Olavo de Carvalho

26 de setembro de 1999

Países como o Brasil, a Romênia, a Polônia, a Bulgária, sofrem de um terrível complexo de marginalidade porque sentem que foram excluídos da História. Olham com inveja para os “grandes centros” de onde vêm as correntes de acontecimentos e idéias, e choram ao contemplar sua própria insignificância.

Mas a “importância histórica” é quase sempre apenas uma ilusão lisonjeira, que nada tem a ver com a relevância objetiva dos homens, dos atos e das doutrinas. Afinal, o que é ser importante, historicamente? É ser falado e servir de pretexto, por meio do que se fala, à produção de mais falatórios e mais acontecimentos. Na quase totalidade dos casos, a soma destas pretensas conseqüências, em vez de pôr em evidência a sua suposta causa, termina por encobri-la e desfigurá-la completamente, até transformá-la em algo completamente diferente daquilo que foi e obrigá-la a servir a finalidades diversas ou opostas àquelas que originariamente as inspiraram. Se os fatos e idéias de uma época chegam a subsistir na época seguinte, não é em geral como forças agentes que produzem os efeitos que lhes são próprios, como a semente de maçã produz macieiras e os ovos de galinhas trazem ao mundo novas galinhas e não patos, mas sim como mitos que servem de pretexto à produção de efeitos completamente estranhos à sua natureza originária. Cada época serve-se do passado como de uma criada de cama e mesa, aproveitando-se dela para suas próprias finalidades, com o descaramento do grão-senhor que se deleita no corpo da escrava sem ter na mais mínima conta os desejos da sua alma.

O exemplo mais característico é a Revolução Francesa. O que, dela, mais veio a exercer influência sobre o mundo não foram os fatos ou idéias dos quais ela se constituiu efetivamente, mas um mito criado a posteriori por Karl Marx, o modelo denominado “revolução burguesa”. De acordo com este modelo, o crescimento da economia capitalista no Ancien Régime foi de tal monta, que exigiu uma reestruturação geral do sistema de propriedade e, conseqüentemente, a mudança da ordem jurídica; os aristocratas reagiram à mudança necessária e, em decorrência, foram para a guilhotina, inaugurando-se então a época burguesa. Em parte por sua elegância geométrica, em parte por dar ao movimento socialista o pretexto ideal para que se apresentasse como o inevitável capítulo seguinte da história, esse esquema entrou no vocabulário corrente das discussões políticas, foi absorvido nos livros didáticos e acabou por se apossar de todas as mentes ao ponto de passar, hoje, por uma verdade óbvia e autoprobante. Em seu nome fizeram-se novas revoluções, criaram-se países e correu sangue em quantidades que o próprio Robespierre, se as visse, desmaiaria de horror.

No entanto, a pesquisa histórica jamais deu a mínima confirmação científica à crença de que a Revolução Francesa foi uma luta de classes, muito menos a luta vencedora da burguesia em ascensão. Para começar, os aristocratas, malgrado seus preconceitos seculares contra o comércio e a indústria, já eram os maiores capitalistas antes da Revolução e continuaram a sê-lo depois dela. Em segundo lugar, as reações mais violentas ao novo regime não vieram da aristocracia, mas dos camponeses, em parte sob a inspiração da Igreja, cujos bens haviam sido confiscados em proveito dos capitalistas mais ricos que podiam comprá-las, isto é, em última análise, principalmente dos aristocratas, e só secundariamente dos novos capitalistas sem títulos de nobreza. Basta olhar o número de marqueses, condes e barões entre os donos das grandes indústrias e bancos para perceber que quem manda na França ainda são os mesmos senhores de antes de 1789. Os burgueses, é claro, estão lá, mas não em proporções substancialmente maiores do que no Ancien Régime. A única classe que efetivamente subiu, com a Revolução, foram os intelectuais: a constituição do novo sistema universitário e da indústria editorial moderna deu a eles a posição de soberania com que haviam sonhado durante o “século das Luzes”. E as únicas classes efetivamente lesadas foram os pequenos camponeses e os padres, aqueles sendo subjugados pelo Estado burocrático e espoliador, estes perdendo, junto com os bens da Igreja, todo vestígio de autoridade. Se fosse possível equacionar em termos de classes o que se passou na Revolução, o mais certo seria dizer que ela foi a luta dos aristocratas, capitalistas e intelectuais contra a Igreja e o povo, aquela sendo virtualmente excluída das classes dominantes, este tendo sua fúria aplacada pela ilusão dos direitos políticos outorgados como compensação pela perda dos antigos privilégios regionais e corporativos — um péssimo negócio, se considerarmos que a Inglaterra, respeitando até hoje esses privilégios, pôde construir com base neles uma autêntica democracia, enquanto a França revolucionária se precipitava numa seqüência alucinante de crises, golpes, revoluções, morticínios e ditaduras, para só no fin de siècle conseguir estabilizar, mal e mal, um regime democrático.

Se a Revolução Francesa, tal como foi na realidade, houvesse determinado o curso dos acontecimentos na Europa e nas Américas, fatalmente o centro produtor dessa mudança decisiva, a França, teria assumido as rédeas da História e se tornado a potência dominante no mundo. No entanto, desde a Revolução, a França não fez senão recuar perante a Inglaterra, a Rússia, a Alemanha e os Estados Unidos, até tornar-se hoje uma pseudopotência acovardada e servil, que vive das ilusões do passado e ridículas encenações de soberania.

Isso mostra que o fator decisivo, na produção dos efeitos da Revolução, não foi a verdade histórica do que se passou na França, mas sim o mito da Revolução burguesa, inventado por um alemão e bem aproveitado por americanos, russos e chineses.

Vista sob o ângulo da História das Idéias — que é a história das aparências –, a França moderna pode parecer um grande centro produtor do acontecer histórico, digno da inveja dos pobres países marginais em cujas opiniões ninguém fora deles jamais prestou atenção. Mas será mesmo invejável a sorte de um país com cuja História os outros fazem o que querem, mutilando-a, desfigurando-a e inventando-a a seu belprazer para usá-la em proveito próprio, enquanto ele próprio vai sendo, aos poucos, atirado à lata de lixo do esquecimento? Não será bem melhor o destino do país que, ignorado pelos outros, não se torna a vítima de uma auto-imagem ilusória inventada desde fora e pode, portanto, conservar suas idéias claras e seu autodomínio intelectual?

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