Respostas infalíveis

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de agosto de 2010

Em 2002, tivemos uma disputa presidencial entre quatro candidatos que em uníssono alardeavam a condição de esquerdistas como o seu mais elevado título de glória. Tão perfeita homogeneidade ideológica, que nem mesmo os militares tinham ousado impor ao cenário político nacional, só se vira, antes, nas eleições soviéticas ou chinesas, mas a “grande mídia” inteira fez questão de abafar a estranheza do fenômeno e, com aquela mistura de cinismo e estupidez genuína que tão bem a caracteriza, celebrou o pleito como uma apoteose da democracia.

Em 2006, o candidato tido como de direita por seu adversário rejeitava esse rótulo e, provando-se bom menino, evitava qualquer demonstração de anti-esquerdismo, por tímida que fosse. O simples fato de que ele tampouco se declarasse esquerdista foi aceito universalmente como prova cabal de “pluralismo”. Quod erat demonstrandum.

Finalmente, em 2010, chegamos ao ponto em que todas as precauções retóricas já se revelam desnecessárias: o próprio presidente da República sente-se à vontade para proclamar a completa ausência de direitistas entre os candidatos à sucessão como sinal de perfeição democrática. A democracia, segundo S. Excia. e a unanimidade das mentes iluminadas que nos guiam, consiste portanto numa assembléia de esquerdistas que se xingam uns aos outros de direitistas. That’s all. Que mais se poderia desejar? Toda aspiração diversa é extremismo, saudades da ditadura, racismo, fanatismo genocida ou, como na velha União Soviética, sintoma de desequilíbrio mental. Um momento. Eu disse “aspiração”? Não é preciso nem isso. Basta que você, sem nenhuma divergência ideológica, se sinta um pouco incomodado com a aliança PT-Farc, e todo o repertório dos insultos autoprobantes será despejado sobre a sua cabeça, sem que lhe reste, diante de tão irrespondíveis argumentos, senão o último recurso dos bate-bocas infantis: macaquear a ofensa, chamar o acusador de direitista.

Se a administração estatal logrou controlar a economia ao ponto de emitir notas fiscais antes que algum comerciante tenha a ousadia de fazê-lo, o aparato político-ideológico da esquerda conseguiu dominar tão bem o universo mental da nacionalidade que já ninguém, dentro do território pátrio, pode desviar-se um só milímetro da semântica oficial, ou ao menos não pode fazê-lo sem o sentimento constrangedor de ter cometido uma gafe imperdoável, talvez um crime hediondo.

Para maior felicidade geral, o fato de que esse estado de coisas coincida, no tempo, com a prosperidade dos grandes grupos econômicos que têm negócios com o governo é festejado como prova de sucesso do capitalismo nacional, embora, na ciência econômica e no são entendimento humano, ele defina precisamente o socialismo. Mas os brasileiros já se habituaram tão confortavelmente a chamar as coisas pelos nomes inversos que já nem reparam nesse detalhe. Por exemplo: decorridos vinte anos da fundação do Foro de São Paulo, o fato de que esse monstrengo domine uma dúzia de países e ocupe a presidência da OEA é evidência irrefutável de que ele é apenas um bando de velhinhos saudosistas, sem força ou periculosidade que mereçam atenção. Experimente lançar dúvida sobre essa certeza augusta num encontro de empresários, e agüente, se puder, os olhares de desprezo.

Nada, nenhuma demonstração lógica, evidência factual ou desgraça espetacular – nem mesmo a tragédia rotineira dos cinqüenta mil brasileiros assassinados por ano – parece capaz de despertar as nossas classes rechonchudas do seu otimismo beócio, sustentado nos quatro pilares da ortodoxia elegante, quatro fórmulas infalíveis que a tudo respondem como se tivessem saído fresquinhas da oficina literária de Bouvard e Pécuchet:

1. “Lula mudou.”

2. “O comunismo acabou.”

3. “Direita e esquerda não existem.”

4. “Você quer voltar aos tempos da Guerra Fria.”

Quem, diante de tamanha sapiência, ousaria discutir?

Índio pode virar o jogo

Índio pode virar o jogo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 5 de agosto de 2010

Se o PT insistir nessa fanfarronada de processar o candidato vice-presidencial Índio da Costa, o acusado poderá sem a mínima dificuldade virar o jogo, imputando ao acusador a prática manifesta, patente, claríssima, de litigância de má-fé. Na mesma semana em que trombeteava aos quatro ventos a ameaça de processo, o partido do sr. Presidente da República fez publicar em seu site oficial o rascunho do Documento-Base do XVI Encontro do Foro de São Paulo (a realizar-se em Buenos Aires de 10 a 20 de agosto), onde, entre lágrimas de crocodilo jorrando em catadupas, clamava contra “a cruenta agressão armada de tropas colombianas, respaldadas pela tecnologia e pelos serviços de inteligência dos EUA, em território ecuatoriano, em Sucumbios, no dia 1º de março de 2008”. Ou seja: no instante mesmo em que acusava de calúnia quem mencionara sua ligação com os narcoguerrilheiros colombianos, o PT se irmanava com eles para protestar contra a liquidação do chefe da quadrilha, o célebre Raul Reyes, tão íntimo da liderança petista. Negar ligações, depois disso, é explicar uma mancha de batom na cuéca como obra de arte comprada na Sotheby’s.

O protesto não só vem naquela linguagem entre melosa e truculenta que se tornou clássica da oratória comunista, mas é típico também pela inversão de sujeito e objeto, uma das regras fundamentais da lógica revolucionária. Agressão, segundo o documento, não é abrigar em território equatoriano os terroristas que dali partiam, em segurança, para atacar a Colômbia. Agressão é tirá-los de lá à força para revelar ao mundo o crime praticado por eles em conluio com o governo do Equador.
Leia o documento do PT em http://www.pt.org.br/portalpt/dados/ bancoimg/100728161714borradorversion3paradeliberaciondelGT.doc e diga se é possível duas ou mais organizações, legais ou ilegais, conceberem uma proposta dessas sem ter ligação nenhuma, nem projeto em comum, nem estratégia conjunta.

***

Em artigo valiosíssimo publicado dias atrás, o prof. Denis Rosenfield desmascara o cacoete mental, de amplo uso nas altas esferas federais e na mídia, que apresenta as Farc como um grupo de idealistas revolucionários tardiamente “degenerado” em quadrilha de narcotraficantes. Não existe, diz ele, essa antinomia. Bem ao contrário, revolução e narcotráfico são irmãos siameses, unidos desde sempre e para sempre. Ele cita a “guerra do ópio” empreendida por Mao Dzedong contra várias províncias chinesas. Esse exemplo fala por si: foi o primeiro caso registrado na História em que um poder político organizado viciou deliberadamente a população do seu próprio país, para enfraquecê-la, explorá-la e dominá-la.

Mas há um exemplo mais próximo de nós. Não sei se o prof. Rosenfield o conhece, mas tem aí uma comprovação da sua tese em grau superlativo. O grande narcotráfico latino-americano não surgiu como puro negócio ilícito, só mais tarde articulado com a luta revolucionária. Até os anos 50, o comércio de drogas no continente era um problema policial controlável. Não cresceu espontaneamente. Quem lhe deu a estrutura organizacional que haveria de transformá-lo num monstro capaz de atemorizar Estados e exércitos foi o governo soviético, através de “medidas ativas” do seu serviço de inteligência. A operação, lenta e sorrateira – até hoje ignorada pela “grande mídia” –, teve dois objetivos: usar as drogas como arma de guerra psicológica, para enfraquecer as nações capitalistas, e criar ao mesmo tempo uma fonte local de dinheiro para os movimentos revolucionários latino-americanos, cujo financiamento estava saindo caro demais para os soviéticos. Os meios utilizados para isso foram bem simples: de um lado, infiltrar agentes nas várias quadrilhas de narcotraficantes, para que as controlassem; de outro, enviar à URSS os traficantes já cooptados e leais, para que aprendessem técnicas avançadas de organização, inteligência, guerrilha urbana etc. A operação foi descrita em detalhes por um de seus próprios mentores e comandantes, o general tcheco Jan Sejna, em depoimento ao escritor inglês Joseph D. Douglass, que a publicou no livro Red Cocaine: Drugging the Americas and the West (London, Edward Harle, 1999).

Ante o desenrolar subseqüente dos acontecimentos, é impossível negar que as duas metas visadas pelos soviéticos foram atingidas. Sem as drogas, jamais teria sido possível corromper a juventude universitária dos EUA ao ponto de fazer dela o principal instrumento de boicote ao esforço de guerra no Vietnã e, desde então, a toda iniciativa anticomunista do governo americano. Sem as drogas, teria sido impossível transformar as frustradas guerrilhas latino-americanas dos anos 60 na tremenda força político-militar-criminal que hoje, sob a proteção do Foro de São Paulo, espalha o terror no continente.

Só quem nada estudou da mentalidade revolucionária pode imaginar que, nela, haja alguma contradição entre ideais pomposos e crimes hediondos. Foi a fusão indissolúvel desses dois elementos que a criou e que hoje, como sempre, a define.

O livro de Joseph D. Douglass é leitura indispensável a quem deseje sinceramente compreender o que está se passando na América Latina.

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No filme A Batalha da Inglaterra, um capitão do serviço de informações está com os nervos em frangalhos de tanto ver suas análises acertadíssimas serem sistematicamente rejeitadas pelos oficiais superiores, mesmo com risco para o país. Então ele vai chorar as mágoas a um coronel mais compreensivo e o coronel lhe explica:

— O problema é que achamos você mais inteligente que nós e isso nos deixa inseguros.

Depois de ter cometido tantas vezes o pecado de acertar quando todo mundo em volta errava, começo a desconfiar que o problema do capitão é o mesmo que eu, menos inteligente que ele, tenho com os líderes empresariais, políticos e militares deste país: quando me ouvem eles se sentem burros. Só que, em vez de entender que isso é um sinal de que não são tão burros assim, preferem tapar os ouvidos, tornando-se então, por decisão própria, tão burros quanto se imaginaram.

Rabo à mostra

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 3 de agosto de 2010

Que o PT não tenha nenhuma ligação com as Farc é uma alegação que não se pode aceitar nem a título de hipótese. Mesmo sem levar em conta as atas completas do Foro de São Paulo, nem os favores obscenos do governo Lula ao representante farqueano Olivério Medina, nem a completa omissão governamental ante as provas de atividade criminosa das Farc no nosso território, nem a revelação dos serviços de leva-e-traz oferecidos pelo sr. Marco Aurélio Garcia entre a narcoguerrilha colombiana e o então ministro Luiz Felipe Lampreia, até uma criança de cinco anos é capaz de compreender os seguintes fatos e juntar os pontos:

1. O Foro de São Paulo é a coordenação estratégica do movimento comunista na América Latina.

2. O sr. Luís Ignácio Lula da Silva e o líder das Farc, Raul Reyes, já presidiram juntos uma assembléia do Foro, e juntos participaram de todas as outras.

3. É impossível conceber que os dois coordenadores máximos de uma estratégia comum não tenham nenhuma ligação, nenhuma comunidade de interesses, nenhuma atividade conjunta.

Quem fez a afirmação número 1 foi o próprio PT, no vídeo preparatório do seu III Congresso. A número 2 veio da boca do próprio Raul Reyes em 2003, em entrevista à Folha de S. Paulo, e nenhum representante do PT jamais a desmentiu desde então. A número 3 é uma exigência incontornável da inteligência humana. Negá-la é fazer-se de besta. Ou ser besta sem precisar fazer-se tal.

E não venham dizer que tudo isso é coisa de antigamente, que uma vez na presidência o PT cortou todos os laços com as Farc. Só para dar um exemplo, um modesto exemplo de como as coisas não são assim: em plena gestão Lula o seu assessor de imprensa, Gilberto Carvalho, continuou dirigindo, de parceria com o chefe militar das Farc, Manuel Marulanda Vélez (“Comandante Tirofijo”), a revista de propaganda comunista “América Libre”. Como poderiam fazê-lo sem ter ligação nenhuma é algo que só se alcança conceber, se é que se alcança, em estado alterado de consciência.

A propalada ausência de ligações não é algo que mereça discussão, nem mesmo atenção. É uma desconversa insultuosa, inadmissível, que falta ao mais elementar respeito para com o ouvinte, o eleitorado em geral, a nação inteira, as leis e a moralidade. A simples tentativa de impingir ao público uma mentira tão grosseira, tão boba, tão pueril, já é mostra daquele cinismo ilimitado que caracteriza a mentalidade sociopática, incapaz de medir, seja a feiúra dos seus atos, seja a inverossimilhança das palavras que os encobrem.

Quem quer que venha com esse tipo de subterfúgio só prova duas coisas. Primeira: que tem muito a esconder. Segunda: que ao tentar esconder-se está deixando o rabo à mostra.

O Brasil, como vários outros países da América Latina, é governado por bandidos perigosos, frios, calculistas, organizados, firmemente decididos a sujar-se até à medula, a cometer as mais inconcebíveis baixezas para manter e ampliar ilimitadamente o seu poder. Felizmente, não são tão espertos quanto se imaginam. Retorcendo-se em dores para fingir um sorriso de tranqüilidade superior, só o que conseguem produzir é um sorriso amarelo. Desmentem-se, atrapalham-se, gaguejam e, no fim das contas, dão a cara a tapa. Só não levam o tapa porque neste país não há mais homem que o desfira. Nunca um crime esteve tão patente à vista de todos, nunca tantos desviaram o olhar para não ter de enxergá-lo.

Com aquela ligação esses bandidos estão fazendo o mesmo que fizeram com o Foro de São Paulo inteiro: primeiro negarão peremptoriamente a sua existência; depois buscarão dar-lhe aparência de coisa mínima, inofensiva, sem peso nem substância; por fim, quando sentirem que o perigo do escândalo já passou, começarão a trombeteá-la aos quatro ventos como façanha gloriosa, merecedora da gratidão da espécie humana.

Contarão, para isso, com a colaboração servil da mídia inteira e de praticamente todas as lideranças políticas, empresariais, religiosas, culturais, judiciais e militares deste país. Aqueles que, dessa massa de escravos e sicofantas, se levantarem por um minuto para esboçar um vago muxoxo, para encenar um débil lamento entre prudentes pedidos de desculpas e depois voltar ao confortável silêncio de sempre, serão celebrados como heróis, porque a alma popular se aviltou tanto que já não consegue conceber o heroísmo senão como paródia, como chanchada, como jogo de cena.