Quem manda nesta coisa

Quem manda nesta coisa

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de setembro de 2010

As denúncias que hoje circulam contra o PT, e que tanto enfurecem o sr. Presidente da República, não se comparam, em número e virulência, àquelas que o próprio PT espalhou na mídia e alardeou no Parlamento ao longo de vinte anos, destruindo ou subjugando todas as lideranças políticas que pudessem se opor aos seus intentos. Se hoje um Collor, um Sarney, um Maluf e inumeráveis líderes empresariais beijam a mão do presidente da República (como até o valentão Antônio Carlos Magalhães chegou a beijá-la pouco antes de morrer), é porque o partido dele lhes mostrou quem é o chefe, quem é que manda nesta coisa. E o mostrou a gritos e cusparadas, à força de acusações escabrosas, ameaças terrificantes e escândalos fabricados, tão numerosos e persistentes que os anos 90 ficariam marcados para sempre como a década da bandalheira se depois deles não viessem o Mensalão, os dólares na cuéca, os assassinatos dos prefeitos de Campinas e Santo André, etc. etc., reduzindo toda a corrupção anterior à escala de um roubo de chicletes numa cantina de escola.

Ao queixar-se da mídia, o sr. Presidente se esquece de que foi ela a sua principal aliada não só na destruição maciça de reputações perigosas, mas na construção, simultânea e complementar, da imagem do PT como paladino da justiça, sem o que jamais esse partido poderia ter chegado ao poder em 2002 nas asas da “Campanha pela Ética na Política”, uma apoteose de denuncismo e moralismo hipócrita como raramente se viu no mundo.

Sem a transformação da mídia inteira em instrumento da indústria petista do escândalo, o sr. Presidente não teria chegado a ser o sr. Presidente: teria continuado a ser o derrotado que sempre fôra até o momento em que seu partido, superando a velha repugnância da esquerda pela tradição udenista de combate à corrupção, descobriu o poder criador da difamação e da calúnia.

Longe de tratar o sr. Presidente a chicotadas, como ele se queixa de ter sofrido, a mídia, que o criou, sempre procurou poupá-lo e afagá-lo. Vocês já se esqueceram do petismo desbragado da Globo, a mais poderosa rede de TV do país, onde até uns poucos anos atrás não se podia falar do “presidente operário” sem voz embargada e lágrimas mal contidas de comoção cívica?

Naquela época, o sr. Lula não falava de “mídia golpista” nem se queixava de que “oito famílias” monopolizavam a imprensa deste país. Ele deixava isso para os “radicais”, para os jovens enragés que rosnavam no fundo do porão da esquerda, enquanto ele, apadrinhado e beneficiário número um do monopólio, brilhava no palco com sua nova identidade tranqüilizante de “Lulinha Paz e Amor”, pronto a imitar mais tarde o discurso dos enfezados, quando o fim do seu segundo mandato lhe trouxesse a certeza de não precisar mais da ajuda de seus protetores de ontem.

Em setembro de 2004 escrevi: “No tempo de Collor, a conversa vagamente suspeita entreouvida por um motorista indiscreto desencadeou a mais vasta investigação que já se fez contra um presidente. Hoje em dia, seis testemunhas mortas no caso Celso Daniel não abalam em nada a reputação de governantes ungidos pelo dom da inatacabilidade intrínseca.”

Referindo-me às CPIs de 1993, quando os srs. Dirceu e Mercadante berravam acusações do alto das tribunas como se fossem reencarnações de Marat e Robespierre, prosseguia: “É impossível não perceber, hoje, que tudo isso foi apenas um pretexto para aplanar a estrada para o PT, colocá-lo no poder e nunca mais fazer perguntas, aceitando dos novos patrões, com docilidade incuriosa e muda, condutas muito mais suspeitas e extravagantes que as de todos os seus antecessores.”

Assim foi em todos os escândalos do governo Lula. Por mais que se revelassem os crimes dos aliados e colaboradores mais próximos do sr. Presidente, o cuidado obsessivo da mídia era um só: preservar a pessoa dele, aceitar como cláusula pétrea do jornalismo nacional a hipótese louca de que ele nunca, nunca sabia de nada.

É esse o homem que hoje, diante de acusações mais que justas – e dirigidas nem mesmo a ele, mas à sua candidata –, choraminga, num show abjeto de autopiedade histérica, que levou mais chibatadas que Jesus Cristo e, ao mesmo tempo que clama pelo controle estatal da mídia, diz que o exercício do mero direito de cobrar explicações do seu seu partido é “uma ameaça à liberdade de imprensa”.

Vejam a enxurrada de livros investigativos que espalharam acusações temíveis contra Fernando Collor, contra os militares, contra o Congresso, contra as empreiteiras, e comparem-na ao destino do livro que ousou provar a responsabilidade do sr. Presidente no caso do Mensalão: “O Chefe”, de Ivo Patarra, não encontrou um só editor com coragem para publicá-lo. Circula pela internet, como um sussurro proibido.

Liberto de adversários substantivos e elevado ao posto supremo da nação pelos bons serviços da mídia, esse homem se acostumou de tal modo à subserviência da classe jornalística que já não suporta da parte dela a menor desobediência, o menor deslize. E de nada adianta apelar à “opinião pública”. Ele, e só ele, é a opinião pública.

Mas, afinal, quem criou as condições para isso foi a própria mídia. Invertendo o senso moral normal, que desprezava os medalhões de cabeça oca e louvava os pobres estudiosos, ela convenceu o país inteiro de que a coisa mais linda, mais louvável, mais meritória, é subir na vida permanecendo analfabeto. Se você cria um monstrengo desses, não tem muito direito de reclamar quando ele, inflado dos aplausos imerecidos com que você mesmo o alimentou, manda você calar a boca e proclama que quem manda é ele.

Maquiadores do crime

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 20 de setembro de 2010

Lenin dizia que, quando você tirou do adversário a vontade de lutar, já venceu a briga. Mas, nas modernas condições de “guerra assimétrica”, controlar a opinião pública tornou-se mais decisivo do que alcançar vitórias no campo militar. A regra leninista converte-se portanto automaticamente na técnica da “espiral do silêncio”: agora trata-se de extinguir, na alma do inimigo, não só sua disposição guerreira, mas até sua vontade de argumentar em defesa própria, seu mero impulso de dizer umas tímidas palavrinhas contra o agressor.

O modo de alcançar esse objetivo é trabalhoso e caro, mas simples em essência: trata-se de atacar a honra do infeliz desde tantos lados, por tantos meios de comunicação diversos e com tamanha variedade de alegações contraditórias, com freqüência propositadamente absurdas e farsescas, de tal modo que ele, sentindo a inviabilidade de um debate limpo, acabe preferindo recolher-se ao silêncio. Nesse momento ele se torna politicamente defunto. O mal venceu mais uma batalha.

A técnica foi experimentada pela primeira vez no século XVIII. Foi tão pesada a carga de invencionices, chacotas, lendas urbanas e arremedos de pesquisa histórico-filológica que se jogou sobre a Igreja Católica, que os padres e teólogos acabaram achando que não valia a pena defender uma instituição venerável contra alegações tão baixas e maliciosas. Resultado: perderam a briga. O contraste entre a virulência, a baixeza, a ubiqüidade da propaganda anticatólica e a míngua, a timidez dos discursos de defesa ou contra-ataque, marcou a imagem da época, até hoje, com a fisionomia triunfante dos iluministas e revolucionários. Pior ainda: recobriu-os com a aura de uma superioridade intelectual que, no fim das contas, não possuíam de maneira alguma. A Igreja continuou ensinando, curando as almas, amparando os pobres, socorrendo os doentes, produzindo santos e mártires, mas foi como se nada disso tivesse acontecido. Para vocês fazerem uma idéia do poder entorpecente da “espiral do silêncio”, basta notar que, durante aquele período, uma só organização católica, a Companhia de Jesus, fez mais contribuições à ciência do que todos os seus detratores materialistas somados, mas foram estes que entraram para a História – e lá estão até hoje – como paladinos da razão científica em luta contra o obscurantismo. (Se esta minha afirmação lhe parece estranha e – como se diz no Brasil – “polêmica”, é porque você continua acreditando em professores semi-analfabetos e jornalistas semi-alfabetizados. Em vez disso, deveria tirar a dúvida lendo John W. O’Malley, org., The Jesuits: Cultures, Sciences, and The Arts, 1540-1773, 2 vols., University of Toronto Press, 1999, e Mordecai Feingold, org., Jesuit Science and the Republic of Letters, MIT Press, 2003).

Foi só quase um século depois desses acontecimentos que Alexis de Tocqueville descobriu por que a Igreja perdera uma guerra que tinha tudo para vencer. Deve-se a ele a primeira formulação da teoria da “espiral do silêncio”, que, em extensa pesquisa sobre o comportamento da opinião pública na Alemanha, Elizabeth Noëlle-Neumann veio a confirmar integralmente em The Spiral of Silence: Public Opinion, Our Social Skin(2ª. ed., The University of Chicago Press, 1993). Calar-se ante o atacante desonesto é uma atitude tão suicida quanto tentar rebater suas acusações em termos “elevados”, conferindo-lhe uma dignidade que ele não tem. As duas coisas jogam você direto na voragem da “espiral do silêncio”. A Igreja do século XVIII cometeu esses dois erros, como a Igreja de hoje os está cometendo de novo.

A sujidade, a vileza mesma de certos ataques são plenejadas para constranger a vítima, instilando nela a repulsa de se envolver em discussões que lhe soam degradantes e forçando-a assim, seja ao silêncio, seja a uma ostentação de fria polidez superior que não tem como não parecer mera camuflagem improvisada de uma dor insuportável e, portanto, uma confissão de derrota. Você não pode parar um assalto recusando-se a encostar um dedo na pessoa do assaltante ou demonstrando-lhe, educadamente, que o Código Penal proíbe o que ele está fazendo.

As lições de Tocqueville e Noëlle-Newman não são úteis só para a Igreja Católica. Junto com ela, as comunidades mais difamadas do universo são os americanos e os judeus. Os primeiros preferem antes pagar por crimes que não cometeram do que incorrer numa falta de educação contra seus mais perversos detratores. Os segundos sabem se defender um pouco melhor, mas se sentem inibidos quando os atacantes são oriundos das suas próprias fileiras – o que acontece com freqüência alarmante. Nenhuma entidade no mundo tem tantos inimigos internos quanto a Igreja Católica, os EUA e a nação judaica. É que viveram na “espiral do silêncio” por tanto tempo que já não sabem como sair dela – e até a fomentam por iniciativa própria, antecipando-se aos inimigos.

A única reação eficaz à espiral do silêncio é quebrá-la – e não se pode fazer isso sem quebrar, junto com ela, a imagem de respeitabilidade dos que a fabricaram. Mas como desmascarar uma falsa respeitabilidade respeitosamente? Como denunciar a malícia, a trapaça, a mentira, o crime, sem ultrapassar as fronteiras do mero “debate de idéias”? Quem comete crimes não são idéias: são pessoas. Nada favorece mais o império do mal do que o medo de partir para o “ataque pessoal” quando este é absolutamente necessário. Aristóteles ensinava que não se pode debater com quem não reconhece – ou não segue – as regras da busca da verdade. Os que querem manter um “diálogo elevado” com criminosos tornam-se maquiadores do crime. São esses os primeiros que, na impossibilidade de um debate honesto, e temendo cair no pecado do “ataque pessoal”, se recolhem ao que imaginam ser um silêncio honrado, entregando o terreno ao inimigo. A técnica da “espiral do silêncio” consiste em induzi-los a fazer precisamente isso.

Deus e o dr. Hawking

Deus e o dr. Hawking

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de setembro de 2010

Recentemente, o físico Stephen Hawking, contrariando suas afirmações anteriores, disse que o universo bem poderia ter surgido do mero jogo espontâneo das leis físicas, sem nenhuma intervenção de um Deus criador.

Passou o tempo em que as declarações de físicos eram ouvidas como decretos divinos. Hoje elas se arrogam uma autoridade supradivina, julgando e suprimindo o próprio Deus. Mas nem mesmo se contentam em fazê-lo na esfera das puras considerações teóricas: estendem sua jurisdição a todo o campo da existência social, exigindo que a educação, a cultura e as leis se amoldem à sua cosmovisão científica, sob a pena de serem condenadas como atos de fanatismo e crimes contra o Estado democrático.

Ao mesmo tempo, no entanto, os signatários desses decretos pavoneiam-se de uma modéstia epistemológica exemplar, jurando praticar a constante revisão de suas próprias crenças e jamais impor a ninguém alguma verdade científica definitiva, a qual, admitem, nem mesmo existe.

A coexistência, num mesmo cérebro, de presunções tão avassaladoras, com um sentimento tão cândido de abstencionismo crítico, já deveria bastar para mostrar que algo, nesse cérebro, não funciona bem.

Desde logo, raramente vemos um desses pontífices do conhecimento mostrar alguma consciência da distinção entre o mundo real e o objeto de estudos da sua ciência especializada.
O “universo” a que se refere o prof. Hawking não é o da experiência humana geral, mas o universo abstrato tal como conhecido pela ciência física. Nem o prof. Hawking, nem qualquer outro cientista da sua área, pode nos oferecer a mais mínima prova de que o universo da física seja “real”.

Ao contrário, não há problema mais espinhoso, para todos eles, que o do estatuto ontológico das partículas estudadas pelo ramo mais desenvolvido e mais exato da ciência, a física quântica. Eles sabem muito, sabem quase tudo sobre essas partículas, mas não sabem o que elas são, nem em que sentido a palavra “realidade” poderia aplicar-se a elas.

O fato mesmo de que a presença do observador modifique o comportamento delas levou muitos desses cientistas às mais extremadas especulações sobre o caráter subjetivo – ou “espiritual” – de todo o universo físico.

Quando não sabemos se uma coisa existe na mente, fora da mente ou em ambos esses lugares ao mesmo tempo, e quando, nesta última hipótese, não sabemos onde está a articulação que une os dois aspectos da coisa, é forçoso reconhecer que tudo o que conhecemos dela é a sua aparência.

O universo da física é um sistema de aparências, de “fenômenos”, que coincide com o mundo real sob certos aspectos, mas difere dele em outros. Perguntar se um sistema de aparências poderia ter surgido sozinho ou necessitaria de um Deus para criá-lo não só é uma especulação ociosa, mas, com toda a evidência, não tem nenhum alcance sobre a questão da origem do mundo real.

Quando o prof. Hawking diz que “o mundo” poderia ter surgido sozinho, o que ele quer dizer é que o “seu” mundo, um determinado sistema de aparências fenomênicas, considerado tão somente na sua consistência interna abstrata – supondo-se que esta seja cabalmente conhecida, o que ainda está longe de ser verdade – “pode” ser concebido, sem contradição lógica, como resultado espontâneo da atuação das suas próprias leis, sem a intervenção de um elemento externo.

Dizer isso é praticamente não dizer nada – nem mesmo a respeito do puro sistema de aparências enquanto tal. É apenas afirmar uma possibilidade lógica concernente a um grupo de hipóteses. Transmutar isso numa declaração taxativa de que “Deus não criou o mundo” é um hiperbolismo retórico que raia a insanidade ou o charlatanismo puro e simples.

Nenhum cientista sério tem o direito de ignorar as dificuldades quase insuperáveis que se interpõem entre as leis da física quântica e qualquer afirmação, por modesta que seja, sobre a natureza da realidade em geral. A primeira dessas dificuldades é que a física quântica não está segura nem mesmo quanto ao estatuto de realidade dos seus próprios objetos de estudo.

Para piorar as coisas, o dr. Hawking não está falando nem de física quântica. Está falando do Big Bang, uma teoria que extrai contribuições da física quântica mas não tem um milésimo da credibilidade que, dentro dos seus limites, ela indiscutivelmente possui.

Em termos estritos, o que o dr. Hawking disse é que o Big Bang poderia, em teoria, ter acontecido pela ação espontânea das quatro forças que o compõem, sem nenhuma ajuda externa. Mesmo supondo-se que essa afirmação seja estritamente verdadeira (não tenho a menor condição de confirmar ou negar isso agora), restariam os seguintes problemas:

(1) Se há forças que o precederam e determinaram, o Big Bang não é “a origem do mundo”, mas só de uma fase determinada da existência.

(2) De onde vieram as quatro forças? Surgiram do nada ou foram criadas?

(3) Que uma coisa possa acontecer em teoria não prova que tenha acontecido necessariamente.

(4) Não sabemos sequer se o Big Bang aconteceu ou apenas pode ter acontecido.

Traduzida em linguagem lógica, a declaração do prof. Hawking significa: “Há uma possibilidade de que outra possibilidade seja causa sui e não a decorrência de uma terceira possibilidade.” Molto bello, não nos diz nada a respeito do que aconteceu realmente. Muito menos responde à pergunta mais decisiva da filosofia, assim enunciada por Leibniz: “Por que existe o ser e não antes o nada?”

Qualquer que seja a competência de que desfrute na sua área de estudos, o dr. Hawking com frequência comporta-se como um astro do show business, impressionando a platéia com declarações espetaculares que se tornam ainda mais espetaculares quando, uns anos depois, ele as desmente com o mesmo ar de certeza com que as proclamou.