Por Alceu Garcia


Junho de 2002

Há uns anos a minha empregada contou-me que os bandidos da Favela da Rocinha costumavam alimentar um leão preso num buraco com inimigos vivos. Que inimigos? Qualquer um que o chefe da quadrilha local assim classificasse. Eu não acreditei, até que, pouco tempo depois, a polícia capturou o felino numa incursão, fato amplamente noticiado nos jornais. O atroz assassinato do jornalista Tim Lopes causou justa comoção entre os jornalistas e obteve grande destaque na mídia. Porém, crimes bárbaros desse tipo são cometidos diariamente contra cidadãos anônimos. Há poucos dias um casal foi confundido com policiais na entrada de uma favela, sendo ambos presos, torturados e trucidados por bandidos, ocorrência que não mereceu destaque nos diários cariocas. O que é corriqueiro não atrai mesmo as atenções nem vende jornais.

Alguns colunistas e políticos traçaram um paralelo entre a morte de Tim Lopes e a de Vladimir Herzog, jornalista comunista que teria sido assassinado na prisão no tempo dos militares. Dizem eles que o terror estatal de então vitimou um jornalista para intimidar toda a classe, assim como o terror para-estatal do crime organizado teve a mesma intenção no episódio Tim Lopes. Trata-se de uma falsa analogia, mais um exemplo da malícia e dissimulação da intelligentsia esquerdista encastelada na supremacia cultural, exímia na manipulação dos fatos e dos símbolos, visando associar o jornalismo com a resistência heróica de “esquerda” ao arbítrio e à violência da “direita”, no contexto de uma trajetória linear e homogênea desde a época da luta política contra os militares até a atualidade marcada pelo banditismo comum. Isso é falso porque a disseminação do consumo de drogas foi obra da juventude “hippie” de classe média nos anos 60 e 70, seguindo modismo importado dos Estados Unidos. E foram os presos políticos de “esquerda” que ensinaram aos bandidos comuns técnicas de organização e guerrilha quando compartilharam celas nos anos 70. A glamourização da bandidagem por escritores e cineastas tampouco foi coisa da “direita”. A ascensão vertiginosa do crime organizado, aliás, deu-se após a redemocratização de 1985. Não que a “direita” seja totalmente isenta de culpa pela situação atual. A estatização da economia em larga escala, sobretudo no governo Geisel, com seus corolários usuais de corrupção, ineficiência, parasitismo e concentração de poder econômico, foi um erro terrível pelo qual estamos pagando caro. Contudo, e não por acaso, essa responsabilidade real da ” direita” não é cobrada pela “esquerda”, que ama o Estado acima de tudo.

Outro mito dessa “esquerda” finória refere-se aos lamentados “anos de chumbo”, período em que o governo militar de um lado e guerrilheiros e terroristas esquerdistas de outro lutaram pelo poder político no país. A julgar pelo que se lê nos livros e se assiste em filmes e programas de TV, o regime militar foi marcado pela violência oficial desenfreada, que afetava diretamente todos os brasileiros. Nada mais falso. O conflito atingiu pouquíssima gente, quase todos intelectuais e estudantes militantes de classe média e alta. A esmagadora maioria do povo não tomou, nem quis tomar, conhecimento do que se passava. A verdade é que eram tempos bem melhores do que os atuais. As pessoas pagavam muito menos impostos, a economia se desenvolvia razoavelmente, havia mais oportunidades e empregos e, sobretudo, a violência era muito menor. A polícia acabou de descobrir os restos de mais de 200 pessoas mortas somente no cemitério particular do Elias Maluco. Apenas nesse local macabro há mais ou menos tantos “desaparecidos comuns” quanto todos os “desaparecidos políticos” do período militar. Como não pretendiam instaurar à força no Brasil uma ditadura muito pior do que a dos militares, nem eram amparados e endeusados pela classe letrada nacional e estrangeira, essas vítimas anônimas não darão seus nomes a ruas e praças, nem suas famílias ganharão de mão beijada o direito a polpudas indenizações à custa do contribuinte, sem precisar ajuizar ações e esperar 20 anos para que seus precatórios judiciais entrem no orçamento. Diariamente são assassinadas 110 pessoas no país, de maneira que em uma semana morre mais gente de morte matada do que em toda a “guerra suja” de mais de dez anos.

O quadro falsamente tenebroso dos anos entre 68 e 75 prevalece no imaginário coletivo porque o punhado de brasileiros derrotados na violência política tornaram-se os historiadores, professores, sociólogos, políticos, escritores, jornalistas, cineastas e demais profissionais das idéias, das imagens e das palavras que compuseram o painel histórico de uma época exclusivamente sob o seu prisma particular. Para os brasileiros comuns, pobres ou ricos, hoje ameaçados e intimidados por uma violência onipresente e implacável, os “anos de chumbo” são agora.

 

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