A esquerda inventada

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 5 de maio de 2009

Entre liberais e conservadores, no Brasil e no resto do mundo, só uns poucos têm uma noção clara de quem é seu inimigo e de como enfrentá-lo. A maioria luta apenas contra uma esquerda idealizada, um trompe l’oeil fabricado pela própria esquerda para ser consumido por seus adversários como uma droga estupefaciente, paralisante e incapacitante. O modelo do artifício é copiado de algo que já existiu historicamente: uma esquerda humanitária, democrática, anticomunista, só separada da direita pela diferente concepção dos meios, mais estatistas do que capitalistas, a ser usados para realizar valores que no fundo eram os mesmos de parte a parte – liberdade, direitos humanos e uma vida decente para todos.

Embora vagamente herdeira do reformismo de Eduard Bernstein e de Karl Kautsky – o “renegado”, como o chamava Lênin –, essa esquerda só se tornou um ator de destaque na mídia ocidental por ocasião da Guerra Civil Espanhola, quando a violência assassina desencadeada pelo comando estalinista contra seus próprios companheiros de trincheira agiu como um toque de alerta sobre muitos esquerdistas, levando-os a compreender que o comunismo era pelo menos tão destrutivo quanto o nazismo. O pacto Ribbentropp-Molotov de agosto de 1939 completou a decepção. Alguns mudaram de lado completamente, tornando-se conservadores. Outros, renegando toda fidelidade ao governo soviético, embora não à idéia socialista, acabaram se integrando nos partidos trabalhistas e socialdemocratas e tornando-se bons aliados dos conservadores na luta contra o comunismo, continuando a combatê-los no plano das políticas sociais. George Orwell e o filósofo Sidney Hook são exemplos famosos. O primeiro tornou-se mesmo, com os livros Animal Farm e 1984, um dos grandes criadores da linguagem anticomunista, calculada para parodiar e implodir o jargão comunista. O segundo foi o principal organizador do Congresso pela Liberdade da Cultura, o único empreendimento sério já tentado – em 1949-50, com a ajuda da CIA – para reunir intelectuais anticomunistas e opor alguma resistência à avassaladora ofensiva cultural soviética iniciada trinta anos antes.

Não é preciso dizer o quanto a existência de uma prestigiosa esquerda anticomunista incomodava o establishment soviético. A política de “coexistência pacífica” inaugurada por Nikita Kruschev teve como uma de suas principais finalidades reintegrar na estratégia comunista o exército de desgarrados. O sucesso da operação foi completo. Já nos anos 70, conforme o escritor Vladimir Bukovski viria a descobrir nos Arquivos de Moscou, praticamente toda a mídia socialdemocrata da Europa era subsidiada e controlada pela KGB (v. Jugement à Moscou. Un Dissident dans les Archives du Kremlin, Paris, Robert Laffont, 1995). Nos EUA, infiltrado e dominado por agentes camuflados ou declarados da esquerda revolucionária, o Partido Democrata, que até a década de 60 funcionara como o abrigo ideal dos esquerdistas anti-soviéticos, foi indo cada vez mais para a esquerda, até assumir a bandeira do anti-americanismo mais radical e intolerante. A bibliografia que documenta essa transformação é abundante, não havendo desculpa decente para os autoproclamados especialistas em política internacional ignorarem o fenômeno, como os nossos o ignoram em massa. Vejam, por exemplo, David Horowitz and Richard Poe, The Shadow Party, How George Soros, Hillary Clinton and the Sixties Radicals Seized Control of the Democratic Party, Nashville, TN, Nelson Current, 2006; James Piereson, Camelot and the Cultural Revolution: How the Assassination of John F. Kennedy Shattered American Liberalism, New York, Encounter Books, 2007; Phil Kent, Foundations of Betrayal. How the Liberal Super-Rich Undermine America, Johnson City, TN, Zoe Publications, 2007.

A transfiguração da esquerda moderada americana em agente da esquerda radical culmina na presidência Obama, que protege ostensivamente organizações terroristas e criminaliza qualquer resistência conservadora, ao mesmo tempo que continua a ostentar os sinais convencionais do progressismo democrático (v. http://truth11.wordpress.com/2009/04/22/former-presidential-candidate-alan-keyes-has-given-perhaps-his-most-dire-warning-yet-saying-that-the-obama-administration-is-preparing-to-stage-terror-attacks-declare-martial-law-and-cancel-the-2012/, http://www.onenewsnow.com/Politics/Default.aspx?id=494798, http://www.onenewsnow.com/Politics/Default.aspx?id=490720 e http://www.worldnetdaily.com/index.php?pageId=).

Na América Latina, a encarnação mesma da “esquerda moderada”, o Partido dos Trabalhadores, é discretamente o coordenador do Foro de São Paulo, isto é, o estrategista máximo da violência revolucionária no continente.

Em suma, a esquerda democrática, civilizada, concorrente leal dos conservadores, já não existe mais como força política independente. Financiando e acobertando movimentos terroristas e subversivos por toda parte, e impondo sob outros nomes as mesmas políticas que seriam rejeitadas pela população se apresentadas com o rótulo de comunistas, a “esquerda moderada” é um inimigo ainda mais perigoso dos conservadores do que poderiam sê-lo os próprios comunistas de carteirinha, os quais sem ela não teriam poder nenhum.

A diferença entre as duas esquerdas é que uma quer alternar-se no poder com os conservadores, segundo o rodízio democrático normal, enquanto a outra não se contenta em vencer esses adversários nas eleições, mas busca destrui-los completamente, marginalizá-los, criminalizá-los, expeli-los para sempre não só da política mas da vida social, quando não da existência física. Outra diferença é que a segunda é a única que existe na realidade; a outra, só na imaginação residual da direita.

Se a esquerda ainda se prevalece da bela imagem de moderação democrática criada nos campos de batalha da Espanha, é somente para ludibriar seus inimigos. Mas que estes continuem acreditando na existência dela, e imaginem combater adversários leais quando na verdade se defrontam com revolucionários e assassinos, é algo que decorre de uma imperdoável covardia intelectual e moral, suicida como todas as covardias.

Inventando certezas: Brasil-Mentira V

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de abril de 2009

No mesmo Observatório, Luciano Martins Costa pontifica: “Ditaduras são ditaduras… Fazer a conta da ditadura pelo número de mortos nas masmorras oficiais é vilipendiar a história. É coisa de alienados.” Contestando as comparações usuais que contrastam as trezentas e poucas vítimas da polícia política brasileira com as cem mil da ditadura cubana, o Sr. Costa lança à conta do nosso regime militar dois delitos extras que, segundo ele, deveriam entrar no cálculo. De um lado, “a corrupção que se consolidou durante os vinte e poucos anos da ditadura militar”. De outro, “a violência policial não diretamente política” porque, diz ele, “a polícia brasileira, em todos os estados, foi transformada durante a ditadura militar num perverso e incontrolável instrumento de controle social, que foi treinado para ‘identificar’ e punir preventivamente os supostos objetores do regime e acabou produzindo uma lógica toda especial segundo a qual todo jovem de pele relativamente escura é um inimigo potencial da ordem pública”.

Textos como esse ou os dois de Alberto Dines já citados são até difíceis de analisar, tal a mixórdia psicótica de erros, confusões e impropriedades lógicas que neles se compacta. Normalmente serviriam apenas de amostras de como o fanatismo enlouquece. O significativo é que nenhum de seus autores é conhecido publicamente como um fanático. Ambos passam como profissionais equilibrados, idôneos, capacitados a julgar a qualidade do jornalismo alheio. E é justamente isso a prova de que não se trata de distúrbios pessoais, mas de um mal endêmico nas classes falantes do Brasil: a absoluta incapacidade ou recusa de julgar as coisas com um mínimo de equanimidade, o radicalismo cego de um parti pris que ao inflamar-se masturbatoriamente e apelar aos subterfúgios mais unilaterais e artificiosos, acredita piamente, tranquilamente, fazer justiça.

O Sr. Costa, indignado de que a truculência das ditaduras só se calcule pela violência política direta, pergunta: “Quem estabeleceu os critérios desse ranking? O departamento de infográficos da Folha?” Ele não pergunta se quem estabeleceu a diferença entre a proporção de negros e mulatos mortos antes e durante a ditadura foi o seu próprio departamento de infográficos mentais. Nenhuma pesquisa histórica ou estatística prova que antes de 1964 a polícia, composta ela própria de maciços contingentes de negros e mulatos, fosse mais bondosa para com os chamados afrodescendentes. Louco de ódio, ele inventa sem a mais mínima prova um racismo crescente, e julga baseado nisso.

Quanto à alegada corrupção da ditadura, é falso, em primeiro lugar, que ela não fosse denunciada na época. Na mesma medida em que reprimiam certo tipo de notícias políticas, os militares aceitavam e apreciavam denúncias de corrupção, que os ajudavam, segundo eles, a manter sob controle uma classe política viciada. Eu mesmo trabalhava num dos jornais mais visados pela censura – o Jornal da Tarde – e posso garantir que, se várias matérias minhas viraram receitas de bolo, o mesmo não aconteceu com nenhuma acusação feita a políticos corruptos. Que os próprios militares no alto comando da nação fossem ladrões, é algo de que o Sr. Costa não cita nem poderia citar um único exemplo, visto que nenhum desses homens, na presidência ou em ministérios, prosperou tanto quanto o Sr. Lula ou o Sr. José Dirceu, nem muito menos – para dar um exemplo característico do regime deposto em 1964 – tanto quanto o Sr. Tião Maia, o amigo do presidente Goulart, que saiu do Brasil com dinheiro suficiente para comprar a vigésima parte do território australiano e, interrogado sobre como conseguiu isso, respondeu singelamente: “O Banco do Brasil foi uma mãe para mim”.

Houve sim, casos de corrupção no governo militar. Nenhum deles maior que o das “polonetas”, o empréstimo ilícito feito ao governo comunista da Polônia pelos esquerdistas que então infestavam o Ministério de Relações Exteriores de Geisel, contra os quais nem o Sr. Costa nem qualquer de seus congêneres diz a mais mínima palavra. E, entre os feitos de violência do regime, nenhum se compara à ajuda fornecida pelo mesmo governo Geisel para a ditadura cubana invadir Angola e aí matar, em poucos meses, pelo menos quinze mil pessoas. Também disso o Sr. Costa não diz nada.

Não há sinal de que, na ditadura Vargas, a violência social da polícia fosse menor do que se tornou depois ou de que fosse menos racialmente orientada. Simplesmente não é possível estudar o fator racial na conduta da polícia sem estudá-lo simultaneamente no próprio fenômeno da criminalidade. Até hoje ninguém provou que o número de “afrodescendentes” oprimidos ou assassinados pela polícia seja maior, proporcionalmente, do que o número deles no contingente de criminosos ou, mais ainda, na própria composição racial das tropas policiais. Sem essa prova, falar em racismo policial é calúnia pura e simples. Abolir metade do fenômeno para usar a outra metade como prova de racismo e, sem o mais mínimo fundamento comparativo, proclamar que esse racismo aumentou durante a ditadura militar (como se a própria noção de “aumentar” não fosse comparativa) é simplesmente expelir ódio por meio de mentiras.

Mas o Sr. Costa, repito, não tem fama de fanático odiento. Se tivesse, estaria tudo normal. Ninguém diz que o Sr. Costa é um agitador de extrema-esquerda. Ao contrário, a linguagem dos agitadores de extrema-esquerda tornou-se normativa, obrigatória e mainstream na mídia brasileira e nas classes falantes em geral – de tal modo que basta você resmungar um pouquinho contra ela e você é que é instantaneamente apontado como um perigoso extremista de direita, sem precisar para isso ter advogado jamais qualquer medida extrema contra quem quer que fosse.

Mais ainda, o Sr. Costa, na mesma medida em que abomina comparações e as faz no mesmo instante, ressaltando unilateralmente o horror da ditadura brasileira para fazê-la parecer ainda pior do que a argentina ou a cubana, nos sonega, novamente, um dos termos da comparação. Quantos entre os prisioneiros políticos de Cuba eram e são negros e mulatos? Quantos no Brasil? Quantos o eram entre os 17 mil fuzilados do regime cubano? Quantos entre os trezentos terroristas mortos pela nossa ditadura? Condenar comparações e em seguida fazê-las da maneira mais parcial, sectária e deformada é coisa de uma vigarice tão flagrante que em outras épocas qualquer esquerdista normal se recusaria a uma trapaça desse calibre. Mas o Sr. Costa não é um esquerdista normal. Ele é um esquerdista do ano 2009 no Brasil. E isso é muito diferente de sê-lo em qualquer outra parte do mundo e em qualquer outra época. No mínimo, essa condição basta para apagar, na mente do sujeito, esta obviedade gritante: se não é lícito dizer que uma ditadura foi pior que outra, também não pode sê-lo dizer que ela foi pior que ela mesma.