Olavo de Carvalho

30 de setembro de 1996

Relembrando o Pires

Pires, no caso, não é aquela concavidade, geralmente de louça ou porcelana, em que se apóia a bunda da xícara. É um ser humano, com todos os atributos aparentes da espécie, inclusive o ridículo de nascença. Apenas, ele vai, neste particular, um pouco além da média humana, provando, para gáudio dos igualitaristas, que todo mundo pode ser superior em alguma coisa.

Pelo texto que a seguir reproduzo, e diante do qual o Pires permaneceu mudo e estatelado como sói acontecer com os objetos de louça quando admoestados, o leitor poderá notar que o Pires estava particularmente qualificado para escrever, com a maior isenção, sobre a minha edição dos Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux, sendo por isto escolhido para essa tarefa pelo seu chefe, isto é, por ele mesmo. Sim, o Pires dirige o caderno Prosa ao Inverso, e não pode nem mesmo alegar que só escreveu porque lhe mandaram. Data venia do falecido presidente Jânio, o Pires fê-lo porque qui-lo. Fê-lo porque gosta. Fê-lo porque é o Pires, porque está condenado a sê-lo pelo resto de seus dias e porque nada se pode fazer para salvá-lo desse destino.

Que o Pires é um sujeito isento, é coisa que não nego. Só não me perguntem isento de quê, porque, se perguntarem, eu digo.

Sua resenha do meu trabalho também foi isenta — isenta de qualquer referência e esse trabalho.

Certa vez, quando o editor do caderno hoje dirigido pelo Pires era Luciano Trigo, fui convidado para escrever a resenha de um livro de João Ricardo Moderno. Respondi que, sendo o autor um notório inimigo meu, eu só faria a resenha se, lendo a obra, encontrasse nela algo que pudesse louvar. Qualquer jornalista digno do nome faria o mesmo. Mas eu sou do tempo em que a ética ainda não tinha voltado a ser tal como era antes de Sócrates, isto é, tal como a entendia o velho Alcebíades: ajudar os amigos e sacanear os inimigos.

O Imbecil do Pires e o meu

Extraído de O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras
(2ª ed., Rio, Faculdade da Cidade Editora, 1997).

É manifesto que o crítico Paulo Roberto Pires ( Prosa & Verso, 31 de agosto ) não gostou do meu livro O Imbecil Coletivo. Tanto não gostou que inventou outro e escreveu sobre ele, jurando que era o meu. Superando além de toda medida o mero “não li e não gostei”, inaugura-se assim uma nova e mais econômica modalidade de crítica literária, que prescinde do autor, do editor e do livro, ficando todas essas funções reunidas na pessoa do crítico. Para que o leitor faça uma idéia de como se pratica o novo gênero, assinalo aqui algumas das diferenças substanciais entre o livro que escrevi e aquele que o crítico comentou:

  1. Segundo o Pires, chamo as pessoas de “medalhões”. A palavra “medalhão” só aparece duas vezes no meu livro: na citação do título “Teoria do Medalhão” de Machado de Assis, e na explicação do uso que dela faz Lima Barreto. Não qualifiquei uma única pessoa com esse adjetivo.
  2. “A seus olhos – diz o Pires – , a presença de autores estrangeiros nos papersuniversitários, ensaios e suplementos culturais é sinal de subserviência intelectual.” Não afirmei nem afirmaria jamais uma asneira dessas, que o Pires mesmo inventou com a finalidade mal disfarçada de fazer-me parecer um asno.
  3. Segundo o Pires, meu livro acusa sistematicamente de “macaqueação” quem quer que cite um autor que não me agrade. Onde ele viu isso? Ao longo de todas as páginas, não acuso ninguém de macaquear qualquer autor que seja, quer me agrade ou não.
  4. Ainda segundo o Pires, insinuo que sou perseguido pela massa ignara. Nunca insinuei nem afirmei isso, muito menos no livro. O único ignaro que me persegue é o Pires.
  5. Informa o mesmo Pires que acuso os intelectuais de “conservadores”. Não encontro nada disto no meu livro, mesmo porque, no meu entender, nem “conservador” é xingamento, nem “progressista” é elogio, embora possam sê-lo para o Pires, sujeito progressista a mais não poder.
  6. Na contagem do Pires, meu livro tem 289 páginas. Nem nisto o infeliz diz a verdade: tem 383.

Por que o Pires não pode, como os críticos normais, se ater fielmente ao texto que pretende criticar? Por que tem de inventar um texto fictício para fazê-lo posar em lugar de um livro do qual não sabe sequer o número de páginas, e que provavelmente só conhece por referências de terceiros ou por uma lambida muito rapidinha no índice e no prólogo? A resposta é simples: é que ele não pretende criticar, nem mesmo impiedosamente, um texto. Quer difamar um homem, destruir-lhe o crédito e a auto-estima, feri-lo psicologicamente e criar em torno dele uma atmosfera de hostilidade maliciosa e suspicaz — propósito que só não se cumpre em razão da fraqueza do agressor e do bom estado de saúde da vítima. Prova suplementar dessa intenção, caso fosse preciso, é que o Pires não se contenta com falsificar o conteúdo da obra, mas se aventura a colar um rótulo depreciativo e falso diretamente na pessoa do autor: segundo ele, sou filósofo apenas por autodenominação. Mas não me autodenomino coisa nenhuma, nem poderá o Pires assinalar uma única página d’O Imbecil Coletivo onde eu o tenha feito. Sou assim denominado pela Academia Brasileira de Filosofia — onde acabo de ser publicamente homenageado nessa condição —, pelo Instituto Brasileiro de Filosofia, pela Faculdade da Cidade, pela Universidade Católica do Salvador, por muitos intelectuais de primeira ordem e pelo mesmo jornal onde o Pires escreve mal que dói. Não podendo ignorar esse fato notório, o Pires mentiu deliberadamente, com intuito de difamação, nisto como em tudo o mais que falseou. E após ter assim procurado ferir de maneira intencional a dignidade de um sujeito que ele nunca viu e que nunca lhe fez mal algum, o Pires ainda o acusa de “grosseiro”. Certo, certo. O Pires é que é fino. Fino e de porcelana como um urinol do Império.

No seu dedicado empenho de tudo distorcer, o Pires chega a trocar o sujeito das minhas frases. Segundo ele, afirmo que meu trabalho “é mais que uma alusão satírica”. Digo isso do título, não do livro. Mas como o Pires leu do livro pouco mais que o título, compreende-se a troca.

E tal é sua ânsia de destruir, que ele não recua diante das maiores temeridades no uso de uma lógica extravagante. Ele diz que meu livro está cheinho de contradições. Mas, com inexplicável comedimento, cita uma só: é que o autor “não prescinde da mesma mídia que condena”. Conclui-se que, para o Pires, toda crítica à mídia, para ter coerência, deve abster-se de ser divulgada. O Pires, além de não saber ler, definitivamente não raciocina. Ademais, não condenei mídia nenhuma, apenas o uso que os Pires fazem dela.

O Pires, em resumo, não gostou nem leu: inventou. Sua crítica é pura fraude, que não vai enganar a ninguém. Nem sequer a ele mesmo, que já revela, no fundo, a sujidade da sua consciência. Querem ver? Segundo ele, o “formulário-padrão”, em que vacino meu livro contra os chavões da maledicência, “anula qualquer possibilidade de diálogo”. Deduz-se daí, inescapavelmente, que o Pires não concebe nenhuma outra forma de diálogo possível senão as rotulações padronizadas que o “formulário” satiriza. E ele se sente muito constrangido porque, não sabendo fazer outra coisa, já não pode mais exercer esse tipo de “diálogo” sem se autodenunciar no ato. Nunca vi tanta pressa em vestir uma carapuça.

Tão malevolente é o Pires, que, num paroxismo de raiva insana, condena no meu livro até o fato de só trazer na contracapa as críticas favoráveis. Que eu saiba, todos os livros são assim. Desejaria o Pires que o meu editor, ao contrário de todos os outros, fizesse propaganda contra o próprio produto? Ademais, não existia, até o advento do Pires, nenhuma crítica desfavorável a O Imbecil Coletivo ou a qualquer outro livro meu. Mas, para não irritar mais ainda um sujeito já tão enfurecido pelo meu pecado de fazê-lo rir de si mesmo — humilhação suprema para quem se leva infinitamente a sério —, concordo em publicar o parecer do Pires na contracapa da próxima edição. Por menos que ele goste de mim, ou eu dele, não posso negar a esse rapaz a única oportunidade que ele vai ter na vida de aparecer ao lado de Paulo Francis, Herberto Sales, Josué Montello e Bruno Tolentino.

 

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