Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 27 de março de 2006

Leio no site do meu caro Políbio Braga (http://www.polibiobraga.com.br), um dos melhores comentaristas políticos do Rio Grande, o seguinte:

Se você tem conta na Caixa Econômica Federal, muita atenção: a Caixa viola o sigilo bancário dos seus clientes. Saia da Caixa Federal enquanto é tempo e fuja de repartições públicas ocupadas por trotsquistas ou ex- trotsquistas enquistados no PT, porque eles são capazes de tudo e não têm compromisso algum com a chamada ‘ordem burguesa’. Ficou comprovado que a violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa partiu da própria Caixa Econômica Federal. O formulário de extração de dados da movimentação bancária de Francenildo é exclusivo do sistema interno da estatal, ao qual nem clientes têm acesso. As duas pessoas, em última instância, responsáveis pelo sigilo dos dados dos clientes são gaúchas. São o próprio presidente, Jorge Mattoso, conhecido trotsquista de Porto Alegre, amigo de Luís Favre, o marido de Marta Suplicy, também ele um trotskista histórico, além de Clarisse Copetti, a guardiã da área de segurança da informação da Caixa, que antes de ir para Brasília ocupou uma das Diretorias da Procempa, à época presidida pelo trotsquista Jorge Mazzoni. São todos enfezados militantes do PT. Clarice Copetti é mulher de César Alvarez, do PT gaúcho, homem que despacha ao lado do gabinete do Presidente Lula, no Palácio do Planalto .”

Não sejamos injustos com a Caixa Econômica Federal. Ela não é uma ilha de espionagem comunista num mar de confiabilidade e decência. Todas as estatais, todos os órgãos da administração federal, estadual e municipal, todos os sindicatos, todos os bancos, todas as grandes empresas privadas, todas as escolas privadas e públicas de qualquer grau, todas as instituições de cultura, todos os jornais, revistas e canais de TV, todos os partidos políticos sem exceção têm hoje um, dois, vinte, trinta agentes infiltrados a serviço da máquina esquerdista de informação e contra-informação.

Essa “ocupação de espaços” começou quarenta anos atrás e prosseguiu discretamente, imperturbavelmente, sem encontrar a menor resistência, ao longo de duas gerações de brasileiros. Ela nasceu da mutação estratégica sucedida nos partidos de esquerda a partir da publicação das obras de Antonio Gramsci pela Editora Civilização Brasileira, na década de 60. Vou resumir brevemente essa mutação e em seguida analisar criticamente o seu estado atual. Quem depois disso não entenda o que está acontecendo e ainda se iluda quanto à possibilidade de reverter o estado de coisas pela via eleitoral normal, sem uma contra-estratégia de conjunto e um combate anticomunista explícito, será um caso de ingenuidade política irreversível e fatal.

1. No entender de Gramsci, o “poder” não se constitui apenas do aparelho estatal, mas de uma complexa trama de organizações espalhadas pela sociedade civil, por meio das quais a “ideologia” dominante se perpetua através das gerações, criando uma barreira de proteção invisível contra a ação revolucionária.

2. Portanto, o principal objetivo do Partido revolucionário não deve ser a tomada do poder político, mas a conquista do controle – “hegemonia” – sobre essa rede informal de organizações que produzem a “cultura”, isto é, a ideologia dominante. (O Partido não precisa ser formalmente um só, reconhecido como tal nos registros eleitorais “burgueses”, mas pode ser um amálgama de organizações diversas e sem estratégia nominal unificada, algumas até sem existência legal, como acontece com o MST.)

3. A hegemonia não é apenas um meio de obter suporte social para a conquista do poder político. Isso seria reduzi-la a um apêndice da velha estratégia leninista. Ao contrário, ela é, desde já, a transição revolucionária para o socialismo, operada por meios tão difusos e onipresentes que se torna difícil combatê-los ou mesmo reconhecê-los. Daí o nome “revolução passiva”. É a revolução que acontece sem que ninguém possa ser apontado como seu autor e mesmo sem que as vítimas do processo tomem consciência clara do que está acontecendo.

4. No esquema leninista, a transição para o regime comunista se faria por meio de uma etapa intermediária socialista. O Estado, nessa perspectiva, seria fortalecido e ampliado até apropriar-se de todos os meios de ação social existentes. Quando nada mais restasse fora da esfera do Estado, este desapareceria como tal: onde tudo é Estado, nada é Estado. Pelo menos a dialética hegeliana ensina a raciocinar assim. Marx, Lenin e tutti quanti tomavam como dissolução real do poder de Estado essa pura transmutação semântica do tudo em nada. Foi por meio dessa grotesca mágica verbal que o totalitarismo perfeito pôde ser aceito como a perfeita democracia. O esquema de Gramsci é bem diferente. Nada tem de um engodo dialético. É uma transformação material, efetiva, da estrutura de poder. A conquista da hegemonia, conforme ele a encarava, já viria a constituir, em si e imediatamente, a dissolução da ordem estatal, substituída pela obediência espontânea das massas aos estímulos acionados pelos comandos culturais espalhados por todo o corpo da sociedade. A burocracia estatal é uma expressão da cultura dominante e nada pode contra ela. Ainda que continuasse formalmente vigente, a ordem estatal, inerme ante a força onipresente e invisível da “cultura”, se tornaria um adorno inócuo e se dissolveria por si mesma. Seria o comunismo não declarado, implantado sem a etapa intermediária socialista.

5. Nesse processo, a submissão coercitiva à autoridade estatal seria substituída pela obediência inconsciente e irreversível à “cultura”, isto é, ao conjunto de estímulos, slogans e cacoetes mentais injetados sutilmente na sociedade pelos “intelectuais”, a vanguarda partidária espalhada informalmente nos milhares de organizações da sociedade civil. A profundidade e abrangência dessa penetração pode ser medida pelo fato de que a rede de organizações a ser conquistada abrangia até escolas maternais, igrejas e confessionários, consultórios de psicologia clínica e aconselhamento matrimonial: nada na atividade psíquica da sociedade poderia escapar à influência do Partido, que adquiriria assim, segundo as palavras do próprio Gramsci, “a autoridade onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.

6. No esquema gramsciano, a identificação do perfeito controle totalitário com a perfeita liberdade democrática, que em Lênin era apenas um giro semântico demagógico, se torna um processo psicológico real vivenciado pelas multidões, que, não percebendo nenhuma autoridade estatal a coagi-las ou atemorizá-las por meios visíveis, acreditam piamente estar vivendo na mais libertária das democracias, no instante mesmo em que se curvam à mais completa obediência, incapazes até mesmo de conceber algum tipo de ação que escape à conduta que o Partido espera delas.

7. A subversão ativa por meio dos mecanismos tradicionais de ação comunista – greves, invasões de terras, protestos de toda ordem – não seria abandonada, mas articulada à conquista da hegemonia pela elite “intelectual”, formando o “bloco histórico”, isto é, a perfeita convergência da “pressão de cima” com a “pressão de baixo”. Operando sobre um fundo psicológico preparado pela hegemonia, a subversão já não encontraria resistência e nem mesmo seria nominalmente reconhecida como tal, pois corresponderia à simples realização de expectativas “normais” já prefiguradas e legitimadas na “cultura”.

Nenhum ser humano com QI superior a 12 pode deixar de perceber que a transformação revolucionária gramsciana não é um risco que se abre diante de nós, mas a situação em que o país já vive desde há muitos anos, um processo tão geral, profundo e avassalador que ninguém mais pensa em lhe oferecer resistência de conjunto: mesmo os descontentes com o estado de coisas só reagem a pontos de detalhe. Suas ações se dissolvem espontaneamente no oceano da hegemonia cultural e com a maior facilidade são reaproveitadas para o fortalecimento do contole partidário monopolístico.

Alguns exemplos especialmente deprimentes:

A. Aqueles que se revoltam contra a prepotência do MST já não têm sequer a força interior de lutar contra os objetivos do movimento e se limitam a protestar contra um ou outro meio de ação isolado. Contra a subversão agrária, o máximo que conseguem propor é a “reforma agrária dentro da lei”, isto é, a reforma agrária conduzida pelos agentes do mesmo movimento que só se diferenciam dos invasores de terras porque ocupam cargos na burocracia estatal. O ponto que ainda resta em disputa é apenas uma diferença quanto aos meios de fortalecer o MST: deixando-o invadir e queimar fazendas ou entregando-lhe oficialmente tudo o que ele exige e mais alguma coisa.

B. É mais que evidente que os organismos policiais e de inteligência não foram deixados de lado na conquista da hegemonia. Eles estão hoje sob o controle completo da organização partidária que, ao mesmo tempo, fomenta o banditismo através de legislações propositadamente liberalizantes e sobretudo da intensa colaboração entre as quadrilhas de traficantes e as organizações subversivas estrangeiras associadas ao partido governante através do Foro de São Paulo. É a perfeita articulação da “pressão de baixo” com a “pressão de cima”. Espremida entre esses polos, a sociedade não tem alternativa: ou se conforma com a violência criminosa descontrolada, ou fortalece o partido governante confiando-se à sua proteção, sem ousar confessar a si mesmo que assim só está se entregando oficialmente aos próprios bandidos.

C. Durante anos, a elite partidária articulou violentas campanhas de combate à corrupção com a construção discreta e abrangente de uma máquina de corrupção incomparavelmente maior e mais destrutiva do que todas aquelas que ia desmantelando pelo caminho. Pressão de cima e pressão de baixo. Durante esse período, os feitos mais espetaculares do moralismo acusador deviam-se exclusivamente ao progressivo controle que os partidos de esquerda iam adquirindo sobre os meios de informação e contra-informação através de uma infinidade de “arapongas” infiltrados em toda parte. Na época, a sociedade já estava tão estupidificada e submissa que fechava os olhos a essa monstruosa destruição da ordem legal desde dentro e só se enfezava contra os corruptos avulsos que a máquina de subversão esquerdista apontava à execração popular. A situação descrita por Políbio Braga no parágrafo citado acima não é nova. O esquema esquerdista tem toda a máquina de informações na mão, podendo usá-la à vontade tanto para enriquecer ilicitamente como para intimidar, assassinar moralmente ou mesmo mandar para a cadeia quem quer que ouse denunciar o que está fazendo. A esta altura, qualquer político anti-esquerdista que ache possível vencer esse esquema por meio de acusações isoladas de corrupção, apegando-se a esse ponto para fugir a um confronto com a estratégia geral gramsciana, é evidentemente um bocó inofensivo que só merece, de seus inimigos esquerdistas, um riso de desprezo.

No Brasil atual, a autodemolição do Estado e sua substituição pela onipotência do Partido já são fatos consumados e, nesse sentido, a profecia gramsciana se revelou perfeitamente veraz. O problema com Gramsci não é a falta de realismo. Gramsci nunca foi vitima de utopismo revolucionário. Ele sempre foi atento aos fatos e sensível à hierarquia das forças objetivas que movem a sociedade. O problema com ele não está nos fatos, mas nos valores. Tal como seu guru Maquiavel, ele tinha uma consciência moral doente, disforme, incapaz de sentir o mal mesmo nas suas expressões mais óbvias e escandalosas. Por exemplo, ele via a dissolução do Estado como o advento de uma era de liberdade jamais sonhada. Mas o Estado é uma ordem explícita sobre a qual sempre se pode exercer um controle crítico. Já a rede de operadores da hegemonia é oculta, inacessível ao público. É uma elite onipotente como uma casta de deuses, controlando o processo desde alturas inatingíveis. Só uma mente perversa pode conceber isso como um reino da liberdade. Ao mesmo tempo, é óbvio que a elite esquerdista pode dissolver o Estado por meio do fomento ao banditismo, mas com isso entrega a população à sanha de traficantes e assassinos, sem lhe deixar esperança de refúgio exceto por meio de um retorno ao Estado forte, dominado, é claro, pela mesma elite que criou, protegeu e alimentou o império do crime.

Gramsci sabia como funcionava a estrutura de poder. Só não sabia diferenciar o bem do mal. Era um gênio da engenharia social com a consciência moral de um rato de esgoto. Se o Brasil é hoje a nação recordista mundial de homicídios no mundo e ao mesmo tempo o único país em que a estratégia gramsciana foi aplicada de maneira integral e bem sucedida, só tipos patéticos nos quais a impotência e a cretinice tenham chegado à síntese perfeita da estupidez superior podem achar que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Ora, praticamente toda a política “de oposição”, no momento, consiste precisamente em agir como se uma coisa não tivesse nada a ver com a outra.

Quando observo esse estado de coisas e me lembro de que, ao longo das décadas, todas as minhas tentativas de denunciar o processo antes que ele chegasse às suas últimas conseqüências foram recebidas com bocejos de indiferença ou com aquela franca hostilidade que os preguiçosos e comodistas reservam para os portadores de notícias desagradáveis, não posso escapar à conclusão de que as vítimas da opressão esquerdista receberam exatamente aquilo que fizeram por merecer. No fundo do caos, da violência, do cinismo triunfante e da mais formidável degradação moral que qualquer nação do mundo já vivenciou, reina, no fim das contas, uma certa justiça. Todos estão sendo recompensados pelos méritos da sua covardia moral e da sua indolência intelectual. Parabéns.

***

Nota – Na análise dos fatos, Gramsci só falhou num ponto decisivo. Ele não entendia absolutamente nada de economia, e por isso imaginou que a aplicação bem sucedida da sua estratégia produziria automaticamente a transfiguração mágica do sistema econômico. Ao contrário, a evolução posterior dos acontecimentos mostrou que a implantação de um sistema de poder comunista gramsciano é inteiramente compatível com a subsistência do capitalismo monopolístico. Na verdade, ela até exige isso, porque, a economia comunista sendo inviável em si (a demonstração cabal disto já foi feita desde 1928 por Ludwig von Mises), o esquema gramsciano precisa de uma certa quota de capitalismo para manter-se de pé, exatamente como acontece na economia nazista ou fascista. Daí a parceria infernal do partido governante com os bancos. Mantendo satisfeita uma parcela da burguesia, esse esquema pode durar indefinidamente. E, se alguém acha ruim, o protesto mesmo pode ser canalizado em favor da propaganda esquerdista, lançando-se as culpas do mal sobre o “sistema”, como se o sistema não fosse o próprio gramscismo realizado.

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