would not be your first. All this is the alphabet of thinking.”

Tradução:

“O que as pessoas de hoje em dia precisam entender, é simplesmente que todo o argumento começa com uma suposição; isto é, com algo que você não duvida. Você pode, claro, se for de seu interesse, duvidar da suposição inicial do seu argumento, mas neste caso você está começando um argumento diferente com uma outra suposição inicial. Todo argumento começa com um dogma infalível, e tal dogma infalível só pode ser questionado recorrendo a algum outro dogma infalível; você nunca pode provar a sua primeira declaração ou esta não seria a sua primeira. Tudo isto é o be-a-bá do pensamento.”

Então, segundo Chesterton, os princípios elementares nada mais são do que um dogma que não se prova. Bom, esse ponto de vista parece incompleto. Existem, além dos princípios elementares que assumem o papel de dogmas, aqueles que fazem parte de um conjunto coerente e que se provam mutuamente, e neste caso os tais pressupostos adquirem uma legitimidade ainda maior.

Para ilustrar, imagine uma situação em que há os pressupostos 1, 2 e 3. O pressuposto 1 fundamenta o 2, o pressuposto 2 fundamenta o 3 e o pressuposto 3 fundamenta 1. Pode haver necessidade de um pressuposto adicional para fundamentar coisas que não podem ser deduzidas dos pressupostos 1, 2 e nem de 3. Desta forma, pode-se assumir uma outra premissa, o pressuposto 4. Se o pressuposto 4 não deduzir e nem for deduzido pelos pressupostos 1,2 e 3, então teremos um pressuposto independente, ou, um axioma independente. Mas, segundo a expressão: “Todo argumento começa com um dogma infalível, e tal dogma infalível só pode ser questionado recorrendo a algum outro dogma infalível; você nunca pode provar a sua primeira declaração ou esta não seria a sua primeira.” Pode-se inferir que Chesterton aparentemente não conhece a ilustração acima citada e, portanto, se levarmos em conta suas observações, os pressupostos 1,2 e 3 deveriam estar numa relação hierárquica em que um prova o seguinte, mas não é provado pelo seu sucessor. Para que ninguém pense que a ilustração citada é uma abstração hipotética, menciono como exemplo que os Axiomas de Peano e o Princípio da Boa Ordenação, na Análise Matemática, cumprem este papel de se fundamentarem mutuamente.

Todavia, é preciso dar um desconto a Chesterton, porque seu interesse não era o de fazer afirmações precisas sobre os princípios elementares, mas o de mostrar a inutilidade, a injustiça, de achar que um discurso só é válido se todas as afirmações dos discursos forem válidas, porque por tal critério, nenhum discurso possível seria válido pelo motivo de que sempre haverá suposições assumidas que não podem ser validadas em qualquer discurso. Tal exigência acabaria por paralisar qualquer debate. Bom, como este não é o foco desta discussão, o passo seguinte é conferir o que mais está sendo dito sobre o tema.

O texto a seguir é uma parte do livro do acadêmico Décio Krause Introdução aos Fundamentos Axiomáticos da Ciência, publicado em 2002 e que é um tratado mais completo que encontrei sobre o assunto.


2.1.2. A concepção histórica: dos antigos filósofos a Hilbert

“É fato universalmente aceito que o método axiomático é originário da Grécia antiga, ainda que as razões de sua origem sejam obscuras. A. Szabó, por exemplo, sustenta que ele foi ‘emprestado’ dos matemáticos, sendo originário da escola eleática, que tem em Zenão de Eléia (que viveu no início do século V A.C.) um dos mais destacados e cultores do método dialético em filosofia. Como diz Szabó, “eles [os gregos] estavam acostumados ao fato de que, quando um dos contendores de um debate quer provar algo ao outro, deve iniciar com uma asserção que seja aceita por ambos. Essa asserção era chamada de ?p???es?? [hipótese]- o alicerce do debate. Este método foi mantido também na matemática sistemática, a qual baseava-se em sentenças que se acreditava eram aceitas por qualquer um sem prova, e também chamadas hipóteses da matemática. A primeira espécie de tais hipóteses eram as definições, as quais para os gregos eram os limites [contornos] dos conceitos (noções ) usados em matemática, e eram dados sem prova”.

“Como salienta Szabó, há no entanto outra maneira de entender a palavra ‘hipótese’ além daquela de considerá-la uma asserção inicial que não é demonstrada, e aceita verdadeira sem prova. Trata-se de uma vê-la como uma asserção que é posta tentativamente para que se possa investigar a sua veracidade. Ambos os usos são encontrados na filosofia grega; o primeiro pode ser visto claramente (como mostra este autor) no diálogo platônico Fedon onde Sócrates fala de seu ‘método’ de iniciar com uma hipótese e considerar como verdadeiro tudo o que se harmoniza com ela. A forma de se visualizar essa ‘harmonia’ seria a demonstração ou prova. A segunda acepção é posta no diálogo Teeteto, igualmente de Platão (429-348 a.C.), no qual é colocado o problema de se verificar se o nosso conhecimento e nossas percepções sensoriais coincidem. A alegada coincidência é posta como uma hipótese, (na segunda acepção acima), e é mostrada que ela conduz a uma contradição, levando Sócrates a concluir que tal hipótese não pode portanto ser verdadeira. Este tipo de raciocínio, tipicamente filosófico, teria originado o método de prova mais interessante pela matemática grega, o da prova indireta, enormemente usado em matemática, como por exemplo pelos pitagóricos para demonstrar a incomensurabilidade da diagonal de um quadrado com o seu lado, e teria origem na filosofia eleática, segundo o mencionado autor.” [2]

Neste texto de Décio Krause, é feito um levantamento histórico da origem do método axiomático. É possível perceber através deste trecho o modo como a demanda natural por debates mais eficazes exigiu, por necessidade, a elaboração e o uso dos princípios elementares. Todavia, diferente do que Chesterton afirmou anteriormente, tais suposições podem assumir tanto o papel de um dogma ao qual não se prova, como uma asserção cuja validade poderá ser refutada pelas suas próprias conseqüências.

Mas ainda não acabou:

“O método axiomático, apesar de ter sido usado por diversos autores importantes, como Arquimedes (287-212 a.C.) e Isaac Newton (1642 – 1727), só adquiriu maturidade no final do século XIX, principalmente devido ao trabalho de matemáticos como David Hilbert (1862- 1943). Aliás a radical mudança que se deu em relação à interpretação do método axiomático é assunto que nos interessa, motivo pelo qual teceremos algumas considerações a este respeito, ainda que não abordemos em detalhes os aspectos históricos, para os quais remetemos o leitor às nossas referências.”[3]

“Quando estamos investigando os fundamentos de uma ciência, devemos estabelecer axiomas que contenham uma descrição exata e completa das relações que subsistem entre as idéias elementares dessa ciência. Os axiomas assim postos são ao mesmo tempo as definições dessas idéias elementares, e nenhuma afirmativa no domínio da ciência, cuja fundamentação está sendo ensaiada, pode ser considerada correta a menos que possa ser derivada daqueles axiomas por meio de um número finito de passos lógicos
D. Hilbert, ‘Mathematical Problems’, 1902.

“Em seu Grundlagen der Geometrie, de 1899, Hilbert apresenta uma axiomatização (aceita como adequada para os padrões atuais de rigor ) da geometria euclidiana. O importante é que, como veremos abaixo, Hilbert não via necessidade de atribuir conteúdo intuitivo aos conceitos utilizados, como as definições acima referidas pareciam pretender dar; para Hilbert esses conceitos teriam seu papel determinado pelos axiomas da teoria. Este ponto particular fez nascer uma importante polêmica entre o matemático Gotlob Frege (1848-1925) e Hilbert acerca da natureza do método axiomático. Para Frege os conceitos primitivos deveriam ser ‘evidentes’, intuitivos, ao passo que para Hilbert, a sua interpretação seria independente da sua contraparte formal. Isso não quer dizer, que Hilbert defendesse que a matemática deveria se tornar um puro jogo combinatorial, destituída de significado, como ficou difundido em tempos recentes. Leo Corry desmente esta interpretação, mostrando que Hilbert jamais abandonara o aspecto intuitivo de uma teoria matemática, e que destacara que a formalização, que grosso modo faria da teoria um tal ‘jogo destituído de significado’, teria a única função de diminuir ao máximo aspectos intuitivos, como por exemplo a suposição (dada sem prova ) mencionada acima acerca da Proposição I de Euclides de que os círculos se cortam, de forma a poder enfatizar a contraparte lógica, bem como excluir possíveis contradições e asserções supérfluas que se pudessem assertar acerca da teoria. No ano seguinte (1900) Hilbert distinguiu dois modos básicos pelos quais os objetos poderiam ser introduzidos na matemática: o método genético (ou construtivo) e o método axiomático (ou postulacional).”

“Por exemplo, os números reais são introduzidos ‘geneticamente’ quando são definidos a partir dos racionais (via cortes de Dedekind e sequências de Cauchy, ou outro procedimento equivalente ), sendo os racionais por sua vez dados como certas classes de equivalência de inteiros, e estes como certas classes de equivalências de números naturais, os quais por sua vez podem ser ‘construídos’ no escopo da teoria dos conjuntos, como conjuntos particulares.
Axiomaticamente, os números reais são caracterizados pelos axiomas de corpo ordenado completo, estrutura esta que tem os cortes de Dedekind ou certas classes de equivalência de seqüências de Cauchy, por exemplo, como modelos. Do mesmo modo os números naturais podem ser caracterizados pelos chamados axiomas de Peano.” [4]

A partir deste estudo de Krause, foi feito um novo progresso. Se em Chesterton, os princípios elementares são dogmas que não se provam, no pensamento grego os princípios elementares podem ser também uma hipótese para explorar uma idéia cuja conseqüência poderá refutá-la. Já em Hilbert, na medida em que se identificam os princípios elementares como axiomas, estes não precisam estar restritos a qualquer elemento subjetivo. Ou seja, de acordo com Hilbert, não é mais necessário possuir uma justificativa para formular um princípio elementar, estes não estão mais obrigados a estar associados a um juízo intuitivo. Em outras palavras, a auto-evidência de um axioma, em Hilbert é o resultado de uma interpretação que independe de como este axioma foi formulado, o que difere da posição de Frege. Frege, por sua vez, afirma que um axioma precisa ser auto-evidente.

A posição de Hilbert era compreensível, pois este tomou a defesa das Teorias dos Conjuntos de Cantor, cuja formulação, embora fosse bastante útil, estava em desacordo com o que muitos matemáticos consideravam como adequado para se elaborar conceitos matemáticos.

Mas, o que seria um axioma auto-evidente ? Hilbert diz que é uma questão de interpretação, Frege, por outro lado, defende que é indispensável. Mas, afinal, como sabemos se um axioma é auto-evidente ?

Bom, como será visto adiante, Lukasiewicz tem uma posição completamente diferente de Hilbert, Frege e Chesterton a respeito, não só, do papel que deve ter um princípio elementar, mas possui também uma noção peculiar do que seria um axioma auto-evidente.


2.1.3. A concepção de Lukasiewicz.

“Em primeiro lugar, Lukasiewicz constata que o princípio da não-contradição não pode ser demonstrado com base em sua evidência; com efeito, a ‘evidência’ em si mesma não constitui critério seguro de verdade. Também resultaria inconseqüente, por outro lado, a tentativa de se derivar o Princípio a partir de nossa estrutura psíquica, uma vez que leis psicológicas apenas são suscetíveis de comprovação através do método experimental, e este não nos autoriza sequer a formular a Lei da não-contradição como princípio válido em primeira aproximação. Uma terceira possibilidade seria, então, procurar deduzir o Princípio da definição de ‘negação’ ou de ‘falsidade’. Se “A não é B” exprime, por exemplo, simplesmente a falsidade de “A é B”, para natural concluir que essa definição acarreta o Princípio. Contudo, nos diz Lukasiewicz, isto não ocorre na realidade: mesmo que aceitemos como correta a definição precedente de falsidade, nada impede que as proposições “A é B” e “A não é B” sejam ambas verdadeiras; apenas se impõe, como conseqüência, que a proposição “A é B” é simultaneamente falsa e verdadeira. A Lei da não-contradição envolve a noção de conjunção, e não decorre unicamente da definição de falsidade (ou negação).”

“O lógico polonês nos chama a atenção para outra definição de ‘verdade’ e ‘falsidade’ que, de uma certa maneira, parece ser mais fecunda que a tradicional: a proposição “A é B” é verdadeira se corresponde a algo objetivo; falsa, em caso contrário. Similarmente, “A não é B” é uma proposição verdadeira se representa vínculo objetivo; falsa, caso tal fato não se dê. Levando-se em consideração tais critérios, nada impede ‘a priori’ que as proposições “A é B” e “A não é B” sejam ambas verdadeiras, desde que representem situações objetivas.
Lukasiewicz também observa que qualquer defesa do princípio da não-contradição deve, necessariamente, levar em conta o fato de que existem ‘objetos contraditórios’, como, por exemplo, o Círculo Quadrado de Meinong. Para tais objetos, claro está que o Princípio não é válido. Obviamente o lógico polonês não pressupõe que Aristóteles pudesse ter trabalhado com base em tais considerações, que fazem parte de um acervo de estudos que começou a se desenvolver apenas a partir de meados do século XIX, no esteio do florescimento da lógica simbólica. Entretanto, isso não nos impede de salientar a relevância intrínseca da observação de Lukasiewicz: a existência de ‘objetos contraditórios’ foi confirmada pelos desdobramentos recentes da lógica, particularmente pela Teoria dos sistemas formais inconsistentes. Podemos hoje atestar a existência de teorias lógico-matemáticas onde aparecem objetos contraditórios e que, por conseguinte, derrogam o princípio da não-contradição. Tendo em vista tais perspectivas, o Princípio não se mostra tão absoluto e intocável quanto poderia parecer à primeira vista. Aliás, Lukasiewicz afirma que, mesmo para Aristóteles, o princípio da não-contradição não poderia ser uma lei suprema, ao menos na acepção de que constitui pressuposição necessária de todos os demais axiomas lógicos.”

“Citando célebre passagem de Aristóteles nos Analíticos Posteriores (An. Post. A, 11, 77a 10-22), o lógico polonês assevera que o seguinte silogismo seria válido, de acordo com os postulados do Estagirita:

B é A (e também não é não-A)
C, que é não-C, é B e não-B
_________________________
C é A (e não é também não-A)

O silogismo anterior é, portanto, válido, embora a lei da não-contradição seja violada. Meus parcos conhecimentos de silogística não me permitem verificar se, de facto, o silogismo proposto por Lukasiewicz é válido ou não no quadro da lógica aristotélica; no entanto, se o lógico polonês estiver correto, será imperativo aceitarmos a existência de leis válidas de raciocínio que independem do princípio da não-contradição.
A questão central a que agora chegamos pode ser apresentada da seguinte forma: existem ‘objetos’ em relação aos quais estamos certos da vigência do princípio da não-contradição?
Em sua análise, Lukasiewicz irá destinguir três tipos de objetos: 1) os objetos reais; 2) as “abstrações construtivas”, livres criações do intelecto, como, por exemplo, os objetos da matemática clássica; 3) as “abstrações reconstrutivas”, que são conceitos elaborados para representar coisas reais. No tocante às abstrações construtivas, paradoxos como o que Bertrand Russell (1872-1970) descobriu em 1901, ao considerar a questão do Conjunto de todos os conjuntos que não são membros de si mesmo, indicam que, na maioria dos casos, jamais teremos certeza de que não irão violar o princípio da não-contradição. No que concerne às abstrações reconstrutivas, que bem espelham o realidade objetiva, e aos objetos reais, eles parecem estar protegidos da contradição. Com efeito, parece haver certeza de que não existem contradições diretamente perceptíveis na Realidade, pois as negações correlacionadas a juízos de percepção não são elas mesmas perceptíveis, pelo menos em nossa experiência cotidiana.”

“No atual estágio de nosso conhecimento, temos a tendência a admitir como correta a constatação de qualquer contradição ‘real’ só pode ser ‘mediata’, resultado de inferências. Por outro lado, no entanto, não podemos esquecer o fato de que, desde os primórdios da filosofia, é recorrente a tese de que o ‘movimento’ e a ‘mudança’ necessariamente envolvem contradições (a este respeito, podem ser mencionadas as aporias de Zenão de Eléia). Muito embora essas dificuldades lógicas tenham sido sempre eludidas por meio de esquemas teóricos, posto que decorrem de inferências, não parece haver nenhum prova definitiva de que não existam contradições no ‘mundo’ objetivo. Portanto, não existe, também, qualquer prova positiva e inequívoca de que o princípio da não-contradição possui plena vigência em relação aos objetos reais e abstrações reconstrutivas. Contudo, na medida em que podemos verificar que o Princípio é ‘útil’, devemos encará-lo apenas como suposição ou hipótese que norteia e confere forma à indagação científica, regulamentando certas teorizações do Real.

Para Lukasiewicz, pois, o princípio da não-contradição carece de qualquer dignidade lógica a priori; possui, não obstante, um valor ético e ‘prático’ sumamente importante.

Como enfatiza o lógico polonês, se não aceitássemos a validade do Princípio para as atividades ‘práticas’, estaríamos sujeitos a toda sorte de problemas. Assim sendo, para a vida ordinária (atividades comunicativas, sociais, etc.), como Aristóteles já havia assinalado, o princípio da não-contradição constitui pressuposto fundamental. Todavia, é necessário sublinhar que imprescindibilidade prático-ética do Princípio é matéria totalmente distinta de sua validez lógico-teórica. A conclusão de Lukasiewicz a este respeito não deixa de ser assaz perturbadora: a necessidade de se reconhecer como ‘válida’ a lei da não-contradição é tão somente um sintoma da imperfeição ética e intelectual do Homem.”

“O lógico polonês sustenta que Aristóteles percebeu a importância prático-ética do princípio da não-contradição, mesmo que tal constatação não tenha sido claramente formulada em sua obra. Numa época em que o declínio político da Grécia já era patente, o Estagirita tornou-se o fundador e principal promotor de um trabalho filosófico-científico sistemático e de grande rigor. É muito provável que o filósofo grego, especula Lukasiewicz, encarasse todo esse esforço intelectual como um instrumento poderoso para a futura grandeza de sua nação. A negação do Princípio, por conseguinte, deixaria livre o caminho para toda a sorte de falsidades e incertezas, abalando as então frágeis estruturas da investigação científica.

Concluindo seu artigo, Lukasiewicz argumenta que Aristóteles, talvez justamente por ter percebido a fraqueza e a inconsistência de seus postulados, mas tendo plena consciência da importância ‘prática’ que ela envolvia, acabou por estabelecer o princípio da não-contradição como fronteira última que não poderia ser ultrapassada por um discurso racional.”[5]

Até aqui, foi possível acompanhar os diversos pontos de vista sobre os princípios elementares. Se em Chesterton os princípios elementares são dogmas que não se provam, não importando se são auto-evidentes ou não, para Hilbert, a auto-evidência é uma interpretação que não deve influir na formulação dos axiomas, posição essa que Frege discorda, pois assume que os axiomas precisam ser auto-evidentes.
Contudo, ainda existe uma posição completamente diferente de tudo que tem sido proposto até agora.

É que Lukasiewicz defende que até mesmo os axiomas auto-evidentes, considerados mais irrefutáveis, como o princípio da não-contradição, seria na verdade, refutável, e com isso chegou-se ao extremo oposto daquilo que foi afirmado inicialmente: Ao contrário de Chesterton, ao qual afirma que os princípios elementares são dogmas que não se provam, Lukasiewicz diz que até mesmo o princípio da não contradição é refutável e que o conceito de auto-evidência não passa de uma ilusão psicológica por motivos morais. A participação de Chesterton nesta exposição possui inclusive um significado adicional. É que, confirmando num certo sentido as palavras de Lukasiewicz, ele entende haver uma conexão entre moral e verdade, algo que este último nega e aponta, inclusive, como a causa da impressão geral de se achar que o princípio da não contradição é uma verdade necessária.

Se o leitor neste momento pensa que o assunto foi esgotado, que já foi dito tudo que é concebível para ser dito sobre os princípios elementares, os axiomas, engana-se. Por incrível que possa parecer, ainda existe algo dizer. Este algo é a resposta que Olavo deu aos argumentos de Lukasiewicz.

2.1.4. A concepção de Olavo de Carvalho.

“O princípio de identidade é de ordem metafísica e sua contestação, para valer, tem de ser metafisicamente válida. A de Lukasiewicz não é nem pretende ser. Ela pretende apenas demonstrar que na lógica construtivista podemos lidar com objetos contraditórios (coisa que Aristóteles não apenas não contesta, mas afirma resolutamente), e obviamente todos os objetos dessa lógica existem apenas como definições hipotéticas e não têm o mínimo alcance metafísico. A possibilidade de construir raciocínios contraditórios é a base mesma da dialética de Aristóteles, mas Aristóteles jamais cairia na esparrela de confundir a ratio arguendi com a ratio essendi.”

“Quando Lukasiewicz afirma que “existem” objetos contraditórios, a palavra “existência” é aí usada para designar a mera possibilidade de uma coisa ser logicamente construída. É um erro tão primário que não mereceria atenção, se não fosse pela elegante linguagem lógica que o encobre.
Toda a argumentação de Lukasiewicz destinada a impugnar o princípio de identidade subentende a identidade das proposições e conceitos que a expressam. Este é o típico caso de uma regra geral que tenho adotado como critério para o exame crítico de teorias filosóficas: quando o fato mesmo de uma teoria ser enunciada desmente o conteúdo dessa teoria, a teoria pode ser descartada como simples caso de confusão mental. Quando Lukasiewicz afirma que as proposições “A é B” e “A não é B” podem coexistir logicamente, ele não apenas não distingue entre coexistência “in re” e “in verbis” (distinção que está fora do alcance do puro construtivismo), como também subententende como constantes e idênticas a si mesmas as definições de A e de B, pois, se lhes aplicasse o mesmo princípio da coexistência dos contraditórios que acaba de afirmar, não teria duas e sim quatro definições, e assim por diante indefinidamente, o que mostra que sua pretensa contestação do princípio de identidade dá por pressuposta a validade desse mesmo princípio, apenas mostrando que sua negação é pensável, porém pensável, precisamente, como autocontradição que se automultiplica indefinidamente. Toda essa confusão nasce do mau hábito de cortar as ligações da lógica com a ontologia, obtendo uma lógica de pura invenção construtivista da qual se tiram, em seguida conclusões que pretendem ser ontologicamente válidas, introduzindo subrepticiamente no discurso termos como “existência”. Tudo isso é de uma burrice sem par, aliada a uma formidável malícia.”

“Dizer, por exemplo, que a noção de identidade envolve a noção de conjunção, é coisa válida em pura lógica construtivista, mas não em metafísica. Na identidade de um ser consigo mesmo não há conjunção nenhuma. A conjunção entra em jogo apenas na construção da proposição lógica que traduz essa identidade para o microcosmo verbal. Atribuir, retroativamente, à identidade do ser as qualidades formais da proposição que o designa é o mesmo que pentear, em vez dos próprios cabelos, a sua imagem no espelho.
É verdade que Lukasiewicz admite a distinção entre validade lógica e ontológica, mas, na medida em que ele admite também uma lógica não-ontológica que ao mesmo tempo possa servir de critério de veracidade nas ciências, essa admissão fica sem efeito, de modo que ele pode continuar a tirar impunemente conclusões ontológicas de puros formalismos construtivos. Enfim, é uma confusão dos diabos.” [6]

Ao longo deste texto, Lukasiewicz é refutado duplamente: a) ao mostrar precisamente onde foram cometidos os erros em seu argumento de impugnar o princípio da não-contradição b) ao identificar propriedades tais nos axiomas auto-evidentes, que permitem até mesmo que estes sejam distinguidos das outras fórmulas, fundamentando inclusive, o princípio da não-contradição, algo que Lukasiewicz não acreditava ser possível porque provavelmente não tentou imaginar um meio de fazê-lo.

Em relação à refutação “a)”, os erros de Lukasiewicz podem ser divididos em três grupos: confundir a lógica com a dialética, assumir como válido o pressuposto que pretende negar e confundir a representação de uma coisa com a própria coisa representada, abordando formalmente ambas como se tudo fosse uma coisa só.

É justamente o pensamento dialético que justifica a existência de objetos contraditórios, na medida em que estão numa situação intermediária onde suas definições ainda estão sendo depuradas pelos argumentos opostos. A utilidade de um objeto assim, se compreende quando a sua concepção é entendida como um estado qualquer de um progresso no discurso que posteriormente terá suas inconsistências resolvidas, e desta forma deixará de ser um objeto contraditório, para ser um objeto logicamente válido. Considerando isso, o valor dialético de um objeto contraditório, conforme vai justificando sua utilidade no discurso, acaba por ser tomado como um objeto logicamente válido porque o papel que este assume enquanto parte integrante de uma linha de argumentação, passa a receber equivocadamente a mesma legitimidade que se atribui a uma etapa de um raciocínio lógico. Em particular, o paradoxo de Russel, ao invalidar a Teoria Conjuntos como formulada por Cantor, ao mesmo tempo em que tais conjuntos eram um instrumento eficaz para o desenvolvimento da matemática, não favoreceu a legitimidade de objetos não-contraditórios. O verdadeiro significado do Paradoxo de Russel, é que este apenas indicou que o objeto matemático identificado com o Conjunto de Cantor, ainda estava em fase se depuração dialética que terminou por ser concluída, até onde se sabe, na proposta axiomática de Zermelo-Fraenkel.

Quanto ao segundo grupo da refutação “a)”, fica mais claro perceber que o pressuposto que se pretende negar é assumido, quando é analisado uma parte do seguinte silogismo de Lukasiewicz:

B é A (e também não é não-A)
C, que é não-C, é B e não-B
_________________________

C é A (e não é também não-A)

Tomando a fórmula “C, que é não-C, é B e não-B”, é possível abstrair uma mensagem subtendida que afirma que o mesmo C que é definido como sendo não-C, é igual ao C que também é definido como sendo B e em seguida pode ser identificado com o C que é assumido como não-B. Se qualquer um dos C’s citados deixa de ser igual a algum outro C que está incluído na fórmula analisada, violando o princípio da não contradição, então a inferência seguinte não pode ser realizada.

Por ultimo, existe uma associação que está implícita nos argumentos de Lukasiewicz, que é a de tomar as afirmações que são feitas para as relações algébricas da lógica proposicional, e assumi-las como portadora de significado ontológico. É esta postura que tornou plausível a Lukasiewicz fazer manipulações simbólicas, que se formalmente justificariam a negação do princípio da não-contradição, por outro lado, ao se levar em conta o que cada passo da argumentação significa, o resultado seria uma reflexão impossível. Este mesmo erro Lukasiewicz vai tornar mais evidente ao dizer “que a noção de identidade envolve a noção de conjunção”, pois “é coisa válida em pura lógica construtivista, mas não em metafísica. Na identidade de um ser consigo mesmo não há conjunção nenhuma”.

Mas o filósofo Olavo não só demoliu os argumentos de Lukasiewicz. Ele foi adiante e mostrou uma coisa inédita para a maioria dos livros de lógica: que os axiomas auto-evidentes possuem uma propriedade específica que permite distingui-los das outras espécies de formulações lógicas, e que, portanto, não são auto-evidentes por interpretação ou pragmatismo moral, mas são auto-evidentes por um motivo que pode ser detectado mediante o manuseio das fórmulas lógicas!

O método de verificação de Olavo de Carvalho:

“1. “Eu estou aqui”: Esta proposição é auto-evidente sempre que proferida por um sujeito a respeito de si mesmo, não é tautológica e é unívoca.

2. Sua contraditória, “Eu não estou aqui” significa “Não sou eu quem está aqui”, ou “Este lugar não é aqui”? Sendo impossível decidir, a proposição é ambígua, e portanto “Eu estou aqui” é auto-evidente.”[7]

Ou seja, um axioma é auto-evidente porque ao se gerar uma nova fórmula mediante a sua negação, o resultado será uma expressão dúbia incapaz de determinar o que, no axioma original, está sendo negado. Podemos imaginar, para a sentença “Eu estou aqui”, a sua negação sob forma de um cenário em que alguém aponta para um quadro que representa uma pessoa e uma paisagem e diz: “eu não estou aqui”. É a paisagem que não representa o lugar onde ela está ou é a pessoa pintada que não é ela ?

Testando o método de Olavo no princípio da não-contradição.

“1. O princípio de identidade A = A é auto-evidente, não porque tal nos pareça ou porque tenhamos um sentimento de certeza de que é auto-evidente, mas porque sua contraditória, A ¹ A, tem duplo sentido: se A ¹ A, o sujeito da proposição não é igual ao seu predicado, mas, sendo a proposição reversível — o predicado tornando-se sujeito, e o sujeito predicado —, temos então dois sujeitos diferentes, que são ambos sujeitos da mesma proposição: A1 ¹ A2. Logo, a sentença A ¹ A não é unívoca e não pode ser unívoca, donde se patenteia que A = A é auto-evidente.”

“2. A objeção tola de que essa demonstração por sua vez dá por pressuposto o princípio de identidade cai ante a verificação de que a objeção também o dá por pressuposto. O propósito aliás não é aqui “demonstrar” o princípio de identidade mas sim demonstrar a impossibilidade de sua negação unívoca.”[8]

Ou seja, um axioma é auto-evidente porque ao se gerar uma nova fórmula mediante a sua negação, o resultado será uma expressão dúbia incapaz de determinar o que, no axioma original, está sendo negado. Podemos imaginar, para a sentença “Eu estou aqui”, a sua negação sob forma de um cenário em que alguém aponta para um quadro que representa uma pessoa e uma paisagem e diz: “eu não estou aqui”. É a paisagem que não representa o lugar onde ela está ou é a pessoa pintada que não é ela?

Para aquele que tem acompanhado tudo desde o início, comparando cada um dos comentários que se referiam ao conceito de auto-evidência, irá perceber uma abordagem inovadora pelo filósofo Olavo de Carvalho. Chesterton entende como um dogma que não se prova, Hilbert o considera como uma questão de interpretação e Frege defende a sua necessidade. Mas é o filósofo Olavo que propõe um método para obter uma espécie de prova indireta, onde a falsidade da proposição se manifestaria por meio de uma expressão incomunicável, ambígua, cujo significado é dúbio e não permite meios para determinar o quê, especificamente, está sendo dito. Jamais se encontrou em alguma publicação, algo mostrando um esquema que sirva de critério para abstrair uma propriedade específica dos axiomas auto-evidentes, e principalmente, que revele no princípio da não-contradição, uma característica singular fazendo de sua natureza auto-evidente algo de concreto e não apenas uma impressão subjetiva.
Axiomas auto-evidentes são aqueles que quando negados resulta numa forma de indefinição, uma ruptura entre o sujeito e o objeto.

2.2 – Olavo e a Teoria do Sujeito-Objeto.

O filósofo Olavo de Carvalho explicou que a ambigüidade resultante da negação dos axiomas auto-evidentes é um efeito da ruptura entre o sujeito e o objeto. Ocorre que para o filósofo, este efeito não é somente uma curiosidade lógica, mas o sintoma de uma degradação do pensamento filosófico moderno, que ao repetir a ruptura manifestada pela negação dos axiomas auto-evidentes, acaba mostrando ser no fundo tão inconsistente quanto qualquer formula lógica trivialmente absurda, portando inclusive, o sinal inconfundível de todas as contradições. Além disso, na medida em que a defesa da consciência individual é identificada com a preservação da unidade desta mesma consciência, onde, por sua vez, é representada pela unidade do sujeito, do “eu”, unidade esta que se projeta no pressuposto assumido pelo princípio da identidade, o pressuposto que no fim das contas foi abandonado na postura subjetivista da filosofia moderna, sendo este o verdadeiro significado da fraqueza que estaria na raiz de suas nefastas conseqüências; fica caracterizada uma concepção filosófica originalíssima que propõe a existência de um conjunto de nexos que em nenhum outro livro ou publicação no Brasil será, ao menos, sugerido: a da unidade da consciência com a unidade do eu, a unidade do eu com o princípio da identidade, o princípio da identidade com a integridade da relação entre o sujeito e o objeto, e a ruptura da relação entre o sujeito e objeto com a fraqueza epistemológica das filosofias modernas[9].

São quatro, os nexos relatados acima. Mas existe um quinto nexo que pode ser encontrado entre esta ruptura da unidade do sujeito-objeto com o conceito por ele criado chamado de paralaxe cognitiva . A paralaxe cognitiva, um conceito criado pelo filósofo que pode ser definido como “o deslocamento entre o eixo da concepção teórica e o da perspectiva existencial concreta do pensador”[10] em que “as próprias condições existenciais nas quais a teoria brotou e se desenvolveu trazem o desmentido completo do conteúdo da teoria”[11], seria um sintoma de uma patologia espiritual que tem como causa o desdobramento da falha teórica em conceber a possibilidade de conhecimento por meio da separação do sujeito com o objeto, um conseqüência previsível da tendência de se separar o objeto observado de seu foco de observação.

2.3 – Olavo e a filosofia aristotélica

Todo este quadro característico da degradação do pensamento moderno, segundo a tese de Olavo de Carvalho, é especialmente pertinente com a sua interpretação, também original, do papel que o aristotelismo ocupou no desenvolvimento da filosofia grega. A relação entre a doença de espírito e a atitude intelectualmente irresponsável dos sofistas, fica evidente quando em sua apostila é ressaltada a inspiração médica que motivou as teorias de Aristóteles, que teria tomado como seu modelo orientador, o conceito de um organismo vivo, daí se chamar Organon a coleção que reúne seus trabalhos. A unidade de conjunto que permite o funcionamento saudável do organismo serve de referência a uma busca de unidade no conhecimento, e este ideal de unidade servirá por sua vez, de diagnóstico para a crescente incoerência da mentalidade social.

Mas um outro motivo justifica a leitura de Olavo de Carvalho, em seus estudos filosóficos, é a sua capacidade de realizar explicações engenhosas sobre vários aspectos implícitos ou obscuros do tema. Um exemplo disso pode ser lido aqui:

“Em Sócrates, a divisão entre o aspecto existencial e o conceptual era apenas técnica; era um artifício através do qual Sócrates tentava apreender um aspecto mais valioso da realidade, digno de ser investigado. Em Platão, esse aspecto separado por Sócrates é enfatizado como sendo ele mesmo a realidade, ao passo que o aspecto existencial, acidental e transitório é visto como uma espécie de tecido de aparências que nos oculta a verdadeira realidade. A passagem de Sócrates para Platão é bastante nítida; é uma diferença quase abissal. Uma coisa é dizer que vale mais a pena olhar a realidade por determinado aspecto por ser ele mais revelador; outra coisa é dizer que este aspecto é que é real e que o outro é, se não totalmente falso, pelo menos parcialmente ilusório.”

“Podemos resumir tudo dizendo que em Sócrates a divisão dos dois mundos ou aspectos tinha um sentido metodológico, ou gnoseológico, e em Platão passa a ter um alcance ontológico. Um preceito metodológico ensina como você deve investigar as coisas; um princípio ontológico estabelece como as coisas realmente são…
Muitas vezes, na história do pensamento e na história das ciências, aconteceu que preceitos metodológicos se transformaram em leis ontológicas.
”[12]

Que pensador é tão ousado a ponto de fazer uma descrição precisa do modo como a epistemologia aristotélica superou a platônica?

Perceba o leitor como este trecho abaixo demonstra uma capacidade de conceber um nexo entre tantos detalhes minuciosos, ao contrário de muitos autores que acreditam que o conhecimento deve ser expresso como uma coleção enciclopédica de dados incoerentes. Costurando idéias e personalidades que vão desde Platão, passando por um historiador da arte até Jung, existe uma tese única e singular que é diferente de todo tipo de concepção estereotipada que é comum em apostilas universitárias e artigos acadêmicos:

“A doutrina dos dois mundos é quase um tendência natural do espírito humano. Hoje vemos, dois mil e tantos anos depois de Platão, que certo platonismo já aparecia na arte do homem das cavernas. Isto foi destacado por um grande historiador da arte, chamado Wilhelm Worringer. Ele observou que o homem primitivo, longe de ser um cidadão perfeitamente integrado na natureza, sentindo-se perfeitamente bem ali, é, ao contrário, um ente aterrorizado pela natureza imensa que o cerca, cheia de imprevistos e ameaças incompreensíveis. Por isso mesmo, a arte dos povos primitivos, longe de ser uma arte naturalista, uma arte que retrate a natureza com toda a sua variedade de formas e cores e seres, é uma arte simplificadora, uma arte geométrica, que expressa um impulso abstrativo muito intenso. Worringer explica assim este estilo de arte: quando o mundo real nos parece demasiadamente complicado ou ameaçador, tendemos a nos refugiar num domínio intelectual puro, para podermos encontrar dentro dele os princípios de organização simplificadora, com os quais mais tarde voltaremos a tentar nos instalar no mundo externo. Como você não está entendendo o que se passa fora, recua para organizar os próprios pensamentos. Depois de os ter organizado, volta à ação exterior. Ora, uma arte de ornamentação puramente geométrica é o que se observa em praticamente todas as sociedades tribais; e uma arte naturalista, na qual o artista se deleita em copiar as formas da natureza, só aparece nas sociedades organizadas, na polis. O naturalismo, a curtição da natureza, são próprios do homem civilizado, e não do primitivo. Para este a natureza é um caos, porque ele não tem poder sobre ela.”

“A partir da hora em que consegue organizar o pensamento humano, e em consequência, a sociedade, coloca uma hierarquia, coloca todo mundo para trabalhar, monta as cidades, cria sistemas de produção e defesa, e afinal sente-se mais seguro e face desta natureza, então sim os aspectos terrificantes dela são atenuados e começam a aparecer os aspectos estéticos. A beleza da natureza só é visível depois que você está a uma boa distância dela.
Esta arte primitiva tem também um sentido religioso, ritual, de modo que as formas puramente geométricas expressam um realidade que, não sendo visível neste mundo, não estando na natureza, é no entanto superior a ele, e na qual o homem se sente protegido contra o caos exterior. Expressa um mundo de relações puramente espirituais, angélicas. São símbolos, signos mágicos ou religiosos. Podemos ver nestes fenômenos descritos por Worringer uma espécie de platonismo primitivo, e aí entenderíamos o platonismo não apenas a filosofia de um certo cidadão, mas como uma tendência constante do espírito humano, e que reaparece sempre que a situação fica caótica e o homem, não conseguindo entender o que se passa, procura em primeiro lugar reordenar o seu mundo interior. Por isto dizia Alain que Platão é o filósofo bom para os que estão em dificuldades interiores, ao passo que Aristóteles é para os cientistas e pesquisadores do mundo.

Num outro contexto completamente diferente, Carl-Gustav Jung, que não levo muito a sério como teórico mas cujas observações clínicas são primorosas, notou que sonhar com objetos geométricos acontece na hora em que a anima está dialogando com o superego (anima é a parte da psique que congrega desejos, aspirações de felicidade; superego é senso imanente de autoridade, legalidade interna), no sentido de obter autorização para fazer alguma coisa que ela deseja. Na hora e que se estabelece este diálogo que visa reordenar a relação entre as leis e os desejos, é que o sujeito começa a sonhar com figuras geométricas.”

“O geometrismo expressa um princípio de reorganização da mente. Por um motivo muito simples: o geométrico forma uma espécie de ponte entre o puramente matemático e o sensível. As matemáticas começam a se desenvolver primeiro pela geometria e só depois chegam à aritmética pura. No tempo de Platão, a geometria já estava bastante desenvolvida e a aritmética só começa a caminhar uns quatro séculos depois. É mais fácil raciocinar matematicamente com figuras geométricas do que com números abstratos. O geometrismo aparece como um diálogo, uma intermediação entre a parte sensível e a parte inteligível, ou como diria Jung, entre a anima e o superego.

O geometrismo é um recuo para uma reorganização interior, um rearranjo entre as exigências da alma humana e o senso de ordem, hierarquia lógica, realidade firme, etc. Visto assim, o platonismo não é a filosofia de Platão, mas um tendência que reaparece a todo momento, sempre que o homem sente a necessidade de refluir desde um situação exterior caótica até um princípio espiritual, interno, invisível ou transcendente de organização. E se é assim, sempre que houver uma situação de caos social, intelectual, moral, ressurgirá algum platonismo, ou seja, uma divisão do mundo em dois estratos, dando mais atenção ao estrato superior interno, representado em geral por figuras e relações de tipo geométrico.

Veremos isto às portas da Renascença, época de muito caos, de dissolução da unidade da civilização cristã, e onde indivíduos mais sensíveis, como Kepler, sentem a necessidade de restaurar a doutrina platônica sob as formas geométricas do cosmos. Segundo Kepler, haveria entre as distintas esferas planetárias as mesmas relações que existem na sequência dos sólidos geométricos platônicos. O desejo de encontrar na realidade externa um princípio geométrico é um desejo de ordenação.”[13]


2.4 – Olavo e a Teoria dos Quatro Discursos

No livro Simetria Perfeita do físico Heinz Pagels, é narrado a estória do William Herschel, o maior astrônomo do século XVIII, que teria começado a sua carreira como jovem músico tocador de oboé, uma tipo de flauta muito comum em orquestras. Num momento qualquer da narrativa, é destacado o modo como as experiências musicais de Herschel teriam lhe ajudado em seu novo interesse pela astronomia: “Ajudado pela irmã Caroline, e pelo irmão, Alexander, fabricou um óptimo telescópio de reflexão numa fundição que construiu em casa. Sem dúvida que a habilidade para os instrumentos musicais lhe foi muito útil na construção do instrumento de precisão. Com auxílio do telescópio, descobriu um novo planeta – Urano –, que, inicialmente julgou ser um cometa.”[14]. Em outra parte desta mesma narrativa pode ser encontrado o seguinte: “A paixão pela ciência e a paixão pela música eram movidas pelo mesmo desejo: dar realidade à beleza de uma imagem do mundo.”[15].

Isto é um exemplo de conexão entre duas atividades humanas que não são consideradas relacionadas uma com a outra, mas cujo nexo foi sugerido por se suspeitar que de alguma forma, existe uma relação entre ambas. Se este conceito não passava de uma trivialidade subjetiva, superficial, na Teoria dos Quatro Discursos ganha contornos filosóficos mais precisos, quando este estudo emerge sob forma de uma concepção aristotélica, que numa ótica inovadora, o velho legado do estagirita deixa de ser um coleção de trabalhos individuais para se constituir numa teoria unificada do conhecimento[16].

Mas a grande novidade, é que ao estabelecer vínculos entre as várias modalidades do pensamento humano – Poética, Retórica, Dialética e Analítica (lógica) –, é revelado um histórico do desenvolvimento da criatividade intelectual que permite um grau de compreensão da gênese do saber como jamais foi abordado por qualquer dos filósofos da ciência que atualmente são lidos e celebrados. Cada discurso serve de degrau para a concepção do discurso seguinte, este é o segredo. E a explicação deste segredo fornece o entendimento para um novo sentido de coerência que explica toda a trama: a estrutura da obtenção do conhecimento – a unidade aristotélica dos quatro discursos que é o modo natural de se conhecer –, se torna uma sabedoria perdida porque em algum momento na história do mundo, a mentalidade social passou a optar pela anulação da consciência, que com o tempo foi se expressando na evolução da idéias sob forma de ruptura do sujeito com o objeto, ruptura esta que é representada pelo formalismo lógico através da violação do princípio da identidade, que por sua vez está na raiz do sintoma da degradação progressiva da filosofia, cujo resultado final é a burrice humana transformada em ideologia.

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Notas:

[1] http://www.chesterton.org/gkc/philosopher/v1n6.gkcessay.hm

[2] KRAUSE, Décio –Introdução aos fundamentos axiomáticos da ciência. São Paulo: E.P.U. (Editora Pedagógica e Universitária), 2002, p. 3-4.

O livro pode ser baixado por este link:
http://heliopereiriano.4shared.com/file/11706146/8f84ec3d

[3] KRAUSE, Décio –Introdução aos fundamentos axiomáticos da ciência. São Paulo: E.P.U. (Editora Pedagógica e Universitária), 2002, p. 5.

[4] KRAUSE, Décio – Introdução aos fundamentos axiomáticos da ciência. São Paulo: E.P.U. (Editora Pedagógica e Universitária), 2002, p. 6-7.

[5] O texto integral pode ser encontrado no seguinte link: http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/identidade.htm

[6] Idem

[7] Idem

[8] Idem

[9] http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/sujobj.htm

[10] http://www.olavodecarvalho.org/semana/02152003globo.htm

[11] http://www.olavodecarvalho.org/semana/060424dc.html

[12] http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/pensaris3_1.htm

Propus uma explicação, por sua vez, sobre o porquê desta tendência “em que preceitos metodológicos se transformaram em leis ontológicas”: este equívoco é inspirado pelos procedimentos matemáticos, onde os preceitos metodológicos e juízos ontológicos acabam sendo uma coisa só. O conjunto total de passos para obter a solução de uma equação, e a solução desta mesma equação, freqüentemente são tratados como se fosse uma coisa única, uma indistinção que se justifica na maioria dos casos.

[13] http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/pensaris3_1.htm

[14] PAGEL, Heinz R. Simetria perfeita. Trad: Henrique Leitão e Paulo Ivo Teixeira, Gradiva. Lisboa,1985. pp. 25

[15] Idem.

[16] http://www.olavodecarvalho.org/livros/4discursos.htm