Olavo de Carvalho


 Zero Hora (Porto Alegre), 2 dez. 2001

A verdadeira gravidade da situação no Rio Grande não reside na hegemonia de um partido que, no fundo da variedade dos pretextos verbais que apresenta, não sabe fazer outra coisa senão requentar a velha, fracassada e sangrenta experiência socialista de Cuba, da Coréia do Norte, do Vietnã.

Não reside na ousadia crescente de exércitos de militantes que chamam “democracia” à imposição de suas idéias por meio da intimidação e do grito.

Não reside na desmontagem do aparato policial e na conseqüente disseminação do banditismo.

Não reside no estado de censura branca imposto a jornalistas de oposição.

Não reside na eliminação informal do direito de propriedade.

Não reside nem mesmo na legitimação implícita da violência e do crime, consubstanciada na amizade indecorosa entre o “establishment” estadual e os narcotraficantes das FARC.

A verdadeira gravidade na situação do Rio Grande reside na progressiva e dificilmente reversível dissolução da linguagem pública, que, corrompida pelos excessos da retórica de autobeatificação dos sentimentos esquerdistas, vai se tornando cada vez mais impossível de usar como instrumento de distinção lógica e conhecimento da realidade.

Quando jornalistas representativos, antes mesmo de concluídas as investigações de um caso de corrupção, se apressam a participar de uma “manifestação de desagravo” à pessoa do acusado e não são nem mesmo chamados à ordem por uma comissão sindical de ética, o último vestígio de senso da realidade desapareceu do horizonte de consciência de uma classe profissional que, não obstante, continua a se considerar o farol a iluminar os caminhos da nacionalidade.

Que, findas as investigações, inocentado o suspeito, a classe jornalística inteira fosse festejá-lo, isso revelaria facciosismo, mas não falta de consciência.

Desagravo antes, desagravo prévio, desagravo a priori – isto já é uma confissão aberta da firme disposição de fazer prevalecer um preconceito político acima das exigências mais elementares do respeito jornalístico pela realidade.

Atribui-se ao filósofo Georg W. F. Hegel, não sei se falsamente, a sentença: “Se os fatos contradizem a minha teoria, tanto pior para os fatos.” Se non è vero, è ben trovato. Hegel era mesmo um daqueles sistematizadores abstratistas, um daqueles conseqüencialistas alucinados que, partindo de princípios auto-impostos, ia em linha reta como uma bala de fuzil até às últimas deduções sem se importar com as nuances e as variações da realidade empírica. Mas ele, pelo menos, teria dito isso em privado, sem registrá-lo despudoradamente em livro. Já aqueles jornalistas gaúchos fazem alarde público de seu desprezo pelos fatos, confiados no princípio geral de que a realidade, como esposa fiel dos velhos tempos, jamais teria a ousadia de contrariar o PT.

Que tão indecente manifestação de desprezo pela realidade se faça, ademais, com ares de elevado empreendimento moral, aí a inconsciência já deixa de ser uma simples privação intelectual e se torna, positivamente, uma doença do espírito, uma corrupção profunda e irremediável da alma, uma opção satânica pela superioridade intrínseca da mentira.

Lembram, os protagonistas dessa pantomima, aquele assessor técnico cubano que, instruído por Fidel Castro a investigar o destino de umas máquinas caríssimas importadas logo no começo da revolução, tendo-as encontrado paradas e em péssimo estado, foi severamente repreendido pelo chefe por haver registrado em relatório esse fato deplorável, e ainda teve de ouvir esta advertência solene: “Você tem de aprender a optar entre a realidade e a revolução.”

Tal é o estado de deformação a que se expõem, de fato, as almas que se comprometeram com os valores de um movimento que, nas palavras de Karl Radek — o mais próximo assessor de Stálin, morto pelo chefe quando se tornou inconveniente –, exigia de seus militantes a impossível ginástica mental de “mentir em prol da verdade”.

Foi “mentindo em prol da verdade” que milhares de intelectuais esquerdistas, com a maior pose de dignidade, esconderam durante décadas a existência dos campos de concentração soviéticos, tornando-se cúmplices morais do assassinato de milhões de inocentes – um genocídio que ultrapassou de longe as dimensões do holocausto nazista.

Que com tanta facilidade as expressões de indignação moralística subam à face de indivíduos tão inclinados ao oportunismo amoral, eis um fenômeno psíquico que também não é difícil de explicar: quanto mais a moral é desmantelada e inutilizada como instrumento de guiamento da própria conduta, tanto mais afiada e mortífera se torna como arma de ataque na luta política.

O verdadeiro senso moral, diante do fato que o escandaliza, não se multiplica em exibicionismos histéricos, não se autoglorifica em poses de santidade afetada: recolhe-se, medita, busca as causas e o fundo psicológico do mal, para tentar remediá-lo. E, antes de exibir o pecador à execração pública, tenta alertá-lo para a gravidade do seu pecado. É com este espírito, pois, que alerto os jornalistas gaúchos de esquerda: ser de esquerda ou de direita é uma simples opção política, sem maior significação moral em si mesma. Se a adesão a um partido político chega tão fundo que se substitui às exigências morais propriamente ditas, sob a desculpa de que o partido encarna e absorve em si toda moralidade, então a famosa “ética na política”, de que vocês tanto se gabam, já não é senão politização da ética, prostituição da consciência moral a serviço de uma ambição de poder.

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