Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 22 de setembro de 2005

Se vocês querem uma pequena amostra de como funciona o serviço de desinformação comunista nos jornais brasileiros, leiam esta notícia:

”Um livro a ser lançado no próximos dias deve revelar que os soviéticos já desconfiavam da capacidade do presidente chileno Salvador Allende de manter-se no poder. Segundo os autores, o desertor da KGB Vasily Mitrokhin e o historiador Christopher Andrew, o Kremlin acreditava que Allende estava cometendo um erro fundamental ao resistir em usar a força contra seus inimigos. Um resumo do livro O Arquivo Mitrokhin foi publicado ontem pelo jornal britânico The Times .”

Ao ler isso no Estadão, fiquei desconfiado. A prudência recomenda suspeitar de tudo o que se publica na mídia nacional sobre comunismo, regime militar, Cuba, Hugo Chavez e assuntos correlatos. No caso, a suspeita era maior ainda por três motivos.

Primeiro: eu já era jornalista no tempo da Unidade Popular. Acompanhava seus feitos diariamente, com entusiasmo idiota de jovem esquerdista. Lembrava-me, pois, claramente, de que Allende não havia deixado de usar de violência contra os inimigos. Sua guarda pessoal matara vários deles. Na ocasião, isso me parecia pouco. Como todos os ”companheiros”, eu queria ver o sangue da burguesia jorrando em quantidades deslumbrantes. Mas negar que o nosso ídolo chileno tivesse derramado algum era impossível.

Segundo: tendo lido o primeiro volume do livro, publicado em 1999 (o Estadão nem sequer o menciona), eu sabia que Mitrokhin, alto funcionário encarregado de fiscalizar a mudança dos arquivos da KGB de um prédio para outro, tinha pouquíssimo tempo para copiar diariamente o que podia dos documentos. Limitava-se ao essencial. Nunca daria atenção ao comentário banal sobre um governante do Terceiro Mundo. Ali tinha de haver algo mais.

Terceiro: Mitrokhin só colhia informações da KGB, nunca ”do Kremlin”, como pretendia o jornal.

Fui, portanto, averiguar a fonte. Como geralmente acontece quando faço isso, descobri que o texto publicado no jornal brasileiro maquiava a informação originária, alterando-lhe radicalmente o sentido. Na notícia do Times, a crítica ao ”pacifismo” de Allende é um detalhe menor: o que o jornal destaca em primeiro lugar é a informação, esta sim essencial e nova, de que Allende era um agente pago do serviço secreto soviético. Seus contatos com o governo de Moscou não eram feitos através do embaixador em Santiago, mas do representante da KGB, Svyatoslav Kuznetsov. Os documentos mostravam vários pagamentos feitos por Kuznetzov ao presidente chileno, alguns como remuneração, outros para que ele usasse o dinheiro subornando políticos. Era o Mensalão chileno.

Como aí se evidenciava a verdadeira índole de um político desprezível, a cuja carantonha de bon-vivant a esquerda sobrepusera uma imagem de santo (chegando a transformar seu suicídio em homicídio), era preciso varrer essas informações para baixo do tapete. O redator do Estadão fez isso de maneira engenhosa, suprimindo o foco da notícia e enfatizando, isolado, o acréscimo secundário. O efeito é notável. Uma coisa é um presidente ameaçado abster-se de violências. Outra totalmente diversa é um empregado da KGB ser criticado pelos superiores porque usou de brutalidade em dose inferior à expectativa da organização. Na notícia do Estadão, o traidor a soldo de genocidas estrangeiros torna-se um herói da paz.

Aliada ao procedimento ainda mais costumeiro da omissão pura e simples, esse tipo de fraude é há tempos a norma vigente no jornalismo brasileiro para toda notícia que arrisque despertar algum sentimento anticomunista. Que isso é crime, é. Mas quem liga? Após três décadas desse tratamento, o público está maduro para acreditar que o Foro de São Paulo não existe, que Hugo Chávez nunca matou ninguém, que George W. Bush é racista, que o povo iraquiano odeia os EUA ou até que o PT rouba desde 1990 porque passou para a direita em 2002.

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