Olavo de Carvalho


 O Globo , 01 dez 2001

Ao longo de seis ou sete anos de polêmicas, raramente encontrei um opositor que evidenciasse conhecer, mesmo por alto, as exigências mais elementares da demonstração lógica e da argumentação em geral.

Tantos foram os que tentaram invalidar meus argumentos, e tão obviamente falhas as objeções que me apresentaram, que a coleção delas bastaria para ilustrar um tratado como as “Refutações Sofísticas” de Aristóteles ou a “Dialética Erística” de Schopenhauer.

Cheguei a publicar uma versão comentada desta última obra e um breve estudo sobre a lógica de Aristóteles, na louca esperança de que meus opositores, tomando consciência de que não discutiam com um opinador casual, mas com um estudioso e por assim dizer quase um especialista da arte da prova, notassem o ridículo a que se expunham e, ao menos por instinto de autopreservação, passassem a opinar menos e a estudar mais.

Foi em vão. Continuaram vindo, com a mesma empáfia de sempre, com a mesma autoconfiança insensata de sempre e, como sempre, sem os devidos recursos intelectuais para enfrentar a discussão.

Convidados a assumir as conseqüencias lógicas de suas opiniões insustentáveis, recuavam e buscavam refúgio numa afetação de silêncio superior, acompanhada, às vezes, de tentativas de me cassar a palavra pelo uso da influência, das amizades, dos jogos políticos, quando não da intriga e da difamação. Paradoxalmente chamavam-me então “autoritário”, confundindo a força da lógica com a lógica da força.

Coletei amostras disso nos dois volumes de “O Imbecil Coletivo”. Depois de publicados, os casos avolumaram-se o bastante para compor três volumes suplementares.

São tantos os exemplos que não posso supô-los desprovidos de significação sociológica, como indícios de um estado generalizado de inépcia e mesquinharia mental que caracteriza a fase mais negra da história da inteligência nacional – ou, se preferem, da burrice nacional.

São os frutos da formação (ou deformação) imposta a uma geração pelos ídolos da intelectualidade esquerdista dos anos 60-70 – não citarei nomes porque todos os conhecem.

Esses professores, que já eram limitadíssimos, impuseram à juventude de então limitações ainda mais estreitas, ao mesmo tempo que lhe infundiam o despropositado orgulho de constituir “a parcela mais esclarecida da população”. Não há hoje um só “formador de opinião”, de meia idade, que não tenha conservado essa fé intacta, em formol.

Por isso é já não resta, entre eles, quase ninguém que saiba distinguir, por exemplo, entre afirmações factuais e opiniões. Por isso, cada afirmação de fato que apresento é respondida como “opinião extremada” ou coisa assim.

O apelo à moderação soa simpático. Entre opiniões extremadas e moderadas, o brasileiro, tradicionalmente, prefere as moderadas. Moderação é sinônimo de equilíbrio, maturidade, sensatez.

Mas até a busca do equilíbrio, quando se sobrepõe ao senso da realidade e se enrijece num vício de percepção, pode levar aos piores desequilíbrios. E é evidentemente um desequilíbrio aplicar os conceitos de “moderado” e “extremado” em domínios onde não cabem de maneira alguma.

Extremismo e moderação só podem aparecer em juízos de valor, em apreciações pessoais, em opções tomadas livremente numa gama de opções possíveis.

A simples alegação de um estado de fato não pode ser moderada nem extremada. Pode ser apenas verdadeira ou falsa, exata ou inexata – e só pode ser confirmada ou impugnada pela aferição dos dados, não pela denúncia de más qualidades psicológicas no falante. Se dizemos que um sujeito está morto, não há nisto extremismo ou moderação: ele não poderia estar extremamente morto ou moderadamente morto, como uma mulher não pode estar moderadamente grávida ou um círculo ser extremamente circular.

Na mesma linha está a confusão entre os fatos alegados e as causas aventadas para explicá-los. Fatos mostram-se pela percepção, pelos testemunhos e pelos documentos. Causas demonstram-se por lógica e argumentação. O modus cognoscendi é bem diverso num caso e no outro. Basta saber disso para perceber que a afirmação de um fato não pode ser impugnada pela negação de qualquer de suas possíveis causas. Desmentidas todas as causas, restaria ainda o fato. Invalidada a explicação, restaria o dado a explicar. E quantas vezes não encontrei acadêmicos, escritores, homens públicos que acreditavam poder contestar a afirmação de um estado de fato mediante a alegação da improbabilidade, real ou aparente, de alguma de suas possíveis causas? Pior ainda, freqüentemente era alguma causa hipotética que não fôra sequer aventada por mim, mas suposta por eles próprios e atribuída a mim por autoprojeção.

Para compensar ou disfarçar a pobreza e a deformidade de suas respectivas apreensões da realidade, esses objetores faziam amplo uso das rotulações pejorativas (“reacionário”, “paranóico”), bem como dos argumentos ad baculum (alegar que minhas idéias eram “perigosas”) , ad populum (tomar como axiomas inquestionais os lugares-comuns da mídia ou as crenças do seu próprio grupo de referência) e ad ignorantiam (usar a própria ignorância de um fato como prova de que ele não acontecera) – enfim, de todo o arsenal de falácias primárias que todo estudante teria a obrigação de conhecer e evitar.

Mais freqüente ainda eram afetações de bom-mocismo – para evitar a discussão objetiva, saltavam para a exibição de bons sentimentos, de “cidadania”, “modernidade”, “progressismo”, etc., como se algum juízo de existência pudesse ser impugnado ou validado por esses meios, como se não houvesse a menor diferença entre um discurso de apreensão da realidade e um discurso de auto-reforço psicológico. O empenho obsessivo de exibir normalidade para dar ao adversário ares de louco é, em especial, um sintoma de insegurança disfarçada, principalmente quando se substitui à argumentação efetiva em vez de simplesmente sublinhá-la.

É tanta a insistência nessas atitudes que sinto que essas pessoas já não distinguem entre a realidade dos fatos e os sentimentos autoprovocados pela imaginação e como que treinados diante do espelho. Generalizada essa indistinção, o ambiente intelectual nacional tornou-se idêntico ao dessas revistas de fofocas televisivas, onde os relatos de casamentos, divórcios e peripécias gerais vividas durante a semana pelos personagens de novelas são acompanhados pelo povão como se fossem o noticiário de acontecimentos reais.

Não estou, de maneira alguma, aludindo a algum contraditor em particular. Praticamente todos os que encontrei até hoje foram debatedores que uniam, à profunda desonestidade na argumentação, a total inconsciência dessa desonestidade.

Se alguém em particular tivesse se destacado nisso, se o fenômeno não fosse tão geral e repetido, eu nem me daria o trabalho de escrever a respeito.

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