José Nivaldo Cordeiro


2 de janeiro de 2002

Continuando a série de artigos a partir dos temas extraídos do livro de Paul Johnson, História do Cristianismo, será abordado neste a Reforma religiosa que explodiu no século XVI. Como é bem o método de Johnson, ele sempre parte de personalidades destacadas, sua biografia e sua psicologia, para construir o fio narrativo. Para esse tema, sem dúvida o autor elegeu a figura de Erasmo de Roterdã como emblemática dos novos tempos, um fiel continuador da obra paulina e um adversário intelectual de Agostinho.

Contudo, para entrar no tema antes é necessário contextualizar a formação do momento. Falar da Reforma é também falar do Renascimento e de sua grande e revolucionária novidade, a imprensa, mais precisamente as técnicas de impressão mecânica. A Terceira Força, no dizer de Johnson. Com ela, não mais haverá como controlar os textos sagrados, nem os clássicos, nem a difusão de conhecimento. O Imprimatur dos censores eclesiásticos passou a não controlar mais coisa alguma, o que era facílimo nos tempos das cópias manuscritas, de feitio lento e caro e inteiramente sob controle do clero. É ela que vai plantar a semente do livre exame das Escrituras, quebrando o monopólio clerical.

Antes, convém algumas poucas observações sobre o período medieval.

A Idade Média foi um tempo em que prevaleceu por toda a Europa o cristianismo total, que regulava a vida de toda a sociedade, em todas as classes sociais. A Igreja Católica dividia o poder com os reis e príncipes, estando o mesmo concentrado na esfera civil, mas não há dúvida de que o clero, e sobretudo o Papa, eram a autoridade moral. Ninguém conseguiria governar contra a Igreja.

Foi também um momento em que a Igreja contaminou-se pelas razões de Estado. Na verdade, o papado era uma monarquia absolutista e espelhava o modelo de Estado reproduzido no meio civil. O problema é que freqüentemente a Igreja, a partir da teologia civil de Agostinho, era o próprio Estado, com todas as suas conseqüências. Os horrores das caças aos hereges, às bruxas, aos judeus, o exercício da justiça draconiana contra os inimigos e os homens simples teve a bênção e mesmo a inspiração na Igreja. Foram tempos de injustiça e dor, mas também foram tempos de grandes avanços. As ordens religiosas revolucionam as técnicas agrícolas, sendo a Igreja e seus membros os inovadores e os detentores do conhecimento que permitiram o grande salto na oferta de alimentos, que viabilizou a expansão sem paralelo da população européia, sem dúvida uma das condições e talvez a causa mais profunda do advento dos tempos moderno.

Johnson vai encontrar em Agostinho a ideologia legitimadora para escorar a ação civil da Igreja, de certa forma a fonte a legitimar o poder absolutista, que muitas vezes abusou da tortura e das execuções sumárias. Não é uma página dignificante da nossa história.

Em paralelo, foi a Igreja a depositária e a responsável pela preservação dos conhecimentos humanistas e científicos. Praticamente nenhum homem de pensamento importante pôde frutificar fora do abrigo da Igreja. Sem ela, certamente a Europa – e o Ocidente como um todo – teria quebrado os elos culturais com a antigüidade clássica e a erudição judaico-cristã.

O apogeu do poder de Estado coincidiu com as formas mais abjetas de simonia no seio da Igreja. As relíquias, algumas verdadeiras fraudes, serviram para explorar a crendice popular e para extorquir recursos dos crédulos. A Igreja passou a vender bênção e salvação, através de indulgências. O fato é que a Igreja estava corrompida e todos os homens respeitáveis clamavam por reformas, muito antes do século XVI. Se o papado tivesse tido a clarividência e a humildade de conduzi-las, a história teria sido outra e a cristandade não precisaria ter a sua unidade quebrada.

Ao iniciar a narrativa desse período, Johnson focaliza inicialmente a visita feita por John Colet, reitor da Escola de São Paulo e fundador da nova escola de gramática, e Erasmo, ao Santuário de Cantuária, na Inglaterra, por volta de 1512. O relato do autor é chocante:

“Em seus últimos Colóquios, Erasmo deixou-nos um relato da visita e seria difícil conceber um pequeno episódio mais pungente, às vésperas da Reforma, que esse confronto entre o santuário do triunfalista clerical martirizado e os dois mais convictos apóstolos do Novo Ensino. Os dois eruditos eram homens pios e sua visita foi reverente. Contudo, o relato de Erasmo deixa claro que ambos ficaram profundamente chocados com o que viram. As riquezas que adornavam o santuário eram espantosas. Erasmo considerou-as incongruentes, desproporcionais, tesouros ‘perante os quais Midas e Creso teriam parecido mendigos’; trinta anos depois, os agentes de Henrique VIII recolheriam, dali, 140 quilos de ouro, 125 de folheado de prata, 150 de prata pura e 26 carroças de outros tesouros. Colet irritou o sacristão que os acompanhava ao recusar-se a dar um beijo reverencial em uma importante relíquia, o braço de São Jorge, e ao tratar um velho trapo supostamente embebido no sangue de S. Tomás com um ‘assobio de desprezo’. A três quilômetros da cidade, perto do asilo de pobres de Harbledown, a impaciência do reitor com o ‘cristianismo mecânico’ foi submetida a mais um teste quando um mendigo licenciado os aspergiu com água benta e ofereceu o sapato de S. Tomás para que o beijassem: ‘será que esses tolos esperam que beijemos os sapatos de todos os bons homens que já existiram?’, indagou, furioso. ‘Por que não nos trazer seu cuspe e seus excrementos para que os beijemos?’ Após esse encontro memorável, os dois homens retornaram a Londres” (página 321).

Homens como eles, e mais Pico dela Mirândola, Marcilio Ficino, Lorenzo de Valla, e Johann Rauchilin, eruditos que redescobriram os tesouros culturais guardados pelos bizantinos e judeus, em grego e hebraico, foram os agentes da grande transformação que viria. “Para Ficino, Platão, cujas obras fundamentais agora se encontravam disponíveis no grego original, pertencia a um série de intérpretes do divino, que tinha início com Zoroastro e passava por Hermes Trismegisto e Pitágoras – uma sabedoria antiga que antevia e confirmava o cristianismo. Ao mesmo tempo, todo o espectro da erudição hebraica, que se havia mantido intocada na Espanha por séculos, foi disponibilizada para o Ocidente por Mirândola, que uniu a teosofia cabalista judaica à cosmologia neoplatônica… Assim, o Novo Ensino entrou em conflito, pela primeira vez, com a Igreja estabelecida. Agora, os homens tinham condições de estudar os textos gregos e hebraicos no original e compará-los com a versão recebida em latim, tratada como sacrossanta pelo Ocidente por séculos… A mensagem do Novo Testamento era, na verdade, a seguinte: um maior conhecimento é a ponte para uma verdade espiritual mais pura. Ficino, Pico e Rauchlin defendiam a existência de uma religião, por assim dizer, natural; a existência, por parte de experiências filosóficas e religiosas diversas, de uma unidade. Ao longo dos séculos, os acréscimos haviam obscurecido essa verdade: o Novo Ensino pretendia redescobri-la e purificá-la” (páginas 322/323).

Essa busca da verdade por meio da crítica, a partir das novas descobertas, foi a base do Renascimento e o ponto a partir do qual a reforma da Igreja tornou-se um movimento irresistível. E, claro, a alavanca motora foi certamente o surgimento das técnicas de impressão, que baratearam e abreviaram enormemente o processo de produção de livros e outros materiais impressos.

“A difusão de novos conhecimentos praticamente coincidiu com o desenvolvimento técnico da imprensa. A coincidência assegurou a aceleração de ambos” (página 323).

Erasmo é fruto dessa nova era de estudos e comunicações. Ele “tornou-se um erudito de elevados padrões acadêmicos; era também um popularizador e jornalista, que compreendia a importância da comunicação. Queria que seus livros fossem pequenos, acessíveis e baratos e foi o primeiro escritor a compreender todas as potencialidades da imprensa. Trabalhava com velocidade, com freqüência na própria gráfica, escrevendo e corrigindo suas provas na hora. O cheiro de tinta de impressão – o incenso da Reforma – o estimulava… Na década de 1530, havia trezentas mil cópias de seu Novo Testamento grego em circulação, e mais de 750 mil de suas outras obras. Era um grande fenômeno, um best-seller mundial vivo” (página 326).

Dois pontos são centrais no movimento da Reforma, além dessa explosão de conhecimento permitido pela imprensa e pela erudição. O primeiro é que a consolidação de uma grande classe média, letrada e capaz de estudar independente da Igreja os textos sagrados, enfraqueceu a autoridade eclesiástica mesmo em assuntos estritamente religiosos. Essa classe média letrada era positivamente anticlerical. O segundo fator é a releitura das Epístolas paulinas, especialmente aquela dirigida aos Romanos, em tudo e por tudo contrária à Igreja enquanto instituição hierárquica e contra a simbiose entre o poder civil e a religião. A combustão foi rápida e o incêndio incontrolável. O Ocidente jamais seria o mesmo.

Lutero e Calvino (e os demais reformadores), os apóstolos do novo tempo, ao quebrarem a unidade da fé cristã criaram também as condições para a emergência dos maiores horrores que a humanidade já conheceu. Primeiro as guerras religiosas, depois as guerras entre os Estados cristãos, que culminaram com as Grandes Guerras do século XX. A história da Reforma é a história da intolerância. Erasmo anteviu isso com toda clarividência: “Erasmo era um pacifista. Não aceitava a doutrina da ‘guerra justa’. Se cada Estado optasse por seu próprio tipo de religião, segundo os ditames do governante, a guerra, pensava ele, seria inevitável’ (página 333). É claro que essa postura de Erasmo quanto à “guerra justa” o colocava em posição absolutamente antagônica a Agostinho.

Um olhar sobre a história européia e do cristianismo sugere que há uma evolução gradativa no processo de consciência individual, ao preço de muito sofrimento e muita dor, a começar pelo sacrifício do próprio Cristo Jesus. Desde então tem sido uma luta constante de indivíduos isolados para manter a chama da consciência, quase sempre em oposição aos poderes mundanos e muitas vezes com risco da própria vida. O tempo da Reforma não foi diferente. Por trás das controvérsias teológicas, via-se que na verdade acontecia o confronto entre o poder coletivo dos Estados (e das Igrejas) com os indivíduos que ousaram seguir o seu próprio caminho e ter as suas próprias convicções. Muitos foram covarde e impiedosamente assassinados, às vezes anonimamente. Mas os “restos de Israel” puderam sempre sobreviver.

Veremos no próximo artigo que durante a Segunda Guerra mundial esse eterno conflito entre César e Cristo não mudou a sua qualidade, mas assumiu dimensões ciclópicas.

O que consola a quem observa o processo como um todo é que, no final, o Bem sempre triunfa sobre o Mal, Mal esse que tem no poder de Estado a sua expressão mais acabada e a sua ferramenta mais afiada para sacrificar os homens tocados pelo Espírito.

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